quarta-feira, 29 de setembro de 2010

«...Esses dez anos esvoaram-se-me como dez meses. É que, em realidade, as horas não podem mais ter ação sobre aqueles que viveram um instante que focou toda a sua vida. Atingido o sofrimento máximo, nada já nos faz sofrer. Vibradas as sensações máximas, nada já nos fará
oscilar. Simplesmente, este momento culminante raras são as criaturas que o vivem. As que o viveram ou são, como eu, os mortos-vivos, ou — apenas — os desencantados que, muita vez, acabam no suicídio.»

Mário de Sá-Carneiro. A confissão de Lúcio., p.2

terça-feira, 28 de setembro de 2010

«Acontece que, tendo-me voltado, nesta ocasião, para o meu percurso, eu me dei conta de que, para não me perder de mim próprio, como na história célebre do Pequeno Polegar dos Irmãos Grimm, fui deixando muitas pedras brancas no meu caminho, mais numerosas do que eu podia imaginar, algumas hoje já desconhecidas de mim próprio. Hoje, nem essas pedras brancas me servem para eu, através delas, reinventar o meu próprio passado. Mas elas estão lá, podem ser lidas por outros, revisitadas como objecto de curiosidade ou objecto de interesse, se o tiverem.»


Eduardo Lourenço a 21 de Janeiro de 2003, por ocasião de uma homenagem pelos seus sessenta anos de vida literária e filosófica.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Green Night

(Summer, 1982)

We walked down the path to breakfast.
The morning swung open like an iron gate.

We sat in Adirondack chairs and argued
for hours about the self—it wasn’t personal—

and the nature of nature, the broken
Word, the verse of God in fragments.

We trotted back and forth to readings.
The trees were the greenest I had ever seen.

We cut bread from a large brown loaf
at a long wooden table in the mountains.

A farmer hayed the meadows
and the afternoon flared around us.

Pass the smoky flask. Pass the cigarettes:
twenty smoldering friends in a package.

We swam in the muddy pond at dusk.
The sky was a purple I had never seen.

Someone was always hungover,
scheming with rhymes, hanging out.

Nothing could quench our thirst for each other.
At the bonfire, we flamed with words.

The houses were named after trees.
I slept with someone at the top of a maple.

It was a green night to be a poet in those days.
We didn’t care if the country didn’t care about us.


Edward Hirsch
Wagner. Horas tenho também de fantasia,
Mas aspiração tal em mim não sinto.
De bosques e de prados cedo farto,
Nunca invejei aos pássaros as asas.
Como o prazer do estudo outro nos leva
De livro em livro, de uma a outra página!
Assim se tornam belas, tediosas
Noites de inverno, e calorosa vida
Os membros nos aquece, e, ai!, se acaso
Um douto pergaminho desenrolas,
É o céu que sobre ti baixar se digna!


J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 55

domingo, 26 de setembro de 2010

"Boston Common (Men Sleeping on Grass)"


Com teu rir descarnado, tu, caveira,
Que me dizes, senão que em outro tempo,
Como o meu, delirou teu pobre cérebro,
A luz do dia procurou, com vasto
Desejo de verdade, e vagou triste
Em deprimente, lúgubre crepúsculo?




J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 40
«Mas corações não ganhareis vós nunca,
Se o próprio coração vos ficar mudo.»



Negrito
J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 35
( Toma o livro e pronuncia misteriosamente o signo do
Espírito. - Reluz uma chama avermelhada. O Espírito aparece na chama)


J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 33

37.

«Contudo esperamos que este morrer
Seja ilusão só, a enganar;
Que o rio que ora passa a correr
Encontre, inda que longe, um mar;
Que para além do frágil saber
Uma vida maior vá guardar.»





Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 89
« Como alargado em ópio, ao meu olhar
Meu próprio ser um mistério se fez assim;
A Vida no medo já vem habitar
E a Loucura, como o sopro, está em mim.»

Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 89
«Qualquer burro escoucinha o leão caído
Que, em vida, imóvel o fazia temer,»


Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 55



«Gastando com um filho ao colo as forças que parecem falhar,»



(21. poema Elegia)



Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 49
« Tarde, tarde de mais aprenderás agora,
Já com a voz baixa e de humilde porte,
Já com a alma esmagada sem o garbo de outrora,
O pior mal que os deuses nos dão em sorte.»


(21. poema Elegia)



Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 47
«À profunda agonia sujeitado;
O que sente o trinco do portal da razão
Cair, com um som de conclusão,
Como algo que se fecha e para sempre passado.»





Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 45
«Ora bem, não sei porquê eu tinha vontade de sair à noite. Em geral prefiro deitar-me e levantar-me cedo, mas há dias em que se sente a necessidade dum pouco de álcool, dum pouco de calor humano, de companhia. Devo ser um sentimental.»
Vernon Sullivan. Morte aos feios. Traduzido do americano por Boris Vian. Versão portuguesa de António Sabler. A Regra do Jogo, Edições, 1981., p. 5

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

terça-feira, 21 de setembro de 2010

«É necessário ter o caos cá dentro, para gerar uma estrela.»


Nietzsche

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

17.

Homens do presente


Homens do presente, nada do passado,
Antes de serdes as coisas que vemos,
Quem podia ter sabido ou pensado
Que seríeis hoje aquilo que temos?
Ah, passantes pela mesma via,
Quem pôde pensar-vos antes deste dia?

Homens do presente e pó de amanhã,
Ao passar dos anos aonde ireis ter?
Que rude mudez ou ânsia em pressa vã
Irá registar vossa dor ou prazer?
Ondas ou cristas do mar desta vida,
Quem vos pensará passado este dia?

Só o génio pode o fogo atiçar
Que na natureza em vós abrigais;
Só o génio pode a lira tocar
E erguer vosso nome aos céus dos mortais;
O génio pode a morte romper
E o nada de ontem num tudo verter.

Mas a virtude, como os choros humanos,
Pelos areais depressa bebida,
Mergulha no pó dos passados anos
E nem sabereis onde está escondida.
Que o génio, então, possa ser laureado;
Que o pó de amanhã seja eternizado.



Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 29

domingo, 19 de setembro de 2010

14.

Soneto

Pudesse o que penso exprimir e dizer
Cada pensamento oculto e silente,
Levar meu sentir moldado na mente
A ser natural perante o viver;

Pudesse a alma verter, confessar
Os segredos íntimos em meu ser;
Grande eu seria, mas não pude aprender
Uma língua bem, que expressasse o pesar.

(...)


Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 29

13.

Cá como lá


(...)


«Pois quando no pensar o escuro pesa
E sobre a tua alma a noite desce,
Não regressam de novo os teus pesares?
Não fica a tua alma presa às sombras?
Não sentes em ti que o medo cresce?»




Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 29

Briony

2.

A morte do titã


Do grande ventre da noite a manhã rompeu em dor,
Sobre a terra palpitante ronca a feroz a trovoada,
O Titã acorda enfim, sua cara ensanguentada,
E o rude carvalho arranca, brutal, em seu estertor.

Em agonia mortal delira e, ao seu rugido,
Aves tremem, a costa afunda-se em mar e de terror
Rios secam, montes sucumbem no seu interior,
Rochedos fendem e o manto das nuvens é rompido.

Uiva o relâmpago, os mares extravasam em estrondo;
O gigante vacila e então, com embate hediondo
Cai, e dos tronos brilhantes as estrelas irrompem.

Caiu; a terra alarmada, em louca fúria ferida,
Fendeu, rompeu, vergou; no ar, o eco da praga ouvida;
Mas no céu, o som continuou a sorrir em seu desdém.


Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 11

«(...) a obra literária deve ''educar o gosto''. Gosto que o público, por definição,não possui e que é, portanto, dever do romancista formar.»


Fedeli, M. A mão que balança o berço. Funções do feminino em Júlio Dinis. São Paulo, 2007 Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas,.p.34
«E depois, menino, a literatura leva a tudo em Portugal.»


Castanheiro, em A Ilustre Casa de Ramires
«Toute oeuvre est réponde à une question, et la question qu'à son
tour doit se poser l'interprète, consiste à reconnaître [...]ce que
fut la question d'abord posé, et comment fut articulée la réponse»

Jean Starobinski

sábado, 18 de setembro de 2010

«Ardo como de mosto embriagado;
Ânimo sinto de arrojar-me ao mundo,
Da terra os gozos partilhar e as penas,
Lutar com a tormenta , e ao estrondo
De naufrágio cruel suster o rosto!»


J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 32/3
«Teu mundo é isto?! Chama-se isto um mundo?!
E perguntas ainda porque ansioso
Teu coração no peito confrange,
E oculto sofrer inexplicado
A energia vital em ti comprime?
Em lugar de vivente natureza.
Em cujo seio Deus criou os homens,
Rodeiam-te entre a podridão e o fumo
Somente ossadas nuas e esqueletos.»



J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 30/1

Nothing To Hold On To


Vejo só como os homens se afadigam.



J. W. Goethe. Fausto.Negrito Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 22
240 Falar de inspiração pouco aproveita,
Nunca ao homem que hesita ela se mostra.
Se vos dais por poetas, que a poesia
A vosso mando ceda. O que é preciso
Já de mais o sabeis; licor bem forte
245 Desejamos beber; pois sem demora
No-lo dai preparado. Não se cumpre
Amanhã o que hoje não for feito,
E nem um dia só perder se deve.
Um homem resoluto, do possível
250 Lança mão com ardor, fugir não o deixa
E na empresa prossegue, assim lhe é a força.
Sabeis que cada qual nos nossos palcos
Exp'rimenta o que quer; pois neste dia
Prospectos não poupeis nem maquinismos.
255Da lua e sol servi-vos, e aos centos
Espalhai as estrelas. Fogo e águas,
Rochedos, bosques, pássaros não faltem.
Do bastidor no acanhado espaço
A criação inteira se desdobre,
260E caminhai, com rapidez medida,
Desce o céu, pela terra, ao fundo inferno.


J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 19/20
«Paixões, razão, engenho e sentimento
Em vossos cantos brilhem; mas cuidado,
Que neles a loucura também entre.



J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 15
Trazeis convosco de bem doces dias
A saudosa lembrança. Sombras caras
Ressurgem numerosas; qual remota
Tradição esquecida, vão volvendo
Primeiro amor, antigas amizades;
A memória cruel com dor recorda
A marcha errante que seguiu a vida,
E nobres peitos lembra, que, frustrados
Pela sorte de dias deleitosos,
Antes de mim a vida terminaram.


Dedicatória


J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 11

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Sonho de prisão

No violeta da noite ouço canções brônzeas. A cela é branca, o catre é branco. A cela é branca, cheia de um rio de vozes que morrem nos angélicos berços, das vozes angélicas brônzeas está cheia a cela branca. Silêncio: o violeta da noite: em arabescos através das grades brancas o azul escuro do sono. Penso na Anika: estrelas desertas nas montanhas nevadas: estradas brancas desertas: e depois igrejas de mármore brancas: pelas estradas Anika canta: um bobo de olho infernal guia-a, ele grita. Agora a minha aldeia entre as montanhas. Eu no parapeito do cemitério em frente à estação estou a olhar o deambular preto dos carros, para cima, para baixo. Ainda não é noite; silêncio olhudo de fogo: os carros comem recomem o silêncio preto no deambular da noite. Um comboio: esvazia-se chega em silêncio, parou: a púrpura do comboio morde a noite: do parapeito do cemitério os olhares vermelhos que se esvaziam na noite: e depois tudo, parece-me, se transforma num estrondo: Duma janela em fuga eu? Eu que levanto os braços na luz!! ( o comboio passa-me por baixo com um estrondo de demónio).

Canti Orfici

Rita Ciotta Neves. Dino Campana, Um Poeta Maldito (seguido da tradução de quatro poemas) .Babilónia n.3 pp. 121

Para a Nossa Senhora da Ponte quem é quem é que acendeu a lâmpada – sente-se
No quarto um cheiro a podre: há
No quarto uma chaga vermelha languescente.
As estrelas são botões de madrepérola e a noite veste-se de veludo:
E treme a noite fátua: é fátua a noite e treme mas há
No coração da noite há,
Sempre uma chaga vermelha languescente.


Canti Orfici



Rita Ciotta Neves. Dino Campana, Um Poeta Maldito (seguido da tradução de quatro poemas) .Babilónia n.3 pp. 121

Nemzedékek (1969) · Generations


« (...) sobre a relação entre Literatura e Loucura que é, desde sempre, uma relação complexa e fecunda . Na literatura italiana do século XX, por exemplo, ela manifesta-se através da voz de grandes escritores, como Italo Svevo, que em La coscienza di Zeno cria a personagem do alienado e do «anormal» que é mais «normal» de muitos outros. Ou de Luigi Pirandello que, à volta da temática da loucura, constrói as suas melhores obras teatrais; ou de Cesare Pavese, que igualmente fala de marginalização social e do «ser diferente»; ou ainda Italo Calvino, que cria a ambígua personagem de Palomar, um alieno neste mundo, um estranho.
São todos autores que falam da loucura. Dino Campana não fala dela, mas vive-a na pele, no corpo martirizado, na alma atormentada e recria-a através do poder mágico das palavras.
Nele, a Vida transforma-se, definitivamente, em Literatura.»


Rita Ciotta Neves. Dino Campana, Um Poeta Maldito (seguido da tradução de quatro poemas) .Babilónia n.3 pp. 115
«Segundo Sebastiano Vassalli, escritor e estudioso de Campana, a presumida loucura do poeta muito tem a ver com os seus sucessivos ataques de sífilis, uma doença que ele terá contraído já em 1915. Doença inconfessável, naquela altura considerada «vergonhosa» e pela qual nunca foi verdadeiramente tratado. A sífilis destrói-lhe inexoravelmente o sistema nervoso e envenena-lhe o sangue, mas no manicómio preferem curá-lo com repetidos choques eléctricos, tanto que ele, ironicamente, se chama a si mesmo «o homem eléctrico»



Rita Ciotta Neves. Dino Campana, Um Poeta Maldito (seguido da tradução de quatro poemas) .Babilónia n.3 pp. 114
«Ma se voi avete un qualsiasi bisogno di creazione non sentite che monta intorno a voil’energia primordiale di cui inossare i vostri fantasmi?» (1)

«Mi volevano matto per forza» (2)

Dino Campana


1 «Mas se vós tiverdes uma qualquer necessidade de criação não sentireis que sobe à vossa
volta a energia primordial que dá ossos aos vossos fantasmas?»
2 «Queriam à força que eu fosse louco »

O ESTUDANTE DE LATIM

«Das várias coisas boas que havia na loja em grandes quantidades, poucas delas subiam as íngremes escadas, pelo menos para Karl Bauer, porque a comida da Sra. Kusterer era pouca e nunca o saciava. Sem ser isso, viviam ambos muito amistosamente e ele tinha o quarto como um príncipe tem um palácio. Ninguém o incomodava, podia fazer o que quisesse e ele fazia muita coisa. Os dois abelheiros na gaiola seriam a coisa menos importante, mas ele também tinha uma espécie de oficina de marceneiro e no fogão fundia o chumbo e zinco e no Verão tinha licença e lagartos numa caixa - eles desapareciam sempre pouco tempo depois através de buracos que nunca eram os que apareciam na rede. Além disso tinha também o violino e quando não estava a ler ou a carpinteirar, estava seguramente a tocar violino a qualquer hora do dia ou da noite.
E assim o jovem passava com prazer todos os dias e nunca se aborrecia, até porque não lhe faltavam livros que copiava quando encontrava qualquer coisa. Lia bastante mas, na realidade, era-lhe tudo um pouco indiferente, a não ser os contos de fadas e lendas, assim como as tragédias em verso.»


Hermann Hesse.Contos de Amor. Trad. Maria Adélia Silva Melo. Difel, 1995., p.19/20
« É ela quem, quando lhe apraz,
Ordena que às árvores subam as lagartas.»





Frédéric Mistral. Miréia. Trad. Manuel Bandeira. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p.85

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Um rio longo e rigoroso...

Sobre os dois beijos

«O facto de não podermos um com o outro tinha uma boa razão. Ele tratava-me com sobrançaria ou com uma bonomia insuportavelmente irónica, e como o meu entendimento ultrapassava a minha idade, esta maneira desprezível de lidar comigo magoava-me profundamente com o decorrer do tempo. Como bom observador também eu tinha descoberto algumas das suas intrigas e segredos, o que obviamente lhe era muito desagradável. Por vezes tentou ganhar-me através de um comportamento hipocritamente ansioso, mas eu não caía nessa. Se eu fosse um pouco mais velho e mais esperto, tê-lo-ia apanhado através da sua redobrada gentileza e tê-lo-ia feito cair - pessoas mimadas e com sucesso são tão fáceis de enganar! Mas eu tinha crescido apenas o suficiente para o odiar, e era ainda demasiado criança para conhecer outras armas como a aspereza e a obstinação, e em vez de lhe devolver as setas que me tinha mandado, devidamente envenenadas, enterrava-as mais profundamente na minha própria carne com a minha indignação impotente.»

Hermann Hesse.Contos de Amor. Trad. Maria Adélia Silva Melo. Difel, 1995., p.12

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Család (1959) · Family


1

Sobre a Morte


Quando penso que os dias a passar
Em passos breves, mas em peso sentidos,
Minh'alma levam a espaços temidos
E a juventude à morte vai dar,

Por estranho e triste me pareça
Que em breve (ora vivo) eu vá morrer,
Vaga, incerta dor que pesa em meu ser
Faz com que a mente em pavor desfaleça.

Contudo mesmo em raiva, choro e pena
Cada instante é consolo ao coração
E com riso acolherei cada gemido:

Do fundo desespero a esp'rança acena.
Na morte não vejo a libertação -
É melhor o mau que o desconhecido.


Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 11
Tu, Senhor Deus de minha pátria,
Tu, que nasceste entre pastores,
Dá alento à minha voz, fogo às minhas palavras.
Tu o sabes: em meio à verdura,
Aos raios do sol, à orvalhada,
Quando os figos amadurecem
Vem o homem como um lobo e pilha a árvore toda.


Canto Primeiro: A granja das almezas



Frédéric Mistral. Miréia. Trad. Manuel Bandeira. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p.43

A Lamartine

Te consagro Miréia: é ela a flor dos meus anos;
A minha alma e o meu coração;
-Uva da Crau, com as folhas todas, que te envia,
Humildemente, um aldeão.


Maillane (Bouches du Rhône), 8 de setembro de 1859.


Frédéric Mistral. Miréia. Trad. Manuel Bandeira. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p.39

domingo, 12 de setembro de 2010

Segunda Meditação

Existe uma grande diferença entre todos os homens e Charlot. Todos os homens se riem dos peixes coloridos e Charlot chora ao ver os peixes coloridos.
Em nenhuma estética se utilizou o pranto desta maneira tão pura.
O pranto foi sempre uma consequência. Charlot faz do pranto uma causa, fonte isolada sem relação com o tema que o produz. Pranto redondo. Pranto em si mesmo.
O riso oferece-se aos peixes coloridos porque o riso é abundante e não exige esforço. Após oferecer o riso à mulher, ao céu e às brisas alegres da primavera, ainda resta o riso para os elefantes e para os peixes coloridos, os calmos e muito distantes peixes coloridos.
O pranto é outra coisa. Oferece-se ao amor e ao morto que se despede. Quem chora gasta-se como uma vela. Todos são avaros das suas lágrimas por esta razão.
(...)
Frederico García Lorca. A Morte da mãe de Charlot. Trad. Fernando Ilharco Morgado. Farândola, Paris, 1999.,p. 17/8

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

«E ofertar o sangue morno de recém-nascidos.»



Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.53
FAUSTO - Tivesse eu tantas almas como estrelas há no céu,
Todas elas haveria de dar por Mefistófeles.
Por ele serei o Imperador do mundo,
Farei uma ponte através dos ares instáveis
Para com um bando de homens passar o oceano;




Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.49

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Tennessee Williams: Um Eléctrico Chamado Desejo

[Cena 3; I, 3]

Trovão. Entram Lúcifer e quatro diabos. Fausto dirige-se-lhes.

FAUSTO - Agora que a sombra triste da noite
Rompe do mundo antárctico até ao céu,
Embaciando o empíreo com o seu bafo negro,
Para ver o toldado rosto de Oríon,
Começa, Fausto, os teus encantamentos,
E vê se ao teu apelo os diabos obedecem,
Pelos sacrifícios e orações que lhes ofertaste.



Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.45
Se negamos ter pecado, a nós próprios nos enganamos e ne-
huma verdade existe em nós.
Mas parece então
Que temos de pecar e, por conseguinte, morrer.
Ai...temos de morrer, e morrer para todo o sempre.
Como chamais a esta lei? Che sarà, sarà:
O que for se há-de ver. Teologia, adeus.



Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.35

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Sebastião Salgado, San Juan, Chimborazo, Ecuador, 1979


Sobre os autores

«É a partir da apresentação dos seus escritos, expostos ao olhar do mundo, que devemos ajuizar da sua capacidade, mas não dos seus costumes nem da sua pessoa.»



Montaigne. Dos Livros. Trad. Telma Costa. Edição conjunta da Fnac com a Teorema, comemorativa do dia mundial do livro. Lisboa, 1999., p. 42
«Os aprendizes (os que não são capazes de uma leitura aprofundada), a esses vi-os enfarinhar a cara, travestir-se e contorcer-se em movimentos e esgares selvagens para nos preparar para o riso.»


Montaigne. Dos Livros. Trad. Telma Costa. Edição conjunta da Fnac com a Teorema, comemorativa do dia mundial do livro. Lisboa, 1999., p. 36
«De cem membros e rostos que cada coisa tem, pego num, só para o largar, ou para o aflorar, por vezes para penetrar nele até ao osso. Dou-lhe um apontamento, não o mais exaustivo mas o mais profundamente que sei. E prefiro sempre captá-los por algum ponto de vista inusitado. Atrever-me-ia a tratar a fundo qualquer matéria, se me conhecesse menos. Semeando aqui uma palavra, ali outra, amostras destacadas da peça, soltas, sem desígnio nem promessa, não cuido tratar bem a questão, nem de me imiscuir nela, sem variar, quando me agrada; e entrego-me à dúvida e à incerteza, e à minha forma mestra, que é a ignorância.»
«Deixemos de tomar para desculpa as qualidades externas das coisas: é a nós que cabe responder por elas. O nosso bem e o nosso mal só a nós os devemos.»




Montaigne. Dos Livros. Trad. Telma Costa. Edição conjunta da Fnac com a Teorema, comemorativa do dia mundial do livro. Lisboa, 1999., p. 16/7

Montaigne: Dos Livros

Pensa que é mais importante aprender a reflectir do que a adquirir e expor conhecimentos, pelo que define a leitura «como uma conversa com homens desaparecidos».

(...)

Percebeu que não há saber sem atenção e paixão; só uma relação pessoal e crítica com os livros produz homens verdadeiramente livres; percebeu que não podemos ler todos os livros e que a relação com o saber é um exercício individual. Exercício de leitura, reflexão e recriação.


cit. Conceição Moreira in Montaigne. Dos Livros. Trad. Telma Costa. Edição conjunta da Fnac com a Teorema, comemorativa do dia mundial do livro. Lisboa, 1999., p. 11/14

domingo, 5 de setembro de 2010

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

É importante foder (ou não foder)?
É evidente que não, não é importante.
Fode quem fode e não fode quem não quer.
Com isso ninguém tem nada
Mas mesmo nada
A ver.

O que tanto me tolhe é não poder confiar
Numa coisa que estica e depois encolhe,
Uma coisa que é mole e se põe a endurar e
A dilatar a dilatar
Até não se poder nem deixar andar
Para depois se sumir
E dar vontade de rir e d'ir urinar.

Isso eu o quis dizer naquele verso louco que tenho ao pé:
«O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é»
Verso que, como sempre, terá ficado por perceber (por mim até)
................................................................................................................
Também aquela do «outrora-agora» e do «ah poder ser tu sendo
eu» foi um bom trabalho
Para continuar tudo co'a cara de caralho
Que todos já tinham e vão continuar a ter
Antes durante e depois de morrer.


Mário Cesariny. Cesariny Uma Grande Razão os poemas maiores. Assíro & Alvim. Lisboa, 2007.,p.141
Entra um diabo.
Ordeno-te que vás mudar de forma;
Estás horrendo demais para me servir:
Vai e volta feito velho franciscano,
Que parecer santo é o que mais convém a um diabo.
Sai o Diabo.

Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.45.
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