domingo, 30 de março de 2014

(...)

«desistes 
de me 
reconhecer
e segues 
nesse passo
que mal pisa
o silêncio,»


Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 296

“Tive sempre o sentimento de não estar conforme com a ordem estabelecida – Quer seja politicamente definida pela monarquia, pelas repúblicas ou pela ditadura, quer sirva economicamente de pasto ao “homo faber” e aos seus satélites, quer esteja teologicamente desmitizada pelas raposas da inteligência. Por isso precisei de nadar contra uma corrente cada vez mais forte (…) em plena “terra de ninguém” (…) muitas vezes com a pergunta de Molière, sete vezes repetida: “Que diabo estou eu a fazer nesta galera?” De ano para ano tenho suportado, também, o sofrimento que Hölderlin atribui a Hyperionte: o sentimento de ser estrangeiro na própria pátria.”

Ernst Jünger

LES AMANTS, 1958 (LOUIS MALLE)


deslembradas

PUZZLE

I

O sono
cresce como
se 
uma anestesia
ténuescura
se
propagasse 
do cérebro
pela rede nervosa
friamente
até aos dedos
e o tacto
dos homens
esquecesse


Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 287

VI

ó tépida tequilla,
existe ainda
o amor
e o vulnerável cão
do espírito
que lavra
cada palavra
oculta
por pudor
e a ladra
inutilmente
dentro
da garganta
vazia

Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 272
alguém atirou um cão
morto às profundidades

Malcolm Lowry

II

Imaginar 
o som do orvalho,
a lenta contracção
das pétalas,
o peso da água
a tal distância,
registar
nessa memória 
ao contrário
o ritmo da pedra
dissolvida
quando poisa
gota a gota 
nas flores antecipadas.

Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 236

sexta-feira, 28 de março de 2014


barba de espinhos

Adeus anilha de ouro

«Curvou-se e levou as pontas dos dedos ao tornozelo marcado: Adeus anilha de ouro, deus voto de alcova, que regresso ao meu natural.»

José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 105

«Ela desde que é pessoa sabe que este país é de espertos e todo em moral que até chateia. Precisava mas era de ser pasteurizado com merda de ponta a ponta, que era como a Mena dizia.»


José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 102/3




quinta-feira, 27 de março de 2014



"Il y avait une ombre,
dont il était impossible de faire le portrait;
quand il n'y avait plus de lumière,
l'ombre tombait par terre."


Eckhart 

«Uma data de frustados que até na cama têm medo da CENSURA, »


José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 102

sabujo


nome masculino
1. cão de montaria
2. figurado indivíduo servil, bajulador; capacho; lambe-botas

(Do latim medieval segusĭu- [cane-], «[cão] de Segúsia», cidade da Pérsia antiga, hoje Susa»)


leitosamente 
um pouco larga
cheirando sempre 
ao ar da cama


Vasco Graça MouraPoemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 33

mulher ventríloqua

dá-me a linguagem

dá-me a linguagem
do centro das pedras
aquela secura
a clivagem certa

dá-me os rebordos
cortantes das pedras
seu voo ofensivo
o fácil arremesso

dá-me a centelha
da pele das pedras
aquela dureza
com que são objectos



Vasco Graça MouraPoemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 31

para que saibas e fujas se quiseres

Vasco Graça MouraPoemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 29

em curvas de regresso ininterruptas

Vasco Graça MouraPoemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 29

ou era o sono aos poucos

ou era o sono aos poucos descobrindo
densas camadas de um vão delírio aceso?
ou era o frio nos lençóis de linho
e a tua carne em sombra? o linho mesmo?

seria o rasto trémulo, o caminho
inviolado? os animais espessos
de frio em cada pedra? um gesso mais salino
pelos caules do linho reconduzindo os dedos?

mas como o gesso em pó se vai abrindo
(a tua orelha é um búzio escurecendo)
como um novelo tem apenas fios
e fio a fio o vai roendo o tempo

no esfrangalhar da luz te fragmento:
a tua orelha salinamente atlântica
como sal encrespado um búzio escurecendo
demorado nas pedras (as falanges)

o tempo recobrado é recolhido dentro
de endurecidas paredes cranianas
forrado de meninges é centro do seu centro
e só de prolongar-se te estilhaça

pois estes sons dirigem-se ao teu próprio tempo
à duração que os membros entrelaça
ao ondular do próprio desconcerto
com que, no amor, por vezes desatinam

poupadamente os campos do silêncio
no território de um ao outro tímpano
vai ser preciso distender o tempo
vai ser preciso tirar tudo a limpo

de um movimento a outro movimento.
nem a pressão crescente destes cinco
dedos da mão consente que se guardem
quantos cabelos o tempo ramifica


Vasco Graça Moura. Poemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 27/8

subsal, sobressalto, subnutrição, subvidas, submarço, subcutâneo

cosa mentale

''Only through time time is conquered''

T.S. Eliot

''obscuro rigor do coração''


quarta-feira, 26 de março de 2014

Scotch Dimple

  «Agora a cachorra aluada erra pela encosta das campas rasas com toda a matilha atrás. O coveiro olha de cá de cima, apoiado na enxada. Não se vêem senão caudas como vírgulas a acenar por entre campas e crucifixos de pedra, e há uma poalha de borboletas a tremeluzir ao sol.»

José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 99

''infantes de bibe''

''pénis decrépito fardado de almirante.''


José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 99

etecetera

mula-de-enterro

   «Está nisto quando uma cadela ao cimo da ruazinha, seguida por um arraial de ladrantes. Uma rafeira minúscula, no cio evidentemente, e vem a trote desgraçado, sem destino. Atrás dela a canzoada escorraça-se, fervem dentadas, e mais para trás ainda vê-se um perdigueiro coxo à babugem. E a cadelita, troquetroque, segue sem vontade, transportando a natureza. Descansa um pouco, senta-se. O cortejo dos cães faz alto à volta dela, é um ofegar de línguas penduradas, à espera. Alguns aguardam nas passagens entre os jazigos, outros tocam-na com os focinhos pelo traseiro para a fazerem levantar e tentarem a sua sorte; à falta de melhor os perseguidores mais desiludidos montam no parceiro mais à mão e procuram governar-se por ali. O perdigueiro, esse observa à distância a coçar a barriga com a pata coxa, cheio de convicção.»



José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 98

caim-caim


voz de luto

crisântemos apodrecidos

Necrologia

    «Por que razão é que os cemitérios hão-de ficar sempre em lugares altos, sobranceiros aos mortais? Elias atribui isso a uma regra antiga: medo da peste. Vapores e podres de defunto só o chão das igrejas sossega e purifica. Ou então os ventos. Os ventos lá do alto levam tudo.»

José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 97

voejares

«(...) no horizonte vê-se o Tejo em mar de escama de prata.»


José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 97

Memento mori


    «Aquele que além vêdes, irmão, porventura com uma caveira a seus pés (Elias não distingue bem), aquele devora o pão dos mortos à beira da cova que o há-de devorar um dia. Está apoiado à enxada, alimenta-se a meditar. À sombra dele e dos ciprestes dormem as almas sofredoras em sua escrita de mármore e suas assinaturas de cruzes, e é o campo eterno dos humanos. Senhor como cresceu. Cemitério, jardim de lápides. Cresce e multiplica-se a cada hora diante do coveiro afadigado que come a triste côdea da manhã, ele é o pastor que conta o seu rebanho de pedra estendido ao sol pela colina; a sua vista só se detém na linha do rio, lá longe.»


José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 96/7

terça-feira, 25 de março de 2014

releitura

   «Otelo vem à janela, está uma manhã de sol, o que não quer dizer que a merda esteja em repouso. Pelo contrário, o sol leveda o podre e multiplica as larvas e quando o cidadão menos se precata já só sobrevive em bicos de pés e com trampa até ao traço do lábio. Trampa subversiva, que é a mais viscosa. E nada de ondas, nada de ondas, para que a fossa não transborde: ao menor gesto, ao menor resmungo, a merda política escorre para dentro do corpo do desgraçado e depois de o encher até às entranhas seca rapidamente e endurece transformando-o em estátua para curiosos da tortura.»


José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 92/3
  «Tira um cigarro, bate-o na cigarreira, os punhos da camisa aparecem muito dignos e engomados. Isqueiro radioso, dupont de estalinho e chama pronta. Sopra duas lentas e refasteladas fumaças olhando de viés para o dossier: esterqueira.»



José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 92

'Comportou-se com brio e dignidade'

Benzeu-se

bei-jo

« Era correcto beijar a mãe, ou era incorrecto beijá-la? E que significava isso, beijar? Levanta-se a cara para cima, assim, para dizer boa noite, e a mãe inclinava o rosto. Era isso, beijar. A mãe punha os lábios na sua face; os seus lábios eram doces e humedeciam-lhe a face; e provocavam um ínfimo rumor: bei-jo. Por que razão as pessoas agiam assim com os seus rostos?»


James Joyce. Retrato do artista quando jovem. Tradução e Prefácio de Alfredo Margarido, 2ª Edição. Editora Difel, 2002 p. 32
  «Mas não era ali que se sentia doente. Pensou que a doença estava no coração, se era possível ter uma doença em semelhante órgão. Fleming era gentil querendo saber o que se passava. Ficou com vontade de chorar.»


James Joyce. Retrato do artista quando jovem. Tradução e Prefácio de Alfredo Margarido, 2ª Edição. Editora Difel, 2002 p. 32

''lavagem suja''

Dava prazer pensar em rosas azul-pálido e creme ou rosa.

James Joyce. Retrato do artista quando jovem. Tradução e Prefácio de Alfredo Margarido, 2ª Edição. Editora Difel, 2002 p. 31
«Lembro-me que senti um país muito escuro (…), achei tudo muito triste. O que achei mais é que as pessoas não estavam a perceber nada do que se estava a passar. Percebiam a liberdade, mas não percebiam o que é que era», recordou. Foi por isso que fez o documentário «Deus, Pátria, Autoridade», o seu primeiro filme, em 1975, e que «correspondia ao que as pessoas queriam ouvir, para perceber o que era isto, o que era a sociedade, como funcionou o fascismo».
3.ª Voz

Tudo isto tem a ver com o conhecimento
de um pequeno jardim no meio da cidade
quando o sono e o silêncio despovoam a terra
e o último vagabundo entra a porta sem número
e vai desaparecer correndo pelo telhado

(breve pausa)


- MÁRIO CESARINY

'Nous deux encore'

Novas criaturas surgem da terra, com as narinas mordiscando o ar,
os esquilos abundam e repetem-se como perguntas,
os vermes continuam a investigar até as folhas repetirem quem são,
mas aqui temos apenas uma calma sem estações, 
e sem história, que é tédio interrompido pela guerra.
A civilização é impaciência, um frenesi de térmitas
em redor dos formigueiros de Babel, antenas transmissoras
e mensagens; mas aqui o caranguejo-eremita acobarda-se quando encontra
uma sombra e pára até a do eremita.
Um medo escuro da minha sombra alongada, confesso,
para este caranguejo escrever “Europa” é ver aquela criança agachada
junto a um canal sujo em Rimbaud, chaminés, e borboletas, pontes antigas
e as manchas sombrias de resignação à volta dos olhos de carvão
de crianças que se parecem todas com Kafka. Treblinka e Auschwitz
descendo o rio com o fumo de barcaças industriais
e a prosa de uma página a que sacudo as cinzas,
os túmulos dos buracos de caranguejo, a ampulheta dos séculos
que passaram sobre esta baía como o pó soprado pelo harmatão
das nossas tribos, dispersando-se sobre as ilhas,
e a lua erguendo-se na sua procura, como a lanterna de Diógenes
sobre a esfinge do promontório, de equilíbrio e justiça.


- DEREK WALCOTT
LUXÚRIA

Caí no hábito 
de ir às matinas. Hoje
descobri que estão a reparar
a igreja. As janelas laterais
foram retiradas. Fiquei chocado
com o som das andorinhas. Com o sol
e o cheiro da manhã.
Percebi que tem havido um engano.

- JACK GILBERT
NADA MAIS - RIEN NE VA PLUS

Na alienação que é o pensamento
as coisas escorrem pelos dedos abaixo
a matéria, a «phisis»
tudo nos escorre pelos dedos abaixo
na alienação que é o pensamento
Dominam-se as coisas até onde o céu
pode ser aberto
e a geometria uma realidade nossa
para limitar o espaço
A cabeça em limites
onde um limite um ser
uma coisa
e tudo cá dentro cá dentro cá dentro
até onde um limite
ainda torna possível a existência
dum outro por abrir
Hoje o céu é novo é diferente
é dormir e acordar de novo para as coisas
o céu os pássaros
a fantasia dos pássaros
Hoje é o céu novo o céu novo
hoje é a Grécia de ontem
foi ontem a Grécia
mas a Grécia ainda é hoje
é hoje porque é dormir e acordar de novo para as coisas
achá-las vê-las
cumprimentar as coisas com bons dias ao Sol
bom dia meu irmão
ressuscitar um morto
dizer aqui S. Francisco de Assis
aqui a cabeça cheia de vento
a graça as flores
o vento na cabeça
a cabeça a janela
aberta aberta
de S. Francisco de Assis
Hoje é dizer fui ontem mas ainda sou amanhã
amanhã amanhã
amanhã até onde o céu for aberto
e até onde a Estrela Polar distante distante
Hoje é dormir cantar
dormir com uma canção na cabeça
dizer boa noite meu amor meus astros minha esfera
amanhã outra vez amanhã de novo te conheço
ressuscito para as coisas
e assim o sono a existência o momento que passa
e nada mais
porque nada mais meu bom Sartre na verdade
nada mais que o momento
conta senão para nós.

- António Gancho, O AR DA MANHÃ,
Lisboa: Assírio & Alvim, 1995
HOSPITAL CANTONAL DE PERREUX

Aqueles jardins tinham o gosto da anestesia
no céu da boca, havia longas alamedas
poluídas pelo segredo dos pavilhões proibidos.

Os internados dormiam toda a tarde sem ruído,
às seis vinham a tropeçar pelo refeitório,
cumprimentavam no seu francês turvado pelos químicos:
'Ça va, m'sieur?' Eu andava à procura de um acelerador
para a minha viagem, interrogava constantemente
os meus oráculos, o livro aberto sobre as sombras
no terraço.

Eram mesmo para mim as mensagens que encontrei
nos muros de algumas cidades, ou foram só ilusões
engendradas pelo acaso? Eu não sabia responder
naquela altura, tal como nunca soube. Às vezes
o silêncio de Perreux era confortável
para os meus sentidos, trazia-me depressa
o sono. Na manhã seguinte, eu voltaria a partir.

- Rui Pires Cabral, A SUPER-REALIDADE,
2.ª ed., Lisboa: Língua Morta, 2011

segunda-feira, 24 de março de 2014


Para que serve a poesia?
Uma resposta.

"EM VEZ DE PREFÁCIO

Nos terríveis anos de Iezhov passei dezassete meses nas filas de prisão em Leninegrado. Certa vez alguém 'identificou-me'. Então uma mulher de olhos azuis que estava atrás de mim, que de certeza nunca ouvira o meu nome, saiu desse torpor próprio de todos nós naquela altura e perguntou-me ao ouvido (aí todos falavam num murmúrio):
- É capaz de descrever isto?
E eu respondi:
- Sou.
Então algo parecido com um sorriso perpassou por aquilo que outrora fora o seu rosto.

1 de Abril de 1957
Leninegrado"

_ ANNA AKHMATOVA
Gosto da brisa gelada
e do vapor que fala no Inverno:
Eu sou eu. A realidade é a realidade.

Um rapazinho, vermelho como um tomate,
dono e senhor do seu trenó,
lança-se encosta abaixo.

E eu, em desacordo com o mundo, com a liberdade,
aceito o contágio do trenó,
dos seus estriados braços de prata.

O século poderia ser mais leve que um esquilo,
mais leve que um esquilo no doce arroio.
Metade do céu é usar botas de inverno.

- OSSIP MANDELSTAM
in 'Um ateu no campo', versões de João Rodrigues,
Lisboa, edições pirata, 2000
O GATO

O meu não come ratos; não gosta disso. Só apanha um de vez em quando por brincadeira.
Quando já brincou o suficiente, poupa-lhe a vida e, inocentemente, vai sonhar para outro lado, sentado sobre o caracol da cauda, a cabeça insondável como um punho fechado.
Mas, por causa das suas garras, o rato morreu.

- JULES RENARD /Trad. Inês Dias 
[...]

Se o sul é para trás e o norte é para o lado,
é para sempre a morte.
Agarrado ao volante e pulmões às costas
como um pneu furado,
o poeta pedala o coração transfigurado.
Na memória mais antiga a direcção da morte
é a mesma do amor. E o poeta,
afinal mais mortal do que os outros animais,
dá à pata nos pedais para um verão interior.


- HERBERTO HELDER
SONETO PARA CESÁRIO

Se te encontrasse, agora, na paisagem 
nocturna dos fantasmas da cidade, 
contava-te dos nossos pobres versos 
no teu rasto de sombra e claridade. 

Contava-te do frio que há em medir
a distância entre as mãos e as estrelas,
com lágrimas de pedra nos sapatos
e um cansaço impossível de escondê-las.

Contava-te — sei lá! — desta rotina
de embalarmos a morte nas paredes,
de tecermos o destino nas valetas...

Duma história de luas e de esquinas,
com retratos e flores da madrugada
a boiarem na água das sarjetas.

- DINIS MACHADO
GIFT

You tell me that silence
is nearer to peace than poems
but if for my gift
I brought you silence
(for I know silence)
you would say
'This is not silence
this is another poem'
and you would hand it back to me.

- LEONARD COHEN
[Fotografia: Jim Wigler, 1960s]
[...]

As andorinhas pousadas nos cabos eléctricos
comentam entre si o périplo de Pound:
Odysseus que viajou 'Os Cantos' de 800 páginas
Sófocles numa gaiola, 'gorilla cage'
e mais treze anos sage num hospício
senhor do sangue contra o dinheiro

[...]

- António Barahona, PÁTRIA MINHA,
Lisboa, Averno, 2014
[...]

colecciono fotografias de família, vendidas em alfarrabistas
por pouco dinheiro, como prova de que estamos
a uma ou duas gerações do esquecimento.
invento dedicatórias, parentescos, datas e locais,
espalho-as em molduras pela casa para confundir visitas
e me vingar de uma memória que me atraiçoa sem descanso.
porque
este rosto me levou mais de três décadas a destruir,
para o abandonar à sua sorte, sem a gentil companhia de
desconhecidos, na descida aos infernos pelos túneis
das estações de metro ou num café quase vazio
de Alcântara, a meio da tarde, quando as mesas estão reservadas para os
que não têm ocupação ou pressa. os jornais do dia no balcão e
na parede do fundo o espelho convexo em que
Parmigianino e depois Ashbery se viram
sozinhos, rodeados de objectos, e a certeza de mais uma
morte fixada em auto-retrato.

Tiago Araújo, RESPIRAR DEBAIXO DE ÁGUA,
Lisboa, Averbo, 2013

ADMINIMISTÉRIO



Quando o mistério chegar, 
já vai me encontrar dormindo, 
metade dando pro sábado, 
outra metade, domingo. 
Não haja som nem silêncio,
quando o mistério aumentar.
Silêncio é coisa sem senso,
não cesso de observar.
Mistério, algo que, penso,
mais tempo, menos lugar.
Quando o mistério voltar,
meu sono esteja tão solto,
nem haja susto no mundo
que possa me sustentar.

Meia-noite, livro aberto.
Mariposas e mosquitos
pousam no texto incerto.
Seria o branco da folha,
luz que parece objeto?
Quem sabe o cheiro do preto,
que cai ali como um resto?
Ou seria que os insetos
descobriram parentesco
com as letras do alfabeto?

- Paulo Leminski, TODA POESIA,
São Paulo, Companhia das Letras, 2013

LADRÕES DE BICICLETAS — VITTORIO DE SICA (1948)


Mil quilómetros por dia pedalava meu pai, desde
a cama junto ao Douro até à próspera Cerâmica
de Valadares. Se qualquer homem recebe,
à nascença, uns sessenta inimigos por hora,
imaginem a jornada de um operário ciclista.
Tudo são despesas para ele: o rosário de geada
nas giestas, o jornal atropelado pelo vento, o verdor
da Primavera, a poalha do suor em cada mão.

Meu pai, é claro, não se queixa, ganha um conto
de réis, tem uma casa portuguesa e grandes sonhos
de amanhãs a gasolina. Pelo menos não trabalho
em nenhum matadouro, pensa ele, e com razão,
erguido nos pedais do seu veículo de sombra,
solitário trepador pela encosta de Avintes. Não
trabalha em nenhum matadouro. E nesse reconforto
passa à Quinta dos Frades, alcança o Freixieiro,
sente já o rumor de fumacentos camiões na nacional,
onde tudo, depois, será muito mais plano.

- JOSÉ MIGUEL SILVA
in 'Telhados de Vidro' n.º 4, Lisboa, Averno, Maio de 2005.

«A respiração dos seios empurra contra as paredes do quarto, em ondas lentas, o meu corpo afogado.»


Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 226

FRUTO

   «Por um desvio semântico qualquer, que os filólogos ainda não estudaram, passámos a chamar manhã à infância das aves. De facto envelhecem quando a tarde cai e é por isso que ao anoitecer as árvores nos surgem tão carregadas de tempo.»



Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 224

Annabel Lee

Caroline Blackwood, Walker Evans, February 1958


'' o poema esboroa-se no rasto da criança''


Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 214
«(...) jurara nunca mais comer carne, mesmo que fosse condenado toda a vida às ampolas de soro nutritivo diluídas em leite.»


Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 214

II

    «Os camponeses, esses, destinados às sepulturas rasas, aos estratos de mortos sobre mortos, servem-se do pinho, dos adobes (materiais perecíveis), erguem casas na lama, manuseiam utensílios tão rudimentares como a charrua de madeira. Passam sobre a areia e as pegadas somem-se depressa, «mas carregam aos ombros a pedra do meu lar (pensa a criança obscuramente) e a minha lápide futura». 



Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 212

«(...): na madrugada, a aprendizagem da criança começa pela dor, que se desdobra sem descanso a partir de si mesma.»
Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 211

ESTÁTUA

a Jane L.


   Nos umbrais desta página recebo o poema que chegou de longe, duma memória escura, voluntária, atravessando lama, sono, olvido. Desvendo-lhe as feições, sílaba a sílaba. Quando grito por fim «eis uma cara nova», penso logo «afinal, eras tu». Reconheci apenas outro rosto esquecido na aridez do mundo, recolhi-o da sombra donde veio, e aqui lho deixo, adoradora de estátuas muito antigas, petrificado no papel.»

Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 209
«Deixe-o falar. Incline a cabeça  para o lado, altere o ângulo de visão.»
Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 205

LOOK BACK IN ANGER

      «Podia ser a névoa habitual da noite, os charcos cintilantes, o luar trazido por um golpe de vento às trincheiras da Flandres, mas não era. Quando acordou mais tarde num hospital da retaguarda, ensinaram-no a respirar de novo. Lentas infiltrações de oxigénio num granito poroso, durante anos e anos, até à imobilidade pulmonar das estátuas.
    Hoje, um dos seus filhos sobe ao terraço mais obscuro da cidade em que vive e olha o passado com rancor. O sangue bate, gota a gota, na pedra hereditária dos brônquios e ele sabe que é o mar contra os rochedos, a pulsação difícil das algas ou dos soldados mortos nessa noite da Flandres.
   As imagens latentes, penso eu, porque sou eu o homem na armadilha do terraço difuso, entrego-as às palavras como se  entrega um filme aos sais de prata. Quer dizer: numa pura suspensão de cristais, revelo a minha vida.»



Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 203

domingo, 23 de março de 2014


«Elias pega na corrente, põe-se a passá-la nos dedos e à volta do pulso. É uma cadeia delicada em forma de pulseira mas numa bela perna de mulher vale como um compromisso público de pacto de cama.»


José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 87
«Disse isto e deitou-lhe um olhar certeiro, a ver o efeito. E depois, como quem não quer a coisa: Neste momento veio-me uma à ideia que não deixava de ter a sua graça.
   O advogado: Sim?
   Elias Chefe já com a mão na porta: A amante do major, senhor doutor. Não era nada do outro mundo se ela lhe aparecesse àquela porta um dia destes.
  O advogado em despedida de mão mole: Meu amigo, surpresas dessas nem ao diabo se desejam.»


José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 85
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