terça-feira, 1 de abril de 2014

«O objectivo primacial da «Patologia» cifrava-se na demonstração deste postulado: os tipos psíquicos patológicos são resultado dum desequilíbrio entre os três elementos que estão na base de toda a actividade psicológica: o sentimento, o pensamento e a vontade. O predomínio de qualquer deles provocaria as torções de carácter, os desvios de conduta. Não se trata agora da concepção, mas de apontar apenas, dando ainda de barato que fosse verdadeira, como a visão do romancista é dentro dela demasiado linear.»


Carlos de OliveiraObras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 434

Anoitecer,

«hora de os morcegos ensaiarem os voozinhos de cetim»,


José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 141

«Quando as chamas sobem de mais os anjos dão a mão ao diabo.»


José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 141

«Também, do mal o menos, entrou mudo e saiu calado.»


José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 140
«Cansados de dar à sola mas de pulmões lavadinhos, benza-os Deus, porque isto de dormir com as cabras e de namorar as gaivotas dá desgostos mas faz peito, a paciência do artista tem destas naturezas.»

José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 140

Quando o cadáver cheira a política até as moscas largam a asa

«Tendo em vistas o advogado dos brilhos, salienta que o homo politicus é um animal lixado de trabalhar porque tem padrinhos no céu e afilhados no inferno, para não falarmos no purgatório que é onde se junta a maralha dos conspiradores em part-time. Por estas e por outras é que: Quando o cadáver cheira a política até as moscas largam a asa, como se costuma dizer, e muito bem, aqui o nosso chefe Santana.»



José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 138

«Ele-Estava-A-Viver-Plenamente-No-Auge-Da-Paixão.»

Felicidade dramática


Segunda sessão de brandies

dedo sim dedo não

«(...) tufos de pêlos irrompem-lhe das axilas. Debruçado nas costas da cadeira o polícia estuda-a com olhos de míope.
   Mena. Os braços erguidos alteiam-lhe os seios que parecem soltos e estão mesmo (sem soutien, pela maneira de descair do pull-over) e os pêlos do sovaco são dum negro seco e agreste, tão negro como é decerto todo o cabelo que ela tem no mais privado do corpo e com um gosto acidulado, retenso. O chefe de brigada tira um limpa-unhas do bolso num movimento paciente.
   Silêncio. O silêncio do preso é a insónia do polícia, aguardemos.»





José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 128

prepara-se para grandes vagares

Abril

«Vizinha da morte estava ela, vizinha como nunca; uma mulher paredes meias com a morte e com o sangue. Mas durante este tempo, todos os dias uma criada lhe fazia chegar ao quarto três das mais belas rosas desse Abril.»

José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 128

nonsense

ante-rosto




   «O meu exemplar (primeira edição, hoje rara) descobri-o em Coimbra, por acaso, durante o despejo dum armazém de alfarrabista pobre. Não está mal conservado apesar no segundo terço do livro e um túnel de traça, ainda incipiente, que eu próprio limpei e desinfectei, assim como meti cola nova na lombada, esta sem dúvida em mau estado: a tela interior no fio, o papel de fora a esfarelar-se.»



Carlos de OliveiraObras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 425
«(...) mandem gravar na campa do poeta o epitáfio que ele próprio escreveu:

                       A dádiva suprema é dar a vida
                Ao silêncio de pedra que é a morte.
                      Larga-me da vida, morte,
                      Faz-me da morte pedra.



Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 421

Escrever é lavrar

«O suor de sol a sol: «enxada à terra, ó braços da pobreza»


Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 421

Anúncio Olá Magnum (aqueles gelados saborosos...): O prazer é para quem o procura


raspa-língua e ruiva-brava

«Choupos, ínsuas à flor do rio quase extinto, a tarde a arder como um pouco de álcool, e mais conversa.»

Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 419/420

« - Sabes, um suicídio a dois só com o acordo de ambos e tu não me perguntaste nada, pois não?»


Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 416

isqueiro

divórcio emocional

(...) das costelas coração.


nenhuma companheira é possível e as solidões somadas pesam mais que uma só

    «De Álvaro de Campos: «ó companheira que eu não tenho nem quero ter». Olho para Gelnaa e não compreendo: tenho-a e quero tê-la. Mas ao mesmo tempo compreendo: não a devia ter a ela; ou não vale a pena tê-la; ou então dói-me a sua fragilidade, sombra dum arquétipo, eterno neste momento. Logo depois volto a não compreender: meu amor mortal, de carne e osso, tenho-te para sempre, agora. Coisas que se equivalem, na gramática relativa da vida. Não nos deram outra, Gelnaa. E mal acabo de pensar isto compreendo de novo: nenhuma companheira é possível e as solidões somadas pesam mais que uma só. Etc.»


Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 415

segunda-feira, 31 de março de 2014

''A escola dos filhos é a casa dos pais''

(...)

«Assim se movem
as nuvens comovidas
no anoitecer
dos grandes textos clássicos.»


Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 401

domingo, 30 de março de 2014


Enredos

"bebo este líquido escorregadio como uma agonia, é carinhoso o meu amigo, mas nada há mais terrível que a sua carícia interrompida pela eficiência do mundo, ou que o sermos amados pelas regras do mundo, gosto da luz absoluta do equívoco onde consigo imaginar as faces mais vulgares, nada posso senão perder-me nas minhas histórias já que ninguém entra no meu quarto, o resto é colocar na boca de sombras o que gostaria de ouvir"
"Enredos"
Rui Nunes

cabinets de lecture

«Contornava-me, cingia-me com um braço e procurava-me as coxas e as nádegas por baixo da roupa. Eu própria levantei o vestido, colando-me mais a ele, e imagina a surpresa que o tomou quando sentiu nos dedos a verdade do meu ventre!»


José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 122

«E de súbito calou-se e pôs os olhos nos meus com uma dureza terrível. Suportei-os.


José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 122

''linguagem de bordel''

lábios entreabertos em êxtase

cunilíngua

xeque-mate

«Elias é aquilo: um homem a ouvir-se de memória e quantas vezes com estranheza.»


José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 108

água rançosa

Alcateia de raposas

Le Feu Follet, Louis Malle (1963).


LÍQUENES

I

Algures,
no lugar
mais frio
da memória,
mas 
nítido
como um centímetro
quadrado de neve
que pede
a própria luz
à algidez interior,
surge
a paisagem
de líquenes,


Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 296
«Flauta
de vértebras»


Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 302

ESPAÇO

I

«A noite 
impôs ao céu
uma servidão
de inúmeras
estrelas»,
e a via láctea
aprende
como nasce
um cometa
dilacerante,
«que o meu corpo
se despedace
nas pontas
das estrelas»,


Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 301

ilhas caligráficas

(...)

«desistes 
de me 
reconhecer
e segues 
nesse passo
que mal pisa
o silêncio,»


Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 296

“Tive sempre o sentimento de não estar conforme com a ordem estabelecida – Quer seja politicamente definida pela monarquia, pelas repúblicas ou pela ditadura, quer sirva economicamente de pasto ao “homo faber” e aos seus satélites, quer esteja teologicamente desmitizada pelas raposas da inteligência. Por isso precisei de nadar contra uma corrente cada vez mais forte (…) em plena “terra de ninguém” (…) muitas vezes com a pergunta de Molière, sete vezes repetida: “Que diabo estou eu a fazer nesta galera?” De ano para ano tenho suportado, também, o sofrimento que Hölderlin atribui a Hyperionte: o sentimento de ser estrangeiro na própria pátria.”

Ernst Jünger

LES AMANTS, 1958 (LOUIS MALLE)


deslembradas

PUZZLE

I

O sono
cresce como
se 
uma anestesia
ténuescura
se
propagasse 
do cérebro
pela rede nervosa
friamente
até aos dedos
e o tacto
dos homens
esquecesse


Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 287

VI

ó tépida tequilla,
existe ainda
o amor
e o vulnerável cão
do espírito
que lavra
cada palavra
oculta
por pudor
e a ladra
inutilmente
dentro
da garganta
vazia

Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 272
alguém atirou um cão
morto às profundidades

Malcolm Lowry

II

Imaginar 
o som do orvalho,
a lenta contracção
das pétalas,
o peso da água
a tal distância,
registar
nessa memória 
ao contrário
o ritmo da pedra
dissolvida
quando poisa
gota a gota 
nas flores antecipadas.

Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 236

sexta-feira, 28 de março de 2014


barba de espinhos

Adeus anilha de ouro

«Curvou-se e levou as pontas dos dedos ao tornozelo marcado: Adeus anilha de ouro, deus voto de alcova, que regresso ao meu natural.»

José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 105

«Ela desde que é pessoa sabe que este país é de espertos e todo em moral que até chateia. Precisava mas era de ser pasteurizado com merda de ponta a ponta, que era como a Mena dizia.»


José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 102/3




quinta-feira, 27 de março de 2014



"Il y avait une ombre,
dont il était impossible de faire le portrait;
quand il n'y avait plus de lumière,
l'ombre tombait par terre."


Eckhart 

«Uma data de frustados que até na cama têm medo da CENSURA, »


José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 102

sabujo


nome masculino
1. cão de montaria
2. figurado indivíduo servil, bajulador; capacho; lambe-botas

(Do latim medieval segusĭu- [cane-], «[cão] de Segúsia», cidade da Pérsia antiga, hoje Susa»)


leitosamente 
um pouco larga
cheirando sempre 
ao ar da cama


Vasco Graça MouraPoemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 33

mulher ventríloqua

dá-me a linguagem

dá-me a linguagem
do centro das pedras
aquela secura
a clivagem certa

dá-me os rebordos
cortantes das pedras
seu voo ofensivo
o fácil arremesso

dá-me a centelha
da pele das pedras
aquela dureza
com que são objectos



Vasco Graça MouraPoemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 31

para que saibas e fujas se quiseres

Vasco Graça MouraPoemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 29

em curvas de regresso ininterruptas

Vasco Graça MouraPoemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 29

ou era o sono aos poucos

ou era o sono aos poucos descobrindo
densas camadas de um vão delírio aceso?
ou era o frio nos lençóis de linho
e a tua carne em sombra? o linho mesmo?

seria o rasto trémulo, o caminho
inviolado? os animais espessos
de frio em cada pedra? um gesso mais salino
pelos caules do linho reconduzindo os dedos?

mas como o gesso em pó se vai abrindo
(a tua orelha é um búzio escurecendo)
como um novelo tem apenas fios
e fio a fio o vai roendo o tempo

no esfrangalhar da luz te fragmento:
a tua orelha salinamente atlântica
como sal encrespado um búzio escurecendo
demorado nas pedras (as falanges)

o tempo recobrado é recolhido dentro
de endurecidas paredes cranianas
forrado de meninges é centro do seu centro
e só de prolongar-se te estilhaça

pois estes sons dirigem-se ao teu próprio tempo
à duração que os membros entrelaça
ao ondular do próprio desconcerto
com que, no amor, por vezes desatinam

poupadamente os campos do silêncio
no território de um ao outro tímpano
vai ser preciso distender o tempo
vai ser preciso tirar tudo a limpo

de um movimento a outro movimento.
nem a pressão crescente destes cinco
dedos da mão consente que se guardem
quantos cabelos o tempo ramifica


Vasco Graça Moura. Poemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 27/8

subsal, sobressalto, subnutrição, subvidas, submarço, subcutâneo

cosa mentale

''Only through time time is conquered''

T.S. Eliot

''obscuro rigor do coração''


quarta-feira, 26 de março de 2014

Scotch Dimple

  «Agora a cachorra aluada erra pela encosta das campas rasas com toda a matilha atrás. O coveiro olha de cá de cima, apoiado na enxada. Não se vêem senão caudas como vírgulas a acenar por entre campas e crucifixos de pedra, e há uma poalha de borboletas a tremeluzir ao sol.»

José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 99

''infantes de bibe''

''pénis decrépito fardado de almirante.''


José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 99

etecetera

mula-de-enterro

   «Está nisto quando uma cadela ao cimo da ruazinha, seguida por um arraial de ladrantes. Uma rafeira minúscula, no cio evidentemente, e vem a trote desgraçado, sem destino. Atrás dela a canzoada escorraça-se, fervem dentadas, e mais para trás ainda vê-se um perdigueiro coxo à babugem. E a cadelita, troquetroque, segue sem vontade, transportando a natureza. Descansa um pouco, senta-se. O cortejo dos cães faz alto à volta dela, é um ofegar de línguas penduradas, à espera. Alguns aguardam nas passagens entre os jazigos, outros tocam-na com os focinhos pelo traseiro para a fazerem levantar e tentarem a sua sorte; à falta de melhor os perseguidores mais desiludidos montam no parceiro mais à mão e procuram governar-se por ali. O perdigueiro, esse observa à distância a coçar a barriga com a pata coxa, cheio de convicção.»



José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 98

caim-caim


voz de luto

crisântemos apodrecidos

Necrologia

    «Por que razão é que os cemitérios hão-de ficar sempre em lugares altos, sobranceiros aos mortais? Elias atribui isso a uma regra antiga: medo da peste. Vapores e podres de defunto só o chão das igrejas sossega e purifica. Ou então os ventos. Os ventos lá do alto levam tudo.»

José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 97

voejares

«(...) no horizonte vê-se o Tejo em mar de escama de prata.»


José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 97

Memento mori


    «Aquele que além vêdes, irmão, porventura com uma caveira a seus pés (Elias não distingue bem), aquele devora o pão dos mortos à beira da cova que o há-de devorar um dia. Está apoiado à enxada, alimenta-se a meditar. À sombra dele e dos ciprestes dormem as almas sofredoras em sua escrita de mármore e suas assinaturas de cruzes, e é o campo eterno dos humanos. Senhor como cresceu. Cemitério, jardim de lápides. Cresce e multiplica-se a cada hora diante do coveiro afadigado que come a triste côdea da manhã, ele é o pastor que conta o seu rebanho de pedra estendido ao sol pela colina; a sua vista só se detém na linha do rio, lá longe.»


José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 96/7

terça-feira, 25 de março de 2014

releitura

   «Otelo vem à janela, está uma manhã de sol, o que não quer dizer que a merda esteja em repouso. Pelo contrário, o sol leveda o podre e multiplica as larvas e quando o cidadão menos se precata já só sobrevive em bicos de pés e com trampa até ao traço do lábio. Trampa subversiva, que é a mais viscosa. E nada de ondas, nada de ondas, para que a fossa não transborde: ao menor gesto, ao menor resmungo, a merda política escorre para dentro do corpo do desgraçado e depois de o encher até às entranhas seca rapidamente e endurece transformando-o em estátua para curiosos da tortura.»


José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 92/3
  «Tira um cigarro, bate-o na cigarreira, os punhos da camisa aparecem muito dignos e engomados. Isqueiro radioso, dupont de estalinho e chama pronta. Sopra duas lentas e refasteladas fumaças olhando de viés para o dossier: esterqueira.»



José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 92

'Comportou-se com brio e dignidade'

Benzeu-se

bei-jo

« Era correcto beijar a mãe, ou era incorrecto beijá-la? E que significava isso, beijar? Levanta-se a cara para cima, assim, para dizer boa noite, e a mãe inclinava o rosto. Era isso, beijar. A mãe punha os lábios na sua face; os seus lábios eram doces e humedeciam-lhe a face; e provocavam um ínfimo rumor: bei-jo. Por que razão as pessoas agiam assim com os seus rostos?»


James Joyce. Retrato do artista quando jovem. Tradução e Prefácio de Alfredo Margarido, 2ª Edição. Editora Difel, 2002 p. 32
  «Mas não era ali que se sentia doente. Pensou que a doença estava no coração, se era possível ter uma doença em semelhante órgão. Fleming era gentil querendo saber o que se passava. Ficou com vontade de chorar.»


James Joyce. Retrato do artista quando jovem. Tradução e Prefácio de Alfredo Margarido, 2ª Edição. Editora Difel, 2002 p. 32

''lavagem suja''

Dava prazer pensar em rosas azul-pálido e creme ou rosa.

James Joyce. Retrato do artista quando jovem. Tradução e Prefácio de Alfredo Margarido, 2ª Edição. Editora Difel, 2002 p. 31
«Lembro-me que senti um país muito escuro (…), achei tudo muito triste. O que achei mais é que as pessoas não estavam a perceber nada do que se estava a passar. Percebiam a liberdade, mas não percebiam o que é que era», recordou. Foi por isso que fez o documentário «Deus, Pátria, Autoridade», o seu primeiro filme, em 1975, e que «correspondia ao que as pessoas queriam ouvir, para perceber o que era isto, o que era a sociedade, como funcionou o fascismo».
3.ª Voz

Tudo isto tem a ver com o conhecimento
de um pequeno jardim no meio da cidade
quando o sono e o silêncio despovoam a terra
e o último vagabundo entra a porta sem número
e vai desaparecer correndo pelo telhado

(breve pausa)


- MÁRIO CESARINY

'Nous deux encore'

Novas criaturas surgem da terra, com as narinas mordiscando o ar,
os esquilos abundam e repetem-se como perguntas,
os vermes continuam a investigar até as folhas repetirem quem são,
mas aqui temos apenas uma calma sem estações, 
e sem história, que é tédio interrompido pela guerra.
A civilização é impaciência, um frenesi de térmitas
em redor dos formigueiros de Babel, antenas transmissoras
e mensagens; mas aqui o caranguejo-eremita acobarda-se quando encontra
uma sombra e pára até a do eremita.
Um medo escuro da minha sombra alongada, confesso,
para este caranguejo escrever “Europa” é ver aquela criança agachada
junto a um canal sujo em Rimbaud, chaminés, e borboletas, pontes antigas
e as manchas sombrias de resignação à volta dos olhos de carvão
de crianças que se parecem todas com Kafka. Treblinka e Auschwitz
descendo o rio com o fumo de barcaças industriais
e a prosa de uma página a que sacudo as cinzas,
os túmulos dos buracos de caranguejo, a ampulheta dos séculos
que passaram sobre esta baía como o pó soprado pelo harmatão
das nossas tribos, dispersando-se sobre as ilhas,
e a lua erguendo-se na sua procura, como a lanterna de Diógenes
sobre a esfinge do promontório, de equilíbrio e justiça.


- DEREK WALCOTT
LUXÚRIA

Caí no hábito 
de ir às matinas. Hoje
descobri que estão a reparar
a igreja. As janelas laterais
foram retiradas. Fiquei chocado
com o som das andorinhas. Com o sol
e o cheiro da manhã.
Percebi que tem havido um engano.

- JACK GILBERT
NADA MAIS - RIEN NE VA PLUS

Na alienação que é o pensamento
as coisas escorrem pelos dedos abaixo
a matéria, a «phisis»
tudo nos escorre pelos dedos abaixo
na alienação que é o pensamento
Dominam-se as coisas até onde o céu
pode ser aberto
e a geometria uma realidade nossa
para limitar o espaço
A cabeça em limites
onde um limite um ser
uma coisa
e tudo cá dentro cá dentro cá dentro
até onde um limite
ainda torna possível a existência
dum outro por abrir
Hoje o céu é novo é diferente
é dormir e acordar de novo para as coisas
o céu os pássaros
a fantasia dos pássaros
Hoje é o céu novo o céu novo
hoje é a Grécia de ontem
foi ontem a Grécia
mas a Grécia ainda é hoje
é hoje porque é dormir e acordar de novo para as coisas
achá-las vê-las
cumprimentar as coisas com bons dias ao Sol
bom dia meu irmão
ressuscitar um morto
dizer aqui S. Francisco de Assis
aqui a cabeça cheia de vento
a graça as flores
o vento na cabeça
a cabeça a janela
aberta aberta
de S. Francisco de Assis
Hoje é dizer fui ontem mas ainda sou amanhã
amanhã amanhã
amanhã até onde o céu for aberto
e até onde a Estrela Polar distante distante
Hoje é dormir cantar
dormir com uma canção na cabeça
dizer boa noite meu amor meus astros minha esfera
amanhã outra vez amanhã de novo te conheço
ressuscito para as coisas
e assim o sono a existência o momento que passa
e nada mais
porque nada mais meu bom Sartre na verdade
nada mais que o momento
conta senão para nós.

- António Gancho, O AR DA MANHÃ,
Lisboa: Assírio & Alvim, 1995
HOSPITAL CANTONAL DE PERREUX

Aqueles jardins tinham o gosto da anestesia
no céu da boca, havia longas alamedas
poluídas pelo segredo dos pavilhões proibidos.

Os internados dormiam toda a tarde sem ruído,
às seis vinham a tropeçar pelo refeitório,
cumprimentavam no seu francês turvado pelos químicos:
'Ça va, m'sieur?' Eu andava à procura de um acelerador
para a minha viagem, interrogava constantemente
os meus oráculos, o livro aberto sobre as sombras
no terraço.

Eram mesmo para mim as mensagens que encontrei
nos muros de algumas cidades, ou foram só ilusões
engendradas pelo acaso? Eu não sabia responder
naquela altura, tal como nunca soube. Às vezes
o silêncio de Perreux era confortável
para os meus sentidos, trazia-me depressa
o sono. Na manhã seguinte, eu voltaria a partir.

- Rui Pires Cabral, A SUPER-REALIDADE,
2.ª ed., Lisboa: Língua Morta, 2011

segunda-feira, 24 de março de 2014


Para que serve a poesia?
Uma resposta.

"EM VEZ DE PREFÁCIO

Nos terríveis anos de Iezhov passei dezassete meses nas filas de prisão em Leninegrado. Certa vez alguém 'identificou-me'. Então uma mulher de olhos azuis que estava atrás de mim, que de certeza nunca ouvira o meu nome, saiu desse torpor próprio de todos nós naquela altura e perguntou-me ao ouvido (aí todos falavam num murmúrio):
- É capaz de descrever isto?
E eu respondi:
- Sou.
Então algo parecido com um sorriso perpassou por aquilo que outrora fora o seu rosto.

1 de Abril de 1957
Leninegrado"

_ ANNA AKHMATOVA
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