sábado, 18 de janeiro de 2014
«Porque não me falas? Porque nunca me falas? Talvez uma palavra tua me abrisse o coração! Esta noite, até me parece não ser tarde demais para recomeçarmos a nossa vida. Se eu não esperasse pela minha morte para te entregar estas páginas? Se te suplicasse, em nome do teu Deus, que as lesses até ao fim? Se te pudesse observar depois de terminares a leitura? Se te visse entrar no meu quarto, banhada em lágrimas? Se abrisses os braços para me pedir perdão? Se caíssemos de joelhos, um e outro?»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 79
Etiquetas:
autores franceses,
François Mauriac,
o nó de víboras
Oh!, não imagines que me tenho em grande conta.
«Oh!, não imagines que me tenho em grande conta. Conheço o meu coração, este pobre coração: um nó de víboras. Sufocado por elas, saturado do seu veneno, continua a bater debaixo de tanta agitação. Este nó de víboras, impossível de desatar, que seria necessário cortar com uma faca ou com uma espada: não vim trazer a paz, mas a espada.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 78
Etiquetas:
autores franceses,
François Mauriac,
o nó de víboras
sexta-feira, 17 de janeiro de 2014
a mastigada dor de não poder
com os dedos tocar o Sol e a Lua,
a mágoa vil de me apodrecer
rumor e cócega dos vermes que me tomam
até ficar apenas dos meus ossos
a mais ímpia e crua gargalhada,
quanto mais só me fico e demoro
os ombrais do destino aproximando,
choro, Senhor, de rastos choro,
miserando, Senhor, tão miserando,
que no côncavo do ventre do meu nada
o meu eco tornasse, em Vós tocando.
24/6/87, Herdade do Sobrado.
Jorge Guimarães. Odes Nocturnas. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores, Lisboa, 1990., p. 21
com os dedos tocar o Sol e a Lua,
a mágoa vil de me apodrecer
rumor e cócega dos vermes que me tomam
até ficar apenas dos meus ossos
a mais ímpia e crua gargalhada,
quanto mais só me fico e demoro
os ombrais do destino aproximando,
choro, Senhor, de rastos choro,
miserando, Senhor, tão miserando,
que no côncavo do ventre do meu nada
o meu eco tornasse, em Vós tocando.
24/6/87, Herdade do Sobrado.
Jorge Guimarães. Odes Nocturnas. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores, Lisboa, 1990., p. 21
LUPANAR
BASTAM-ME esses braços descarnados,
essas úlceras de carmim!
Quero o cheiro do teu corpo barato,
o enjoo dos teus seios,
a náusea de quem nos vê.
Ah, esquecer o mundo lá de fora
e ter versos violentos!
Esquecer mulheres honestas, amigos, livros,
o falso dos risos,
a mentira dos prantos.
Acordar os meus sentidos perdidos
em vícios procurados pelos cantos!
E tu, por exemplo,
serás a minha amante.
Atira-me beijos da janela
quando eu passar na rua
e ao sábado espera-me
para dormir contigo.
Aos outros dias, não, que eu tenho a minha vida...
(...)»
Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p.41
essas úlceras de carmim!
Quero o cheiro do teu corpo barato,
o enjoo dos teus seios,
a náusea de quem nos vê.
Ah, esquecer o mundo lá de fora
e ter versos violentos!
Esquecer mulheres honestas, amigos, livros,
o falso dos risos,
a mentira dos prantos.
Acordar os meus sentidos perdidos
em vícios procurados pelos cantos!
E tu, por exemplo,
serás a minha amante.
Atira-me beijos da janela
quando eu passar na rua
e ao sábado espera-me
para dormir contigo.
Aos outros dias, não, que eu tenho a minha vida...
(...)»
Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p.41
«(...)
Noite...
(apetece-me repetir o teu nome)
alagaram a cidade com mistério
- que brutos! que brutos os deuses!,
sinto mãos viscosas, aranhiços
a bajularem-me os braços,
andam fantasmas à solta, pelas ruas,
ossos de uma brisa
de voz cava.
É noite.
Quem saberá distinguir
o teu e o meu grito,
a febre e o arrepio,
as carícias e os punhais?
Noite.
Nesta rua onde me deslasso,
filósofo estremunhado,
há uma luz baça
que, ébria, tropeça
na calçada.
(...)»
Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p.28
Noite...
(apetece-me repetir o teu nome)
alagaram a cidade com mistério
- que brutos! que brutos os deuses!,
sinto mãos viscosas, aranhiços
a bajularem-me os braços,
andam fantasmas à solta, pelas ruas,
ossos de uma brisa
de voz cava.
É noite.
Quem saberá distinguir
o teu e o meu grito,
a febre e o arrepio,
as carícias e os punhais?
Noite.
Nesta rua onde me deslasso,
filósofo estremunhado,
há uma luz baça
que, ébria, tropeça
na calçada.
(...)»
Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p.28
quinta-feira, 16 de janeiro de 2014
PAISAGEM
Naquela nesga de paisagem andam vagabundos sem
[destino
aos encontrões à Lua.
Há segredos que rugem de calmaria.
Rochas que se deslocam e vão dormir lá ao fundo
no regaço soluçante dos juncos.
Chorar para quê?
...Acordaria o silêncio da trovoada.
Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p.24
[destino
aos encontrões à Lua.
Há segredos que rugem de calmaria.
Rochas que se deslocam e vão dormir lá ao fundo
no regaço soluçante dos juncos.
Chorar para quê?
...Acordaria o silêncio da trovoada.
Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p.24
A OUTRA CANÇÃO PERDIDA
Das mulheres
que na minha vida passaram
ficou-me aquela lembrança
de um fio de areia
sobre o regato sedento,
de qualquer frase
que se ficou no tinteiro,
de um cigarro caro
que não se fumou além do meio,
de um grito rouco
gorado nos ouvidos,
de folhas de um diário inacabado
que o tempo desbotou
de vinho
que não deixou nódoa no soalho
Sinto a alma ávida
como sempre
e um cansaço inútil
de bater a tantas portas.
Apenas, do logro,
me resta o travo
dos desejos amargos,
...
Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p.14/5
Etiquetas:
fernando namora,
poema,
poesia,
poetas portugueses
cabotino
nome masculino
1. cómico ambulante
2. actor pouco competente na sua profissão
3. figurado indivíduo que alardeia qualidades que não tem
MAR MANSO
Quando o mar amansa,
brando, mansamente,
um bocejo adormece a natureza.
Tudo dorme, o desespero e a esperança
e o mar,
manso,
tecendo palavras mansas,
é um realejo pérfido
burlando a vida.
Se o menino abre os olhos,
estremunhado,
ou a noiva desperta de um sonho escuro,
o mar
passa os seus dedos brandos por novelos de algas
e as suas histórias mansas
burlam a vida.
Tudo dorme, vento, noivas, crianças.
E o mar
é um monstro manso sem entranhas
escondendo os rugidos
em solidões de areia.
Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p.14/5
brando, mansamente,
um bocejo adormece a natureza.
Tudo dorme, o desespero e a esperança
e o mar,
manso,
tecendo palavras mansas,
é um realejo pérfido
burlando a vida.
Se o menino abre os olhos,
estremunhado,
ou a noiva desperta de um sonho escuro,
o mar
passa os seus dedos brandos por novelos de algas
e as suas histórias mansas
burlam a vida.
Tudo dorme, vento, noivas, crianças.
E o mar
é um monstro manso sem entranhas
escondendo os rugidos
em solidões de areia.
Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p.14/5
«(...)
(Não há moças nem risos às janelas.)
Cães uivam dentro da noite
despertando faces opadas
para lá dos vidros foscos.
Roupa já no fio baloiça
nos enxugadoiros das janelas
olhando os gatos e as peixeiras que passam na calçada
- figurantes de sempre para completar a nota...
Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p.12
(Não há moças nem risos às janelas.)
Cães uivam dentro da noite
despertando faces opadas
para lá dos vidros foscos.
Roupa já no fio baloiça
nos enxugadoiros das janelas
olhando os gatos e as peixeiras que passam na calçada
- figurantes de sempre para completar a nota...
Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p.12
quarta-feira, 15 de janeiro de 2014
«Agora sol na rua a fim de me melhorar a disposição, me reconciliar com a vida. Passa uma senhora de saco de compras: não estamos assim tão mal, ainda compramos coisas, que injusto tanta queixa, tanto lamento. Isto é internacional, meu caro, internacional e nós, estúpidos, culpamos logo os governos. Quem nos dá este solzinho, quem é? E de graça. Eles a trabalharem para nós, a trabalharem, a trabalharem e a gente, mal agradecidos, protestamos. Deixam de ser ministros e a sua vida um horror, suportado em estóico silêncio. Veja-se, por exemplo, o senhor Mexia, o senhor Dias Loureiro, o senhor Jorge Coelho, coitados. Não há um único que não esteja na franja da miséria. Um único. Mais aqueles rapazes generosos, que, não sendo ministros, deram o litro pelo País e só por orgulho não estendem a mão à caridade.
O senhor Rui Pedro Soares, os senhores Penedos pai e filho, que isto da bondade às vezes é hereditário, dúzias deles.
Tenham o sentido da realidade, portugueses, sejam gratos, sejam honestos, reconheçam o que eles sofreram, o que sofrem. Uns sacrificados, uns Cristos, que pecado feio, a ingratidão. O senhor Vale e Azevedo, outro santo, bem o exprimiu em Londres. O senhor Carlos Cruz, outro santo, bem o explicou em livros. E nós, por pura maldade, teimamos em não entender. Claro que há povos ainda piores do que o nosso: os islandeses, por exemplo, que se atrevem a meter os beneméritos em tribunal. Pelo menos nesse ponto, vá lá, sobra-nos um resto de humanidade, de respeito.
Um pozinho de consideração por almas eleitas, que Deus acolherá decerto, com especial ternura, na amplidão imensa do Seu seio. Já o estou a ver Senta-te aqui ao meu lado ó Loureiro Senta-te aqui ao meu lado ó Duarte Lima Senta-te aqui ao meu lado ó Azevedo que é o mínimo que se pode fazer por esses Padres Américos, pela nossa interminável lista de bem-aventurados, banqueiros, coitadinhos, gestores que o céu lhes dê saúde e boa sorte e demais penitentes de coração puro, espíritos de eleição, seguidores escrupulosos do Evangelho. E com a bandeirinha nacional na lapela, os patriotas, e com a arraia miúda no coração. E melhoram-nos obrigando-nos a sacrifícios purificadores, aproximando-nos dos banquetes de bem-aventuranças da Eternidade. As empresas fecham, os desempregados aumentam, os impostos crescem, penhoram casas, automóveis, o ar que respiramos e a maltosa incapaz de enxergar a capacidade purificadora destas medidas. Reformas ridículas, ordenados mínimos irrisórios, subsídios de cacaracá? Talvez. Mas passaremos sem dificuldade o buraco da agulha enquanto os Loureiros todos abdicam, por amor ao próximo, de uma Eternidade feliz. A transcendência deste acto dá-me vontade de ajoelhar à sua frente.
Dá-me vontade? Ajoelho à sua frente, indigno de lhes desapertar as correias dos sapatos. Vale e Azevedo para os Jerónimos, já! Loureiro para o Panteão, já! Jorge Coelho para o Mosteiro de Alcobaça, já! Sócrates para a Torre de Belém, já! A Torre de Belém não, que é tão feia. Para a Batalha. Fora com o Soldado Desconhecido, o Gama, o Herculano, as criaturas de pacotilha com que os livros de História nos enganaram.
Que o Dia de Camões passe a chamar-se Dia de Armando Vara. Haja sentido das proporções, haja espírito de medida, haja respeito. Estátuas equestres para todos, veneração nacional. Esta mania tacanha de perseguir o senhor Oliveira e Costa: libertem-no. Esta pouca vergonha contra os poucos que estão presos, os quase nenhuns que estão presos por, como provou o senhor Vale e Azevedo, como provou o senhor Carlos Cruz, hedionda perseguição pessoal com fins inconfessáveis. Admitam-no. E voltem a pôr o senhor Dias Loureiro no Conselho de Estado, de onde o obrigaram, por maldade e inveja, a sair. Quero o senhor Mexia no Terreiro do Paço, no lugar de D. José que, aliás, era um pateta. Quero outro mártir qualquer, tanto faz, no lugar do Marquês de Pombal, esse tirano.
Acabem com a pouca vergonha dos Sindicatos.
Acabem com as manifestações, as greves, os protestos, por favor deixem de pecar. Como pedia o doutor João das Regras, olhai, olhai bem, mas vêde. E tereis mais fominha e, em consequência, mais Paraíso. Agradeçam este solzinho.
Agradeçam a Linha Branca. Agradeçam a sopa e a peçazita de fruta do jantar.
Abaixo o Bem-Estar. Vocês falam em crise mas as actrizes das telenovelas continuam a aumentar o peito: onde é que está a crise, então? Não gostam de olhar aquelas generosas abundâncias que uns violadores de sepulturas, com a alcunha de cirurgiões plásticos, vos oferecem ao olhinho guloso? Não comem carne mas podem comer lábios da grossura de bifes do lombo e transformar as caras das mulheres em tenebrosas máscaras de Carnaval. Para isso já há dinheiro, não é? E vocês a queixarem-se sem vergonha, e vocês cartazes, cortejos, berros.
Proíbam-se os lamentos injustos. Não se vendem livros? Mentira. O senhor Rodrigo dos Santos vende e, enquanto vender, o nível da nossa cultura ultrapassa, sem dificuldade, a Academia Francesa. Que queremos? Temos peitos, lábios, literatura e os ministros e os ex-ministros a tomarem conta disto.
Sinceramente, sejamos justos, a que mais se pode aspirar? O resto são coisas insignificantes: desemprego, preços a dispararem, não haver com que pagar ao médico e à farmácia, ninharias. Como é que ainda sobram criaturas com a desfaçatez de protestarem? Da mesma forma que os processos importantes em tribunal a indignação há-de, fatalmente, de prescrever. E, magrinhos, magrinhos mas com peitos de litro e beijando-nos um aos outros com os bifes das bocas seremos, como é nossa obrigação, felizes.»
António Lobo Antunes
Etiquetas:
António Lobo Antunes,
autores portugueses,
crónicas
segunda-feira, 13 de janeiro de 2014
«Porque o cheiro mais forte da minha infância é o fedor pútrido dos grãos de milho a germinar.»
Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 65
«Nas brincadeiras com o Tur, ela tinha de ser sempre o cavalo e o Tur é que conduzia a carruagem. E ela caiu e partiu o pé, mas só mais tarde é que se veio a descobrir. O Tur espicaçou-a com o chicote e afirmou que ela estava a fazer fitas, porque já não queria ser o cavalo. Era numa rua íngreme, disse ela, quando se brincava com o Tur, ele comportava-se sempre como um sádico. E eu conto-lhe do jogo da centopeia. As crianças são divididas em duas centopeias. Uma tem de puxar a outra para o seu campo, por cima de uma linha de giz, porque a quer comer. Em cada uma das centopeias, as crianças têm de se agarrar pela barriga e puxar com toda a força. A gente fica toda partida, eu até tive pisadelas nas ancas e um ombro deslocado.»
Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 64
domingo, 12 de janeiro de 2014
«Se mastigássemos bem, o caroço ficava muito liso e quente na língua. Estas ginjas nocturnas eram uma felicidade, mas aumentavam ainda mais a fome.
(...)Na viagem de regresso, a noite era de breu.
(...) Então, a gente nada mais tinha, a não ser aquela longa noite vazia em companhia dos piolhos.»
Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 62
(...)Na viagem de regresso, a noite era de breu.
(...) Então, a gente nada mais tinha, a não ser aquela longa noite vazia em companhia dos piolhos.»
Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 62
Madeira e Algodão
« Havia dois tipos de sapatos. As galochas de borracha eram um luxo. Os sapatos de madeira, uma catástrofe: só a sola era de madeira, uma tabuazinha da grossura de dois dedos. A parte de cima era de serapilheira, com uma tira estreita de couro à volta. O pano era pregado à sola, ao longo da tira de couro. Como a serapilheira era demasiado fraca para os pregos, rasgava-se sempre, a começar pelos calcanhares. Os sapatos de madeira eram altos, tinham ilhoses para apertar, mas não havia atacadores. A gente metia-lhes arame fino por dentro e apertava-o nas pontas, retorcendo em espiral. A serapilheira esfarrapava-se também à volta dos ilhoses ao fim de poucos dias.
Com sapatos de madeira não se consegue dobrar os dedos. Não se levantam os pés do chão, arrastam-se as pernas. De tanto arrastar, estas ficam rígidas nos joelhos. Era um alívio quando as solas de madeira rasgavam pelo calcanhar, os dedos dos pés ficavam um pouco livres e conseguia-se dobrar melhor o joelho.
Nos sapatos de madeira, não havia direito nem esquerdo e só três tamanhos: minúsculo, enorme e, muito raramente, médio. Na rouparia, a gente procurava dois sapatos do mesmo tamanho, no monte de madeira com lona. »
Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 49
«Havia muitos dias em que tinha de rir para dentro de mim. Havia muitos outros em que o hotel desabava redondo por dentro, quer dizer, por dentro de mim, e vinham-me as lágrimas aos olhos. Queria voltar a erguer-me, mas já não me reconhecia.»
Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 48
«O barbeiro estava a aparar-lhe os pêlos do nariz com uma tesoura enferrujada. Terminada que foi também a segunda narina, escovou-lhe os pelinhos que ficaram no queixo, como formigas, e voltou-se um pouco de costas para o espelho, para o Prikulitsch não o ver piscar o olho. Estás satisfeito, perguntou ele. Disse o Tur: Com o meu nariz, sim.»
Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 45
«Para mim, nesse dia, o importante foi ter tocado no único assunto que te punha fora de ti, te obrigava a sair da tua indiferença e a dares-me atenção, embora só para me odiares. »
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 50
...Sim, nesse ano conheci o amor.
«...Sim, nesse ano conheci o amor. Foi a minha insaciabilidade que deitou tudo a perder. Não me bastou tê-la na penúria, quase na miséria. Queria que estivesse sempre à minha disposição, sem ver ninguém. Tinha de estar presa, ou livre, conforme os meus caprichos ou os momentos de disponibilidade. Era minha. O meu gosto de possuir, usar e abusar estende-se aos seres humanos. Gostaria de ter tido escravos. Desta vez, pensei ter encontrado uma vítima à medida das minhas exigências. Vigiava-lhe até os olhares...Mas...lá estou a esquecer a promessa de não falar nisto. Ela partiu para Paris, não aguentou.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 48
Eu esperei
Eu esperei
Mas o dia não se fez melhor
E o sujo não se quis limpar,
Inventou mais flores em meu redor
Como se eu não fosse olhar!
Enfeitou as ruas para cobrir
Terra seca de não semear
Deram-me água turva a beber
Dizem cura e força e solução
Como se eu não fosse olhar!
Eu esperei
Mas o fumo não saiu da estrada
Arde o sonho em troca de nada
Dizem festa, mas é solidão
Como se eu não fosse olhar!
A mentira não se fez verdade
E a justiça não se fez mulher
A revolta não se fez vontade
Braços novos sem educação
Sangue velho chora de saudade!
Eu esperei
Dizem luta mas não há destino
Dão-me luzes mas não é caminho
Dizem corre mas não é batalha
Como quem não quer mudar!
Esta corda não nos sai das mãos
Esta lama não nos sai do chão
Esta venda não deixa alcançar.
Cantam "armas" mas não é amor
Mão no peito mas não é amar
Fato justo mas sem lealdade
Cavaleiro mas já sem moral
Braços sujos que se vão esconder
Braços fracos não são de lutar
Braços baixos não se querem ver
Como se eu não fosse olhar!
Eu esperei
Pelo tempo transparente em nós
Pelo fruto puro de escolher
Pela força feita de alegria
Mas o povo dorme na ilusão!
E a tristeza é forma de sinal
Liberdade pode ser prisão...
Meu deus, livra-nos do mal
E acorda portugal...
Etiquetas:
música portuguesa,
Tiago Bettencourt,
vídeos
«Tornei-me perito na arte de destruir os sentimentos na altura exacta em que a vontade desempenha papel decisivo no amor; no momento em que, à beira da paixão, ainda estamos livres e conscientes para retrocedermos ou nos abandonarmos.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 48
«...Mas eu perdi a fé nas pessoas, ou, antes, na possibilidade de agradar a alguém.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 47
Subscrever:
Mensagens (Atom)