quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Children Learning in the Jewish Grade School

Juízos dos cansados

Todos os fatigados praguejam contra o Sol;
O valor das árvores para eles é - sombra!


F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 145

Almas estreitas

São-me odiosas as almas estreitas:
De nada bom, quase de nada mau são feitas.



F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 135

Sentença do violento

Nunca peças! Deixa essa lamúria!
Toma - peço-te! - toma sempre!


F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 133

PRA O ALTO

«Qual o melhor modo de subir a este monte?»
Sobe sempre, e não penses nisso.



F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 133

terça-feira, 9 de novembro de 2010




Quando um machado derruba uma árvore, há cinzas que ficam espalhadas. Hoje são as minhas, amanhã serão as tuas Pai.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Paraíso, XXXI, 108

Diodoro Sículo refere a história de um deus despedaçado e disperso. Quem, ao andar pelo crepúsculo ou ao traçar uma data do seu passado, não sentiu alguma vez que se tinha perdido uma coisa infinita?
Os homens perderam uma cara, uma cara irrecuperável,  e todos queriam ser aquele peregrino (sonhado no empíreo, sob a Rosa) que em Roma vê o sudário de Verónica e murmura com fé: Jesus Cristo, Deus meu, Deus verdadeiro, era assim, pois, a tua cara?
Há uma cara de pedra num caminho e uma inscrição que diz O verdadeiro Retrato da Santa Cara de Deus de Jaén; se realmente soubéssemos como foi, seria nossa a chave das parábolas e saberíamos se o filho do carpinteiro foi também filho de Deus.
Paulo viu-a como uma luz que o derrubou; João, como o Sol quando resplandece na sua força; Teresa de Jesus, muitas vezes, banhada em luz tranquila, e não pôde nunca precisar a cor dos olhos.
Perdemos esses traços, como pode perder-se um número mágico, feito de cifras habituais; como se perde para sempre uma imagem no caleidoscópio. Podemos vê-los e ignorá-los. O perfil de um judeu no subterrâneo é talvez o de Cristo; as mãos que nos dão umas moedas num postigo talvez repitam as que uns soldados, um dia, cravaram na cruz.
Talvez um traço da cara crucificada espreite em cada espelho; talvez a cara tenha morrido, se tenha apagado, para que Deus fosse todos.
Quem sabe se esta noite não a veremos nos labirintos do sonho e não o saberemos amanhã.



Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.47/48

domingo, 7 de novembro de 2010

«Porque no princípio da literatura está o mito, e também no fim.»


Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.45

Mutações

Num corredor vi uma seta que indicava uma direcção e pensei que aquele símbolo inofensivo fora outrora uma coisa de ferro, um projéctil inevitável e mortal, que entrou na carne dos homens e dos leões e enevoou o Sol nas Termópilas e deu a Harald Sigurdarson, para sempre, seis pés de terra inglesa.
Dias depois, alguém me mostrou uma fotografia de um cavaleiro magiar; uma corda com várias voltas rodeava o peito da sua montada. Soube que a corda, que antes andara pelo ar e submetera os touros na pastagem, não era mais que uma gala insolente do arreio dos domingos.
No cemitério do Oeste vi uma cruz rúnica, lavrada em mármore vermelho; os braços eram curvos e afastados e rodeava-os um círculo. Essa cruz apertada e limitava a outra, de braços livres, que por sua vez figura o patíbulo em que um deus padeceu, a «máquina vil» insultada por Luciano de Samosata.
Cruz, corda e flecha, velhos utensílios do homem, hoje rebaixados ou elevados a símbolos; não sei por que maravilham, quando não há na terra uma só coisa que o esquecimento não apague ou que a memória não altere e quando ninguém sabe em que imagens o traduzirá o porvir.

 

Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.43

A testemunha

Num estábulo que está quase à sombra da nova igreja de pedra, um homem de olhos cinzentos e barba cinzenta, estendido entre o cheiro dos animais, humildemente busca a morte como quem busca o sono. O dia, fiel a vastas leis secretas, vai deslocando e confundindo as sombras no pobre recinto; lá fora estão as terras aradas e uma vala atulhada de folhas mortas e um rasto de lobo no barro negro onde começam os bosques. O homem dorme e sonha, esquecido. O toque da oração desperta-o. Nos reinos de Inglaterra, o som dos sinos é já um dos hábitos da tarde, mas o homem, desde pequeno, viu a cara de Woden, o horror divino e a exultação, o torpe ídolo de madeira recamado de moedas romanas e de vestimentas pesadas, o sacrifício dos cavalos, cães e prisioneiros. Antes do alvorecer morrerá, e com ele morrerão e não voltarão as últimas imagens imediatas dos ritos pagãos; o mundo será um pouco mais pobre quando este saxão tiver morrido.
Feitos que povoam o espaço e que chegam ao fim quando alguém morre pode maravilhar-nos, mas uma coisa, ou um número infinito de coisas, morre em cada agonia, salvo se existir uma memória do universo, como conjecturam os teósofos. No tempo houve um dia que apagou os últimos olhos que viram Cristo; a batalha de Junín e o amor de Helena morreram com a morte de um homem. Que morrerá comigo quando eu morrer, que forma patética ou inconsistente perderá o mundo? A voz de Macedonio Fernández, a imagem de um cavalo rubro no baldio de Serrano e de Charcas, uma barra de enxofre, na gaveta de uma secretária de acaju?



Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.39/40

Intrépido

Onde estiveres, cava fundo!
Lá em baixo é que está a fonte!
Deixa gritar os homens escuros:
«Sempre é lá baixo - o inferno!»



F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 125

119

Tortos andam os grandes homens e os rios,
tortos, mas para o seu destino:
é essa a sua melhor coragem,
não têm medo dos caminhos tortos.



F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 117

103

O poeta que é capaz de mentir
ciente e voluntariamente,
é o único que pode falar verdade.


Fragmentos de Ditirambos Dionisíacos (Canções de Zaratustra)




F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 109

82

És frágil?
Cautela com mãos de criança?
A criança não sabe viver
sem quebrar qualquer coisa...



Fragmentos de Ditirambos Dionisíacos (Canções de Zaratustra)




F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 99

43

«Mais que qualquer outro vidente viste coisas negras e
[más:
nenhum sábio atravessou ainda as delícias do inferno».




Fragmentos de Ditirambos Dionisíacos (Canções de Zaratustra)




F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 83

33

Sou apenas um fazedor-de-palavras:
que importam as palavras!
que importo eu!



Fragmentos de Ditirambos Dionisíacos (Canções de Zaratustra)




F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 79

22

Um lobo mesmo depôs a meu favor
e disse: « Tu uivas melhor ainda do que nós, os lobos».



Fragmentos de Ditirambos Dionisíacos (Canções de Zaratustra)




F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 75
(...)

Tu dás-te em sacrifício, tua riqueza tortura-te -,
tu dás-te,
não te poupas, não te amas:
a grande tortura obriga-te sempre,
a tortura dos celeiros repletos, do coração repleto -
mas ninguém já te agradece...

Tens de te fazer mais pobre,
ó sábio Não-sábio!
se quiseres ser amado.
Só se ama a quem sofre,
só se dá amor a quem tem fome:
dá-te primeiro a ti, ó Zaratustra!

- Eu sou a tua Verdade...




F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 63
« - Silêncio! A minha Verdade vai falar! - »



F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 61
Um relâmpago. Avista-se Diónisos em beleza esmeraldina.

Diónisos:

Sê prudente, Ariadne!...
Tu tens orelhas pequenas, tens as minhas orelhas:
Mete nelas uma palavra prudente! -
Não temos que odiar-nos primeiro, para podermos amar-
[mo-nos?...
Eu sou o teu labirinto...

 
F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 47

sábado, 6 de novembro de 2010

«Que daqui ninguém deduza que a literatura garante a felicidade: digo que quem renuncia à sua vocação por «razões práticas», comete a mais imprática idiotice. Além da ração normal de desdita que lhe cabe na vida como ser humano, terá a ração suplementar de má consciência e da dúvida. Assim, em fins de 1958, numa pensão da rua do Doutor Castelo, perto do Reitro, se perpetrou o acto da loucura: «hei-de ser escritor». Era muito mau tudo o que escrevera até então - uma obra seca de teatro, meia-dúzia de poemas, alguns contos e inúmeros artigos. Convenci-me de que a razão dessa mediocridade residia na minha indecisão e cobardia anteriores, em não ter assumido a literatura como primordial. Terminara um livro de contos, que encontrou editor em Barcelona (misteriosamente seria o berço de publicações de todos os meus livros), e o resultado foi mais deprimente ainda. Escrevera-os quase todos em Lima, nos resquícios de tempo livre que me deixavam múltiplos e fastidiosos afazeres. Justifiquei assim esse fracasso: só podia ser-se escritor se uma pessoa organizasse a sua vida em função da literatura; se uma pessoa pretendesse - como até então acontecera comigo - organizar a literatura em função de uma vida consagrada a outros senhores, o resultado seria a catástrofe.»

 
Mário Vargas Llosa. História secreta de uma novela.Tradução de António José Massano. Mínima 1. Assírio&Alvim, Lisboa, 1973., p.42/43

Gina Lollobrigida: Torero | Madrid, 1958

«(...) comecei a descobrir esta incómoda verdade: a matéria-prima da literatura é não a felicidade mas a infelicidade humana, e os escritores, tal como os abutres, preferem alimentar-se de carne putrefacta.»


Mário Vargas Llosa. História secreta de uma novela.Tradução de António José Massano. Mínima 1. Assírio&Alvim, Lisboa, 1973., p.41
«Havia algo de maligno e enigmático, uma atmosfera diabólica em torno desta vivenda a que demos o nome de «a casa verde». Tínhamos sido proibidos de nos aproximarmos dela. Segundo as pessoas crescidas, era perigoso e pecaminoso aproximar-se desse lugar, e era impensável entrar nele, diziam que seria o mesmo que morrer ou entrar no próprio inferno.»
 
 
Mário Vargas Llosa. História secreta de uma novela.Tradução de António José Massano. Mínima 1. Assírio&Alvim, Lisboa, 1973., p.13
«Aquilo que o novelista exibe de si mesmo não são os seus encantos secretos, como a rapariga desenvolta, mas demónios que o atormentam e obcecam, a parte mais feia de si mesmo: as suas nostalgias, as suas culpas e os seus rancores.»


Mário Vargas Llosa. História secreta de uma novela.Tradução de António José Massano. Mínima 1. Assírio&Alvim, Lisboa, 1973., p.9
«Devagar, devagar, devagar...Um livro que mantém a velocidade do mundo exterior não oferece muito.»


Gonçalo M. Tavares. Actual, Nº 1984 Jornal Expresso, 6 de Novembro de 2010., p.12
«(...) Gosto de estar num café a observar pessoas. Quando estamos sentados, reparamos numa só pessoa e construímos uma micronarrativa. É como se usássemos aquela técnica antiga da fisionomia, de ler os rostos, que os médicos usavam quando queriam evitar métodos intrusivos. Transformavam-se em adivinhos científicos. Como não posso fazer análises clínicas ao sangue das pessoas, testes ao carácter, à inteligência, ou às emoções, utilizo o que tenho disponível: os rostos. Quando caminho, é quase instintivo reparar nos vários rostos, comportamentos, gestos, perceber se as pessoas vêm de uma coisa boa ou má. Nos cafés, sinto-me como se estivesse numa torre - uma mesa escondida que me permite ir observando. É isso que me interessa. O campo não tem uma multidão de rostos. »



Gonçalo M. Tavares. Actual, Nº 1984 Jornal Expresso, 6 de Novembro de 2010.

Acredita nas coincidências?

Há ligações que nós próprios fazemos quando estamos atentos a um determinado pormenor. O critério que escolhermos ao acaso ganha uma lógica que passa a dominar o mundo.



Gonçalo M. Tavares. Actual, Nº 1984 Jornal Expresso, 6 de Novembro de 2010.
''A crença é um dos pontos centrais do meu trabalho. Os meus livros falam das máquinas, mas em confronto com a crença''


Gonçalo M. Tavares. Actual, Nº 1984 Jornal Expresso, 6 de Novembro de 2010.

Georgia, URSS, 1932

«(...)
 - Você é um romântico - sentenciou. - A estima da posteridade não vale muito mais que o contemporâneo, que não vale nada e que se consegue com algumas moedas.
-Conheço a sua maneira de pensar - respondeu Quiroga. - Em 1852, o destino, que é generoso e que queria sondá-lo até ao fundo, ofereceu-lhe uma morte de homem, uma batalha. Você mostrou-se indigno desse dom porque a peleja e o sangue lhe causaram medo.
-Medo? - repetiu Rosas. - A mim, que domei potros no sul e depois todo um país?
Pela primeira vez, Quiroga sorriu.
- Sei bem, - disse com lentidão - que você executou mais de uma proeza equestre, segundo o testemunho imparcial dos seus capatazes e peões; mas naqueles dias, na América, e também a cavalo, executaram-se outras proezas que se chamam Chacabuco e Junín e Palma Redonda e Caseros.
Rosas ouviu-o sem se alterar e replicou assim:
-Eu não precisei de ser valente. Uma proeza minha, como você diz, foi conseguir que homens mais valentes que eu lutassem e morressem por mim. Santos Pérez, por exemplo, que acabou consigo. A coragem é uma questão de resistência; uns são mais resistentes, outros menos, mas tarde ou cedo todos afrouxam.
-Talvez seja assim - disse Quiroga, - mas eu vivi e morri, e até ao dia de hoje não soube o que é o medo. E agora vou para que me apaguem e dêem outra cara e outro destino, porque a história farta-se dos violentos. Não sei quem será o outro, o que farão de mim, mas sei que não terei medo.
- A mim basta-me ser quem sou - disse Rosas - e não quero ser outro.
- Também as pedras querem ser pedras para sempre - disse Quiroga - e são-no durante séculos, até que se desfazem em pó. Eu pensava como você quando entrei na morte, mas aqui aprendi muitas coisas. Repare bem, já estamos ambos a mudar.
Mas Rosas não fez caso dele e disse, como se pensasse em voz alta:
- Pode ser que não esteja habituado a estar morto, mas estes lugares e esta discussão parecem-me um sonho, e não um sonho sonhado por mim, mas por outro, que ainda está por nascer.
Não falaram mais, porque nesse momento Alguém os chamou.»



Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.30/31
« - Rosas, você nunca me compreendeu. E como poderia entender-me, se foram tão diversos os nossos destinos?»


Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.30

Delia Elena San Marco

 
Despedimo-nos numa das esquinas do Once.
Da outra vereda voltei a olhar; você tinha-se voltado e disse-me adeus com a mão.
Um rio de veículos e de gente corria entre nós; eram cinco horas de uma tarde qualquer; como iria eu saber que aquele rio era o triste Aqueronte, o insuperável.
Não nos vimos mais e um ano depois você tinha morrido.
E agora eu busco essa memória e olho-a e penso que era falsa e que por detrás da despedida trivial estava a infinita separação.
À noite saí depois de comer e reli, para compreender estas coisas, o último ensinamento que Platão põe na boca do seu mestre. Li que a alma pode fugir quando morre a carne.
E agora não sei se a verdade está na aziaga interpretação ulterior ou na despedida inocente.
Porque se não morrem as almas está certo que nas suas despedidas não haja qualquer ênfase.
Despedir-se é negar a separação, é dizer: Hoje fingimos que nos separamos, mas ver-nos-emos amanhã. Os homens inventaram o adeus porque sabem de algum modo imortais, ainda que se julguem contingentes e efémeros.
Delia: um dia reataremos (junto a que rio?) esse diálogo incerto e perguntar-nos-emos se, numa cidade que se perdia numa planície, fomos Borges e Delia.
 
 
 
 
Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.27

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Diálogo sobre um diálogo

A. - Distraídos a discorrer sobre a imortalidade, tínhamos deixado que anoitecesse sem acender a lâmpada. Não nos víamos as caras. Com uma indiferença e uma doçura mais convincentes que o fervor, a voz de Macedonio Fernández repetia que a alma é imortal. Assegurava-me que a morte do corpo é de todo insignificante e que morrer tem de ser o facto mais nulo que pode suceder a um homem. Eu brincava com a navalha de Macedonio: abria-a e fechava-a. Um acordeão vizinho despachava infinitamente a Cumparsita, essa ninharia consternada que agrada a muita gente porque lhes mentiram, dizendo que é velha...Propus a Macedonio que nos suicidássemos, para discutir sem estorvo.
Z. - (brincalhão). - Mas suspeito que por fim não se decidiram.
A. - (já em plena mística). - Francamente não me recordo se nessa noite nos suicidámos.


Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.15

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

O Fanal

Aqui, onde entre mares cresceu a ilha,
pedra de ara súbito como torre erguida,
aqui acende sob um negro céu
Zaratustra os seus fogos das alturas, -
fanal pra navegantes sem rumo,
ponto de interrogação para os que têm resposta...

Esta chama de ventre esbranquiçado
- sua cobiça lança línguas a distâncias frias,
dobra o pescoço para alturas sempre mais puras -
cobra erguida a pino, de impaciência:
este sinal o pus eu em frente a mim.

A minha própria alma é esta chama:
insaciável de distâncias novas,
lança ao alto, ao alto o seu ardor silente.
Porque fugiu Zaratustra dos bichos e dos homens?
Porque se escapou de repente de toda a terra firme?
Seis solidões conhece ele já -,
mas o próprio mar deixou-o subir, sobre o monte ele se fez chama,
a uma sétima solidão
lança buscando agora o seu anzol por sobre a fronte.

Navegantes sem rumo! Destroços de astros velhos!
Ó mares do futuro! Ó céus inexplorados!
Lanço agora o anzol a tudo o que é solitário:
dai resposta à impaciência da chama,
agarrai para mim, pescador nos altos montes,
a minha sétima última solidão! - -



F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 35

Paisagem com inundação

Uma paisagem absolutamente canónica, melhorada pela inundação.
Apenas se vê o topo das árvores, campanários e cúpulas.
O que se quer dizer assoma à boca suflando pela emoção
e do novelo das palavras apenas se salva 'era'.
Analogamente, o espelho reflecte do veterano a testa e a calvície,
mas não o seu rosto, para não falar dos colhões. Por baixo, a água
leva tudo o que se escreveu e disse. Por cima,
um farrapo de nuvem. E tu de pé no meio da água.
Provavelmente o lugar de acção é algures nos Países Baixos.
antes de serem os diques e as rendas, nomes como De Moll
ou Van Dyke. Ou então na Ásia, nos trópicos, onde estão habituados
à chuva que amacia o solo, só que tu não és arroz.
Vê-se que está a subir há muito, gota a gota, dia após dia, ano após ano,
e que toda esta água doce anseia por novos hectares salgados.
E chegou a altura de pôr a criança aos ombros, como um periscópio,
para avistar o fumo dos navios do inimigo que se aproximam.
 
1993
 
 
 
 
Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.237
«Um dia estes anos serão
vistos como uma laje de mármore
raiado de veias (...) »
 
 
Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.233

Holy Virgin, 2003

À memória de Clifford Brown

Não é a cor azul, é a cor frio.
É a cor do Atlântico em meados de Fevereiro.
E seja como for que estejas vestido, estás nu,
deitado de costas, num bloco de gelo.
 
Não é um simples bloco de gelo, feito de gelo,
mas o argumento de que todo o calor está ausente.
Está sozinho no oceano, e tu estás em cima dele
sozinho; e o som do trompete é como o mercúrio cadente.
 
Não é uma voz ingénua que arranha no escuro,
mas os dedos gelados em ré maior, sem luvas;
e uma gota de chuva cintilante eleva-se para o zénite,
para observar do alto o espaço por essa retina.
 
Não é uma simples retina, é um brocado faiscante,
uma nova língua musical feita de riscas e estrelas. O gelo
não se funde, tal um foco de luz errando
para a escuridão dos bastidores onde se esconde o pólo.
 
 
Fevereiro de 1993
 
 
 
Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.225

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Ode ao cimento

Tu sobreviver-me-ás, meu bom e velho cimento,
como eu sobrevivi, parece, a alguns homens que
me tomaram, também, por uma espécie de arruamento
e citavam a cor dos olhos, ou o semblante.
 
Por isso, não por inveja, mas porque somos parentes,
gabo o teu inanimado, poroso aspecto
-menos duradouro, padecendo de juntas trementes,
mas mesmo assim grato ao arquitecto.
 
Aplaudo-te as origens humildes - insignificantes,
melhor dito - o rugido selvagem, o grasnido hiante
que uma finalidade abstracta no entanto combina
perfeitamente e está fora do meu alcance.
 
Não porque o igual reproduza o igual,
mas porque o futuro prefere acorrer a um
encontro absolutamente imprevisível
e se envolve em longo e petrificante manto.
 
1995
 
 
Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.209
 
«Como Confúcio indiferente,
quase inconsciente,
poderá não nos amar,
mas ''Sempre'' há-de murmurar.»
 
 
Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.191
«Tu, chora os massacrados.
Reza pelos que são acocorados
algures num buraco de cimento
e que têm a traição pela frente.»
 
 
 
Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.177

terça-feira, 2 de novembro de 2010


«Terei de reconhecer que falo de mim mais do que devia mas, em prosa, ninguém me voltará a encontrar noutro sítio – prometo»


Eugénio de Andrade in À Sombra da Memória (1993)

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Papers and Books Thrown Away, 1974

Entre aves de rapina

Quem aqui quer descer,
quão depressa
a profundeza o traga!
- Mas tu, Zaratustra,
amas ainda o abismo,
queres igualar o abeto?

Esse finca raízes, ali
onde mesmo o penedo, arrepiado,
olha para as profundas - ,
fica hesitante à beira dos abismos
onde tudo em volta
quer precipitar-se:
entre a impaciência
do cascalho à solta, do regato que se despenha
sofrendo, paciente, duro, calado
solitário...

Solitário!
Pois quem se atreveria
a ser hóspede aqui,
a ser teu hóspede?...
Talvez uma ave de rapina:
essa, sim, suspende-se
com regozijo dos cabelos
do mártir inabalável,
com loucas gargalhadas,
gargalhadas de aves de rapina...

Para quê tão inabalável?
-escarnece ela cruel:
É preciso ter asas quando se ama o abismo...
não se deve ficar dependurão
como tu, enforcado! -

Ó Zaratustra,
crudelíssimo Nimrod!
Há pouco ainda caçador de Deus,
rede de agarrar toda a Virtude,
seta do Mal!
Agora -
por ti mesmo perseguido,
presa de ti mesmo,
em ti mesmo afuroado...

Agora -
solitário contigo,
em diálogo com a própria ciência,
entre cem espelhos
falso ante ti mesmo,
entre cem lembranças
incerto,
cansado a toda a ferida.
frio a todo o gelo,
esganado nos teus próprios baraços,
Conhecedor de ti mesmo!
Carrasco de ti mesmo!

Para que é que te amarraste
com o baraço da tua sabedoria?
Para que te atraíste
ao paraíso da velha Serpente?
Para que te insinuaste
em ti - em ti?...

Um doente agora,
doente do veneno da Serpente;
um prisioneiro agora
que tirou a pior sorte:
na própria mina
trabalhando agachado,
em ti mesmo encovado,
minado para dentro de ti mesmo,
canhestro,
hirto,
um cadáver -,
sobrepujado pela carga de cem cargas,
sobrecarregado de ti,
um Sábio!
um Conhecedor de si mesmo!
o sábio Zaratustra!...

Buscavas a carga mais pesada:
e a ti te encontraste -,
e não podes arrojar-te a ti de ti...

À espreita,
agachado,
alguém que já nem pode estar de pé!
Inda hás-de concrescer em aleijão co'a tua sepultura,
Espírito aleijado!

E há pouco ainda tão soberdo,
nas soberbas andas da tua soberba!
Há pouco ainda o solitário sem Deus,
em convívio com o Diabo,
o príncipe escarlate de toda a altivez!...

Agora -
entre dois nadas
enroscado,
um ponto de interrogação,
um enigma estafado -
um enigma para aves de rapina...

- elas te «solverão»,
já estão com fome da tua «solução»,
já esvoaçam à volta de ti, o seu enigma.
à volta de ti, enforcado!...
Ó Zaratustra!
Conhecedor de ti mesmo!...
Carrasco de ti mesmo!...


F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 27-33

Última Vontade

Morrer assim,
como eu o vi morrer então -,
o Amigo que atirou divinamente
relâmpagos e olhares à minha escura juventude:
arrogante e profundo,
um bailador na batalha -,

entre guerreiros o mais jovial,
entre vencedores o mais difícil,
erguendo-se, um destino sobre o seu destino,
duro, reflectindo o passado e o futuro - :

tremendo porque venceu,
exultando porque venceu morrendo...,

mandando enquanto morria
- e mandou que aniquilassem...

Morrer assim,
como eu o vi morrer então:
vencendo, aniquilando...


F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 25

domingo, 31 de outubro de 2010

*

Para o fugitivo não há amigo nem fiel companheiro:
isto é mais doloroso do que o próprio exílio.

Teógnis. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.71
*

Que ninguém te convença a amares um homem vil,
ó Cirno. Para que serve um homem vil como amigo?
Não te salvaria do duro trabalho nem da desgraça,
nem na ventura nada quereria partilhar contigo.
Favor vão é fazer bem a gente reles:
é o mesmo que semear o mar cinzento.
Não é semeando o mar que terás boa ceifa,
nem fazendo bem aos maus terás boa recompensa.
Pois os maus têm uma mente insaciável. Se dás passo em falso,
desaparece a amizade provinda de todos os actos anteriores.
Mas muito se comprazem os nobres pela forma como são
tratados e mantêm no futuro a gratidão e a memória dos favores.


Teógnis. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.66
***

M.B
Querida, hoje saí de casa já muito ao fim da tarde
para respirar o ar fresco que vinha do oceano.
O sol fundia-se como um leque vermelho no teatro
e uma nuvem erguia a sua cauda enorme como um piano.
Há um quarto de século adoravas tâmaras e carne no braseiro,
tentavas o canto, fazias desenhos num bloco-notas,
divertias-te comigo, mas depois encontraste um engenheiro
e, a julgar pelas cartas, tornaste-te aflitivamente idiota.
Ultimamente têm-te visto em igrejas da capital e da província,
em missas de defuntos pelos nossos comuns amigos; agora
não param (as missas). E alegra-me que no mundo existam ainda
distâncias mais inconcebíveis que a que nos separa.
Não me interpretes mal; a tua voz, o teu corpo, o teu nome
já não mexem com nada cá dentro. Não que alguém os destruísse,
só que um homem para esquecer uma vida, precisa pelo menos
de viver outra ainda. E eu há muito que gastei tudo isso.
Tu tiveste sorte; onde estarias para sempre - salvo talvez
numa fotografia - de sorriso trocista, sem uma ruga, jovem, alegre?
Pois o tempo, ao dar de caras com a memória, reconhece a invalidez
dos seus direitos. Fumo no escuro e respiro as algas podres.
1989
Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.63


Exortação

IV
 
Nas montanhas, avança lentamente. Se tiveres de rastejar, rasteja.
Majestosas ao longe, insignificantes ao perto para quem as veja,
as montanhas são a forma que uma superfície posta ao alto tem
e o carreiro sinuoso que parece horizontal e se sustém
é de facto vertical. Deitado na montanha, estás
de pé; de pé, estás deitado. O que prova que hás
de cair para seres livre. Assim do medo se triunfa,
e da vertigem do abismo e da embriaguês dos cumes.
 
V
 
Se gritarem ''Ei, tu aí!'', não te dês por achado. Sê surdo e mudo.
Mesmo que saibas a língua, não abras a boca por nada deste mundo.
Faz por não te expores, de perfil ou de frente; de vez em
quando, simplesmente não laves a cara. E quando degolarem
um cão à tua frente com uma serra, não te arrepies. Caso fumes,
apaga o cigarro com uma bisga. Quanto a roupa, veste-te
de cinzento, a cor da terra - sobretudo a de baixo -,
para reduzir a tentação de assim te meterem no caixão.
 
VI
 
Quando no deserto fizeres uma paragem, forma uma seta
com pedras - assim, se acordas de repente, sabes logo por ela
que direcção tomar. De noite, os demónios no deserto
perseguem os viajantes. Quem escuta o seu concerto
pode facilmente perder-se: um passo ao lado e é o além.
Espíritos, fantasmas, demónios, no deserto estão em casa. Também
tu, com os pés enterrados na areia, saberás isto sem errar
quando de ti só a alma for o que restar.
 
 
 
Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.47

André Kertész: Falsche Bucher Wie Im Bucherschrank Eines Neureich, c. 1920s

«(...) ''sem advogar a substituição do Estado por uma biblioteca'', Brodskii acredita na auto-educação, no esforço da apreensão individual do mundo e do conhecimento pela prática da escrita, não só porque talvez os livros tenham sido para ele a melhor coisa que conheceu ao longo duma vida carregada de experiências fora do comum, mas porque escrever e ler livros era a única forma de, ao despertar para a vida adulta com a invasão da Hungria e o esmagamento da revolta pelos tanques soviéticos, garantir para si um espaço onde a mentira, nenhuma mentira penetraria. E como preencheria esse espaço, só a ele caberia saber.
 
 
 
 
Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.13
«Para o poeta, escrever poemas e viver são uma e a mesma coisa. ''Se a arte ensina alguma coisa (ao artista, em primeiro lugar), é a singularidade (privatness) da condição humana. Sendo a mais antiga e também a mais literal forma de actividade individual (private enterprise), [a arte] confere ao homem, disso consciente ou inconsciente, um sentido da sua unicidade, de individualidade, de ser à parte - fazendo-o assim passar de animal social a um 'Eu' autónomo. Podem partilhar-se muitas coisas: uma cama, um bocado de pão, convicções, uma amante, mas não um poema, digamos, de Rainer Maria Rilke. (...) um poema (...) dirige-se ao homem a sós, estabelece com ele relações directas, sem quaisquer intermediários.''»


Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.12
«No tempo dos príncipes havia um, e dos mais belos, rico e moço que, andando um dia a passear no campo, por distracção pôs o pé na borda de um poço raso e caiu no fundo dele.
O sítio era ermo. Daquele poço já ninguém se serviu porque estava seco e atafulhado de silvas.
O triste moço, todo arranhado, quando deu consigo no buraco negro onde caíra barafustou, gritou e gastou as unhas nas pedras, mas tudo em vão. Rouco, quem o ouvisse já não suporia ser a sua uma voz humana. (...)»




Irene Lisboa. Uma Mão Cheia de Nada Outra de Coisa Nenhuma. Livraria Figueirinhas, Porto, 1989., p. 123

Journal d’un curé de campagne AKA Diary of a Country Priest (1951)

*

Quem mantém o pensamento separado da língua é mau
companheiro, ó Cirno, pois é melhor inimigo do que amigo.


Teógnis. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.65
*

Não me ames com palavras, tendo noutro lado mente e coração,
se me amas e se fiel é a tua intenção.
Ama-me com a mente pura, ou então rejeita-me
e odeia-me e opta pelo conflito aberto.

Teógnis. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.65

*

Encontrarás poucos homens, ó Cirno, que sejam amigos
fiéis em empreendimentos difícieis: homens
que ousem estar sintonizados contigo,
a ponto de partilharem por igual das coisas boas e das más.

Teógnis. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.65
*

Para grandes empresas confia em poucos homens,
para que não obtenhas, ó Cirno, uma dor insustentável.


Teógnis. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.65

sábado, 30 de outubro de 2010

Female nude between bench and window

28 Amor pesado (fr. 460 PMG)

O fardo do Amor.

Anacreonte. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.60

21 Cabelo cortado (fr. 414 PMG)

Cortaste a flor perfeita do teu cabelo macio.

Anacreonte. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.59

14 Sedento (fr.389 PMG)

És amável para homens estranhos: dá-me de beber, estou sedento.


Anacreonte. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.57

8 As rosas da Piéria (fr. 55 PLF)

Morta jazerás e de ti não haverá jamais memória
nem saudade no futuro: pois não participaste das rosas
da Piéria, mas invisível na mansão de Hades
andarás para trás e para a frente no meio dos mortos sombrios.


Safo. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.38.

1 Elogio do prazer (fr. 1 W)

O que é a vida? O que é o prazer, sem a dourada Afrodite?
Que eu morra, quando estas coisas já não me interessarem:
o amor secreto, as suaves ofertas e a cama,
que são flores da juventude sedutoras
para homens e mulheres. Mas quando chega a dolorosa
velhice, que faz até do homem belo um homem repulsivo,
tristes preocupações sempre lhe moem os pensamentos
e já não sente prazer em contemplar a luz do sol,
mas é odiado pelos rapazes e desonrado pelas mulheres.
Assim áspera foi a velhice que o deus impôs.



Mimnermo. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.31

10 Nocturno

Dormem os píncaros das montanhas e as ravinas,
os promontórios e as torrentes,
e todas as raças rastejantes que a terra negra alimenta:
as feras das montanhas e a raça das abelhas
e os monstros nas profundezas do mar purpúreo;
dormem as raças das aves de longas asas.



Álcman. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.20

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

O do Senhor da Casaquinha Verde

E o Senhor da casaquinha verde?
Que terrível sonho eu tive com ele!
Entrava num conto que me lembro de ter ouvido. Era um farsante! Saía do seu buraquinho, falava, corria as sete partidas do mundo a intrigar uns e outros, e não passava de um lagarto.
Que noite tão assustada eu passei por causa do senhor da casaquinha verde! Sonhei que estava a dormir com ele. Via-o mesmo ao pé da minha cara e sentia-me cheia de arranhões e babujada.
Mas que havia de eu fazer? Horripilante companhia! Levanto-me repentinamente da cama e atiro-me da janela abaixo. Até parece que voo. Fujo, fujo, fujo...e o senhor da casaquinha verde perseguindo-me.
Começa a chover. Não é água que cai, infelizmente, apesar de eu ter medo da chuva. São bolotas, são pedras, são bugalhos, que me magoam tanto! É castigo, penso eu, estou a ser castigada, mas de quê?
Atrás de mim o lagarto faz uma restolhada medonha, mas eu nunca me volto, nem quero ver nada.
Não quero ver...e sem querer olho...mas como é que não morro logo de susto? Perseguem-me centenas de lagartos, enormes, e todos com olhos a fuzilar. Que bocarras, que bocarras! Caio de joelhos no chão, falece-me a coragem. Estou num círculo de lagartos ferozes, estou no meio de navalhas afiadas....
Oiço então a voz do senhor de casaquinha verde: queres voltar comigo para a cama?
Ele a falar-me!
Choro, cheia de medo, e o círculo das navalhas aperta-se, aperta-se cada vez mais. Vou morrer. Já morri. Sei que estou morta, o que me não dá alegria nem tristeza. Deixo de pensar nos lagartos, vou descendo não sei para onde. É terrível e delicioso, escorrego sempre, sempre, sem jamais parar.
Acordei cansada. E jurei a mim mesma nunca mais ouvir nem ler histórias de lagartos.



Irene Lisboa. Uma Mão Cheia de Nada Outra de Coisa Nenhuma. Livraria Figueirinhas, Porto, 1989., p. 116-118
«A menina ainda é uma criança. Mas tudo já aqui se vê, tem umas linhas muito claras.
Parecia a mulher que estava a ler:
Gosta do que não tem e do que ainda não conhece, não é verdade, minha beleza? Pois, com isso tudo ainda há-de vir a ser muito afortunada. Já perdeu a sua mãezinha....
Sem mesmo querer fiz-lhe com a cabeça que sim.
E tem madrasta.
Pus-me séria.
Coitadinha!
As lágrimas vieram-me aos olhos.
Não se entristeça, minha bela menina. Ainda há-de sair daqui e ser muito afortunada, que lho digo eu. Nos seus olhos há uma luz que me não engana. Esta marca, vê a menina esta estrela de bicos? é como fala. (...)»





Irene Lisboa. Uma Mão Cheia de Nada Outra de Coisa Nenhuma. Livraria Figueirinhas, Porto, 1989., p. 108

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

«A quem confiar as minhas alegrias e as minhas dores, as secretas paixões quixotescas da minha juventude, o violento choque, mais tarde, com Deus e os homens, e finalmente o orgulho selvagem da velhice que arde mas se recusa, até à morte, a transformar-se em cinza? A quem direi eu quantas vezes escorreguei e caí, ao escalar com os pés e mãos a encosta abrupta de Deus, quantas vezes voltei a erguer-me, coberto de sangue, para recomeçar a subir?Onde encontrar uma alma trespassada de mil golpes mais insubmissa, como a minha, para me confessar a ela?»
 
 
 
Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 11
«E apresso-me, antes de usar o «capuz negro» e descer ao pó, porque essa linha sangrenta será o único traço que deixará a minha passagem na Terra: o que escrevi, o que fiz, foi inscrito e gravado na água e desapareceu.»
 
 
 
Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 10
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