sábado, 27 de setembro de 2014

LUTA PELO FULGOR QUOTIDIANO

"Sem observar, possuí o plano do teu corpo...
e assim se extinguiu uma cidade
se estrangularam as pombas a distância.


Nunca mais direi a cor das veias
como era tecida a teia de membros que propus
- apenas esta rota sem final mas certa,
casualmente um ramo de flores sem sorriso
um fluir de cravos na penumbra
através da tua face triste, sortílega e cigana

a isto se chama saudade
a isto está morto o tacto
sem que a órbita da terra se transtorne
antes que seja tarde muito tarde

Ocorrem-me palavras: lua flutuar sereno.
Deixaram porém a sua direcção exacta
nas folhas que o Outono carboniza
como estar só é a força flexível
de tudo que se toque, e abandone.

As torres destinaram-se ruínas
-tudo se consumou sem assistência.

Onde a vida me vá eu a prossiga
com um indício irracional perfeito,
pois com o tempo os remos submergem
sempre ao mesmo nível fatigado
transeunte e rítmico
musical, nem triste, e concludente."


Manuel de Castro. Bonsoir, Madame

domingo, 21 de setembro de 2014


«Queria compreender porque é que estava farto e porque é que, justamente na altura em que me sentia só somo um cão, deixava de querer saber dos outros.»


Cesare Pavese. A guitarra quebrada. Traduzida pelo italiano por José da Fonseca Costa. Editorial Minerva, Lisboa, p. 11

inquebrantável paciência

«temperamento artístico»


«Lembro-me dele naquele último encontro - dado que não voltaríamos a falar-nos - como um homem que sabia salvaguardar muito bem as suas defesas.»


Henry James. O Desenho no Tapete. Tradução de Luzia Maria Martins. Relógio D'Água, Lisboa, p. 30
«Na minha obra, o segredo é uma coisa concreta, como um pássaro numa gaiola, uma isca num anzol, um pedaço de queijo numa ratoeira.»


Henry James. O Desenho no Tapete. Tradução de Luzia Maria Martins. Relógio D'Água, Lisboa, p. 21
«O senhor incendeia a minha imaginação de uma maneira que nunca me tinha acontecido - declarei -, obriga-me a tentar descobrir o segredo, aconteça o que acontecer!»


Henry James. O Desenho no Tapete. Tradução de Luzia Maria Martins. Relógio D'Água, Lisboa, p. 21

"O tango é um pensamento triste que se pode dançar", era o que costumava dizer o famoso compositor Enrique Santos Discépolo.

«Não nos deu ideias mas um outro mundo de pensar e de sentir.»

T.S. Eliot sobre o conjunto da obra de Henry James

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

  «Em dias de alma como hoje, eu sinto bem, em toda a consciência do meu corpo, que sou a criança triste em quem a vida bateu. Puseram-me a um canto de onde se ouve brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido que me deram por uma ironia lata. Hoje, dia catorze de Março, às nove horas e dez da noite, a minha vida sabe valer isto.»


Obra em prosa de Fernando Pessoa. Livro do Desassossego por Bernardo Soares 1ª parte. Introdução e nova organização de textos de António Quadros. Publicações Europa-América p. 20
«Deixo ao cego e ao surdo
 A alma com fronteiras,
 Que eu quero sentir tudo
  De todas as maneiras.»

...

«E como são estilhaços
Do ser, as coisas dispersas
Quebro a alma em pedaços
E em pessoas diversas.»

....


«Se as coisas são estilhaços
Do saber do universo,
Seja eu os meus pedaços,
Impreciso e diverso.»



Obra em prosa de Fernando Pessoa. Livro do Desassossego por Bernardo Soares 1ª parte. Introdução e nova organização de textos de António Quadros. Publicações Europa-América P. 17

[A self-portrait by Vivian Maier, 1954, from the Maloof Collection]



 «A despersonalização imaginativa, onírica e intelectual, é nele permanente: Depois, ao passar diante de casa, chalés, vou vivendo em mim todas as vidas ao mesmo tempo. Sou o pai, a mãe, as filhas, as primas, a criada e o primo da criada...»



Obra em prosa de Fernando Pessoa. Livro do Desassossego por Bernardo Soares 1ª parte. Introdução e nova organização de textos de António Quadros. Publicações Europa-América., p. 17
« Uma tal proliferação de máscaras, de disfarces, de duplos, de outros eus, que são simultaneamente o mesmo e o outro, numa prodigiosa demiurgia, não pode deixar de sugerir que estamos muito para lá de uma simples mistificação literária, que todo este mundo fictício de pseudónimos, sub-heterónimos, semiheterónimos não releva de uma contingência, mas de uma necessidade.»



Obra em prosa de Fernando Pessoa. Livro do Desassossego por Bernardo Soares 1ª parte. Introdução e nova organização de textos de António Quadros. Publicações Europa-América

a simulação, a despersonalização

heteronímico

«Na floresta do Alheamento», 1913 (prosa poética Fernando Pessoa)

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

AQUILO



 "Aquilo de que gosto no teu corpo é o sexo.
Aquilo de que eu gosto no teu sexo é a boca.
Aquilo de que eu gosto na tua boca é a língua.
Aquilo de que eu gosto na tua língua é a palavra."...


 Julio Cortázar.  "Papéis Inesperados"

sábado, 6 de setembro de 2014

Annex - Bacall, Lauren (Designing Woman)


calhamaços

«Não ouvia nada, não via nada, estava inerte; levavam-me, e eu ia; interrogavam-me e respondiam por mim.»


Diderot. A religiosa. Tradução de João Gaspar Simões. Círculo de Leitores, p. 9

açucaradas falsidades

«(...) com a tristeza mais estudada que eu já vira em rosto humano.»

Diderot. A religiosa. Tradução de João Gaspar Simões. Círculo de Leitores, p. 8
«Quantas vezes chorei por não ter vindo ao mundo feia, estúpida, orgulhosa, sem graça; em suma, com todos os senões que tanto as prendavam aos olhos de nossos pais!»



Diderot. A religiosa. Tradução de João Gaspar Simões. Círculo de Leitores, p.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014


«O que não deixa dúvidas a ninguém é a cólera e o amargo despeito que experimentou Nero por se ver desaparecer dos corações que lhe pertenciam.»


Latour Saint-Ybars. Nero. Edição Amigos do Livro, Lisboa., p. 232
«Que poderia colher de tais excessos o homem que perseguia o prazer com tamanha violência? O desgosto pela vida, o profundo desprezo por si próprio. Arquejante, esgotado, nada tendo diante de si, Nero evocou as recordações e voltou-se para o alvo das suas primeiras afeições: Acteia voltou-lhe, sem dúvida, à memória, assim como o entusiasmo ingénuo e o enlevo sincero desse primeiro amor.»
 
Latour Saint-Ybars. Nero. Edição Amigos do Livro, Lisboa., p. 231
«Depois de ter experimentado tudo e de tudo abusado, sentia a sede dos prazeres aumentar com a importância dos sentidos e do coração. Assim, fatigado pelos excessos de toda a espécie, que embotam as faculdades sem acalmar os apetites, Nero agitava-se numa saciedade voraz, que só podia alimentar-se de sombras e arrastava-se da falta de apetite incurável à insaciável avidez. Até mesmo onde a tudo podia atrever-se como um deus, tinha tudo a temer como um homem.»


Latour Saint-Ybars. Nero. Edição Amigos do Livro, Lisboa., p. 230

«(...) despojada dos floreados da eloquência, e dos artifícios da linguagem»

Latour Saint-Ybars. Nero. Edição Amigos do Livro, Lisboa., p. 221

resfriamento


«Fosse qual fosse  o sentimento que o possuía, Nero levava-o ao extremo e o extremo era muitas vezes o crime ou, pelo menos, a loucura.»


Latour Saint-Ybars. Nero. Edição Amigos do Livro, Lisboa., p. 207
«Essa mulher queria que a amassem até à adoração e que a servissem até ao crime. Não podia suportar a solidão austera do lar, onde não via mais do que deveres a cumprir.»
Latour Saint-Ybars. Nero. Edição Amigos do Livro, Lisboa., p. 209
«(...), o orgulho de Nero delirava até à demência. Parece ter-se persuadido de que se elevara acima da condição humana e que o destino lhe dispensara favores especiais.»


Latour Saint-Ybars. Nero. Edição Amigos do Livro, Lisboa., p. 207

''A felicidade é um problema individual. Aqui, nenhum conselho é válido. Cada um deve procurar, por si, tornar-se feliz. ''

"Se não sabe, não imite, pergunte pouco e não acredite muito; observe, pense e investigue."

domingo, 31 de agosto de 2014

Saul Steinberg (my Love)


«Quer queiramos quer não, somos todos vítimas da militarização da vontade, da exorcização do desejo, da domesticação do amor.»

«Carta a D.» no Antologia do Henrique Bento Fialho

Não ser amado é não ser!

''Existir é ter um relevo no espaço e uma sombra caída aos pés, quando o sol nasce. Mas viver é ser uma alma em outras almas. Sem comunhão não há vida; há só existência. Nós amamos para ser amados, para ser... A indiferença da pessoa querida congela-nos o coração, como se a Morte o apertasse entre os dedos descarnados. Não ser amado é não ser!”


Teixeira de Pascoaes, Os Poetas Lusíadas, 1919

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Tu disseste

Tu disseste "quero saborear o infinito"
Eu disse "a frescura das maçãs matinais revela-nos
segredos insondáveis"
Tu disseste "sentir a aragem que balança os
dependurados"
Eu disse "é o medo o que nos vem acariciar"
Tu disseste "eu também já tive medo. muito medo.
recusava-me a abrir a janela, a transpôr o limiar da
porta"
Eu disse "acabamos a gostar do medo, do arrepio que
nos suspende a fala"
Tu disseste "um dia fiquei sem nada. um mundo inteiro
por descobrir"
Eu disse "..."


Eu disse "o que é que isso interessa?"
Tu disseste "...nada"


Tu disseste "agora procuro o desígnio da vida. às
vezes penso encontrá-lo num bater de asas, num
murmúrio trazido pelo vento, no piscar de um néon.
escrevo páginas e páginas a tentar formalizá-lo.
depois queimo tudo e prossigo a minha busca"
Eu disse "eu não faço nada. fico horas a olhar para
uma mancha na parede"
Tu disseste "e nunca sentiste a mancha a alastrar, as
suas formas num palpitar quase imperceptível?"
Eu disse "não. a mancha continua no mesmo sítio, eu
continuo a olhar para ela e não se passa nada"
Tu disseste "e no entanto a mancha alastra e toma
conta de ti. liberta-te do corpo. tu é que não vês"
Eu disse "o que é que isso interessa?"
Tu disseste "...nada"


Eu disse "o que é que isso interessa?"
Tu disseste "...nada"

Penso que penso

Caminho em silêncio
Distraído por um pensar
Que me turba o andar
Penso que penso
E fico a ouvir-me a pensar
Que penso que penso
Este pensamento
Torna-se um tormento
Penso que penso
Que penso que penso
Sempre o mesmo a dobrar
Como vozes a segredar
Penso que penso
Que penso que penso
Que ainda vou flipar
Flipar

ESTOU FARTO DE MIM ESTOU FARTO DE MIM
ESTOU FARTO DE MIM ESTOU FARTO DE MIM


Já não posso mais andar
Com tanta voz a murmurar
Levado pelo vento
Penso que penso
Que penso que penso
Que penso que penso
E se penso em parar
É mais um pensamento
Que me fica a ecoar
Outra voz a segredar
Outra voz a murmurar


 Murmurar...
Murmurar murmurar murmurar murmurar murmurar murmurar
murmurar
Murmurar murmurar murmurar murmurar murmurar murmurar
murmurar


ESTOU FARTO DE MIM ESTOU FARTO DE MIM
ESTOU FARTO DE MIM ESTOU FARTO DE MIM
«é preciso não detestar demasiadamente os vícios, sob pena de detestar também os homens»

Latour Saint-Ybars. Nero. Edição Amigos do Livro, Lisboa., p. 162

«Nero pode fazer-me morrer, mas não saberia fazer-me mal.»


Latour Saint-Ybars. Nero. Edição Amigos do Livro, Lisboa., p. 162
«Nero deu a imortalidade à frágil criatura, à qual não tinha podido sequer assegurar a vida. Estes arrebatamentos, os únicos que se podem desculpar e compreender, servem pelo menos para fazer-vos ver Nero em toda a extensão do seu carácter, excessivo de desordenado em todas as suas paixões.»


Latour Saint-Ybars. Nero. Edição Amigos do Livro, Lisboa., p. 160

segunda-feira, 21 de julho de 2014

"Da águia diz-se que nunca tem tanta fome que não deixe parte da sua presa às aves que andam à sua volta; as quais, não se podendo alimentar por si, é necessário que sejam cortejadoras dessa águia, porque assim se nutrem."...


 Leonardo Da Vinci. Bestiário, Fábulas e Outros Escritos.
 

domingo, 20 de julho de 2014

MANUEL DA SILVA
 
   Tinha-se-te metido na cabeça que, se fechasses os olhos, nunca mais os poderia abrir e, durante dezassete dias e dezassete noites, ninguém teve um momento de sossego nesta casa.
 
LEONOR
 
  E afinal, graças a Deus, tens adormecido e acordado centenas de vezes desde então ... (Um pequeno silêncio.)
 
 
Fernanda de Castro. Obras Completas. Teatro. A Pedra no Lago. Peça em Quatro Actos, 1943. Círculo de Leitores, Lisboa, 2006., p. 39
MANUEL SILVA
 
   A tua mãe adorava-te, estava sempre a temer que um sopro te levasse...Quando eras pequeno, tinhas um feitio infeliz... Não sabias brincar como as outras crianças e choravas em silêncio, como um homem. Foi tudo isto, com certeza, que a inquietou e lhe deu ideias absurdas...No fundo, creio que tinha pena de ti por ver que sofrias, como ela, dum excesso de sensibilidade. Como vês, nada disto tem a mínima importância.
 
 
Fernanda de Castro. Obras Completas. Teatro. A Pedra no Lago. Peça em Quatro Actos, 1943. Círculo de Leitores, Lisboa, 2006., p. 38/9
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