segunda-feira, 28 de setembro de 2015

VISITA À CASA MATERNA

Neste dia de maio, vim ver-te, Mãe,
Vim a esta tua casa
Construída de pedras cinzentas,
Enfeitada por uma cruz e um coração de mármore.
Vim repousar a cabeça sobre o teto do teu lar.
Não te trago muitas aflições, neste dia de festa,
Não estou em desespero.
Sou um homem maduro, mais velho
Vinte anos do que tu, quando me deixaste nesta terra,
Adolescente entre os homens.
Já vi mais coisas do que viste e tive mais esperanças do que tu,
Que eras lúcida e triste desde a juventude.
Recolhi muitos desenganos; e seguirei até a morte assim
Como sou, incerto, cego, orgulhoso,
Com as desesperanças se acumulando sempre.

Aqui estou, Mãe, diante de ti, homem completo,
De cabelos grisalhos, machucado e exaltado pela vida.
Um homem ferido e estranhamente compensado pela vida,
Um homem já meio do outro lado, vergado,
Curvado ao peso de pecados e erros,
De responsabilidades, de contradições e de amarguras.
Aqui estou diante de ti, Mãe,
Aqui vim
Pedir-te que me perdoes e me justifiques.


Sou quase um velho; durante mais de meio século
Andei pelas estradas da terra, atravessei desertos,
Contemplei paisagens geladas, toquei no fundo
Da minha própria miséria e das misérias alheias.

Durante muitos anos, enquanto dormias aqui,
Fui levado para exílios e encontros de toda a espécie.
Este teu filho é um homem vivido,
É um navio provado por muitos mares,
Um navio batido, curtido por ventos e tempestades.

É um navio perdido na névoa, este homem que aqui está,
Este ser usado que procura sua mãe.
É um velho navio, é um velho homem.
Não se parece, em quase nada,
Com aquele a quem disseste adeus, para sempre,
Na hora da partida, em junho de 1922.

É um ser cansado, um pássaro exausto
Que procura o seu ninho remoto
Nesta casa de pedra em que te escondes,
Em que repousas de uma breve existência.
É um homem este que aqui está,
Em quem mal reconhecerias o filho teu,

O sensível e verde aventureiro, pronto
para os nobres impulsos,
Mas tão incerto e tão fantasioso,
Tão incapaz de perseverar e de crer longamente,
O ser matinal que tremias, Mãe, ao deixá-la, perdido
No mundo, o ser cujo destino te preocupava
Diante da revelação de tantas inconstâncias.


É um homem experimentado este que aqui está, Mãe,
mas é um poeta.
E, porque é um poeta, muito lhe será perdoado.
E, porque é um poeta, não perdeu o dom
De olhar a face da Infância
E de te ver, Mãe,
Como te está vendo nesta hora,
Com os mesmos olhos com que te contemplava
Outrora, quando eras a sua Estrela,
E o seu abrigo, o centro do seu mundo,
A força e a lei que o conduziam,
Quando eras tudo, toda a sua alegria e proteção.

Deus permitiu que em teu filho
Não se perdesse o dom de olhar
O mundo em certos instantes
Com a poesia dos que não foram poluídos,
Dos que não foram enganados pela vida.
Aqui estou, debruçado sobre o teu tÚmulo, Mãe,
E eis que te ergues diante de mim,
E eu te vejo não como adormeceste em Deus,
Pálida, vestida com o burel do Carmo,
Mas matinal e alegre, coroada de flores,
Viva e serena, na primeira e gloriosa maternidade,
Com as tranças repartidas, e no olhar
A luz da beleza intocada.
Assim te pode ver teu filho, de olhos fechados.
Assim te pode ver este homem de gestos cansados,
Este segador no fim da sega,
Este quase velho, debruçado sobre o teu túmulo.
Assim apareces, Mãe, ao filho que deixaste tão cedo,
Entre as perdições do mundo.

Mãe, aqui estou no dia de hoje,
Batendo à tua porta, procurando a tua companhia.
Não me desconheças nem perguntes quem sou.


No fundo de mim mesmo, apesar de tudo o que houve,
Das incompreensões, do pó e da amargura,
Das misérias que pratiquei e que praticaram
Contra mim; apesar da experiência do ódio e do amor,
amargos ambos,

Sou o mesmo filho que deixaste
Na orfandade
Quando partiste,
Estrela materna, flor de beleza,
Que o vento gelado crestou na juventude.

A ALMA

Tu sabes que não nos é permitido usar o teu nome.
Nós sabemos que tu és inexprimível,
anémica, frágil e suspeita
por misteriosas ofensas quando eras criança.
Nós sabemos que não te é permitido viver agora
na música ou nas árvores no crepúsculo.
Nós sabemos—ou pelo menos disseram-nos—
que tu não existes seja em que lado for.
E no entanto continuamos escutando a tua voz fatigada
--num eco, numa queixa, nas cartas que recebemos
de Antígona no deserto Grego.
AUTORETRATO

Entre o computador, um lápis e uma máquina de escrever
passo metade do meu dia. Daqui a pouco farei meio século.
Vivo em cidades estranhas e por vezes falo
com estranhos acerca de assuntos estranhos para mim.
Ouço bastante música: Bach, Mahler, Chopin, Shostakovich.
Vejo três elementos na música: fraqueza, poder e dor.
O quarto não tem nome.
Leio poetas, vivos e mortos, que me ensinam
tenacidade, fé e orgulho. Tento compreender
os grandes filósofos – mas habitualmente apanho
apenas fragmentos dos seus preciosos pensamentos.
Gosto de dar longos passeios pelas ruas de Paris
e olhar os meus próximos, agitados pela inveja,
ira e desejo; observar a moeda de prata
que passa de mão em mão e lentamente perde
a sua forma redonda (o perfil do imperador está apagado).
A meu lado crescem árvores que não exprimem nada,
a não ser a sua verde e indiferente perfeição.
Aves negras caminham pelos campos,
sempre à espera de algo, pacientes como viúvas espanholas.
Já não sou jovem, mas há gente mais velha do que eu.
Gosto de dormir profundamente, como se deixasse de existir,
de corridas de bicicleta por caminhos rurais quando álamos e casas
se dissolvem como cúmulos em dias de sol.
Às vezes nos museus os quadros falam para mim
e a ironia esfuma-se de repente.
Encanta-me contemplar o rosto da minha mulher.
Todos os domingos telefono ao meu pai.
De duas em duas semanas reúno-me com os amigos,
para provar a minha fidelidade.
O meu país libertou-se do mal. Desejo
que outra libertação se siga.
Posso eu fazer alguma coisa por isso? Não sei.
Não sou um filho do mar,
como António Machado escreveu sobre si mesmo,
mas um filho do ar, da menta e do violoncelo,
e nem todos os caminhos do alto mundo
Se cruzam com os caminhos da vida que – até ver–
me pertencem.
AUTO-RETRATO NUM AVIÃO
em classe económica

Dobrado como um embrião,
esmagado num assento estreito,
tento recordar
o aroma do feno recém-cortado
quando em Agosto as carroças de madeira
descem dos prados de montanha,
baloiçando pelas estradas de terra
e o condutor grita
como os homens sempre gritam quando entram em pânico
- gritaram dessa forma na Ilíada
e nunca mais se silenciaram desde então,
nem durante as Cruzadas,
nem mais tarde, muito mais tarde, próximo de nós,
quando ninguém os escutou.

Estou cansado, penso naquilo o que
não pode ser pensado - no silêncio que reina
nas florestas quando as aves dormem,
sobre o final próximo do verão.
Mantenho a cabeça entre as mãos
como se a protegesse da aniquilação.
Visto de fora, sem dúvida que
pareço imóvel, quase morto,
resignado, merecendo simpatia.
Mas não é assim - sou livre,
talvez mesmo feliz.
Sim, seguro a pesada cabeça
em minhas mãos,
mas dentro nasce um poema.

sábado, 26 de setembro de 2015

«Preciso ser um outro
para ser eu mesmo»


Mia Couto. Raiz de Orvalho e Outros Poemas. Editorial Caminho, 2001
«Nunca esquecendo que, assim como noutros tempos, mais obscuros, a educação tinha por propósito habilitar o juvenil para o mundo e a vida, agora, todos sabemos, compete-lhe pré-lavá-lo e desossá-lo para a televisão. Ou vice-versa.»

ver aqui

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

"O senhor K disse uma vez: Aquele que pensa não se serve de luz nenhuma a mais, de pedaço nenhum de pão a mais, de pensamento nenhum a mais."


-"Histórias do Senhor Keuner"
- Bertolt Brecht

quarta-feira, 23 de setembro de 2015


NÓS NÃO SOMOS DESTE MUNDO


Luís Filipe Castro MendesPoesia Reunida (1985-1999) com o livro inédito OS AMANTES OBSCUROS. Quetzal Editores, Lisboa, 1999., p. 427

(...)

«Só aqui eu posso amar,
luz escura da paixão:
seja o verso o nosso mar
contra as praias da razão.»


Luís Filipe Castro MendesPoesia Reunida (1985-1999) com o livro inédito OS AMANTES OBSCUROS. Quetzal Editores, Lisboa, 1999., p. 409

''a crueldade das flores acesas''


Luís Filipe Castro MendesPoesia Reunida (1985-1999) com o livro inédito OS AMANTES OBSCUROS. Quetzal Editores, Lisboa, 1999., p. 403

De mim a ti, de ti a mim,
quem de tão longe alguma vez regressa?

(Jorge de Sena)

OS AMANTES OBSCUROS


1999

«Deixem-me só com a música da morte»


Luís Filipe Castro MendesPoesia Reunida (1985-1999) com o livro inédito OS AMANTES OBSCUROS. Quetzal Editores, Lisboa, 1999., p. 392
«Amamo-nos tanto que não suportamos
ver-nos envelhecer?»

Luís Filipe Castro MendesPoesia Reunida (1985-1999) com o livro inédito OS AMANTES OBSCUROS. Quetzal Editores, Lisboa, 1999., p. 387

(...)

«Acusam-me de mágoa e desalento;
mas deixem-me ficar no fim da História,
como pó arrastado pelo vento,
vivo amor que não cabe na memória.»


Luís Filipe Castro MendesPoesia Reunida (1985-1999) com o livro inédito OS AMANTES OBSCUROS. Quetzal Editores, Lisboa, 1999., p. 370

A NOITE


Que a noite diga à noite o que ilumina
e nos ordene o verso. Vem, noite antiga,
desprendida da lua e das fogueiras,
retira às coisas vãs toda a medida,
vem despir-te solene à minha beira.

Seja outra noite a noite. Outro o caminho.
Outro o vento a perder-se nas bandeiras.


Luís Filipe Castro MendesPoesia Reunida (1985-1999) com o livro inédito OS AMANTES OBSCUROS. Quetzal Editores, Lisboa, 1999., p. 369

A MÚSICA DA MORTE


Já passaram por nós as frias aves,
aprendemos a música da morte.
Ao princípio escurece, um arrepio
vem toldar a memória sobre a pele
e a sombra que deixámos faz-se leve
diferença como eco ou na paisagem
turvo matiz que inquieta de repente:
tudo o que irá esquecer nossa passagem
nos vem olhar agora frente a frente.
Da morte aqui passaram frias aves,
como nuvens sem ar ou mar sem naves.


Luís Filipe Castro MendesPoesia Reunida (1985-1999) com o livro inédito OS AMANTES OBSCUROS. Quetzal Editores, Lisboa, 1999., p. 368

(...)

«Seja sempre quem sou esta distância
que muda em mim as coisas conseguidas
em dedos que procuram da infância
cotão, ternura, restos de outras vidas.»


Luís Filipe Castro MendesPoesia Reunida (1985-1999) com o livro inédito OS AMANTES OBSCUROS. Quetzal Editores, Lisboa, 1999., p. 365

« - tudo de tanto amor se fez em nada.»


Luís Filipe Castro MendesPoesia Reunida (1985-1999) com o livro inédito OS AMANTES OBSCUROS. Quetzal Editores, Lisboa, 1999., p. 348

«De tanto amor por fim se tece a morte,»


Luís Filipe Castro MendesPoesia Reunida (1985-1999) com o livro inédito OS AMANTES OBSCUROS. Quetzal Editores, Lisboa, 1999., p. 341

«Eu tive mortos e deixei-os ir.»

(R.M.Rilke)

«O receio da morte é a fonte da arte.»

(Ruy Belo)


«Dizia então a dor o nosso gesto
e durava nas coisas mais antigas
a solidão sem rasto que há no mar.»


Luís Filipe Castro MendesPoesia Reunida (1985-1999) com o livro inédito OS AMANTES OBSCUROS. Quetzal Editores, Lisboa, 1999., p. 324

«Amor que não tivémos nem nos teve
veio-nos chamar agora.»

Luís Filipe Castro MendesPoesia Reunida (1985-1999) com o livro inédito OS AMANTES OBSCUROS. Quetzal Editores, Lisboa, 1999., p. 323

''sonho de um deus morto''


Luís Filipe Castro MendesPoesia Reunida (1985-1999) com o livro inédito OS AMANTES OBSCUROS. Quetzal Editores, Lisboa, 1999., p. 307
«Apareço nos sonhos
para melhor me esconder»


Luís Filipe Castro MendesPoesia Reunida (1985-1999) com o livro inédito OS AMANTES OBSCUROS. Quetzal Editores, Lisboa, 1999., p. 306

«Estou à beira do mar,
estou à beira de ti.»


Luís Filipe Castro MendesPoesia Reunida (1985-1999) com o livro inédito OS AMANTES OBSCUROS. Quetzal Editores, Lisboa, 1999., p. 304


«Nunca saí de casa,
nunca saí de mim.
Onde fiz tábua rasa
irei ter o meu fim.»


Luís Filipe Castro MendesPoesia Reunida (1985-1999) com o livro inédito OS AMANTES OBSCUROS. Quetzal Editores, Lisboa, 1999., p. 303

''jogo de ausências''

acédia


nome feminino
1. negligência
2. preguiça


«Mata-me mais silenciosamente do que a fome
e só ele me quer.»



Luís Filipe Castro MendesPoesia Reunida (1985-1999) com o livro inédito OS AMANTES OBSCUROS. Quetzal Editores, Lisboa, 1999., p. 295

«Fingia ter esquecido o teu corpo
nas muralhas. Nas areias.»

Luís Filipe Castro MendesPoesia Reunida (1985-1999) com o livro inédito OS AMANTES OBSCUROS. Quetzal Editores, Lisboa, 1999., p. 293

«(...)                O amor
surpreende - não convém, desarruma.
E nunca se ama ao certo quem se ama.»


Luís Filipe Castro MendesPoesia Reunida (1985-1999) com o livro inédito OS AMANTES OBSCUROS. Quetzal Editores, Lisboa, 1999., p. 292

''quartos escurecidos pela morte''

«Não se faz da memória um novo amor,
por isso nada em mim te procurava.»


Luís Filipe Castro MendesPoesia Reunida (1985-1999) com o livro inédito OS AMANTES OBSCUROS. Quetzal Editores, Lisboa, 1999., p. 283

« a arte é o que resulta de uma persistente humilhação.»


Spender, World Within World



in Luís Filipe Castro MendesPoesia Reunida (1985-1999) com o livro inédito OS AMANTES OBSCUROS. Quetzal Editores, Lisboa, 1999., p. 275

terça-feira, 22 de setembro de 2015


"Eu sou uma coisa qualquer
Eu sou uma qualquer coisa
sou uma qualquer coisa eu
uma qualquer coisa eu sou
qualquer coisa eu sou uma
coisa eu sou uma qualquer
EU NÃO SOU UMA COISA QUALQUER
- eu sou uma cidade
- eu sou ZANONI de Bulwer Lyton
- eu sou uma errata
- onde está a minha vida deve-se ver a nossa vida
- onde está deus deve ver-se o diabo
- onde está o Amor deve estar o Grande Amor
Mágico Amor Meu
- onde estou Eu deves estar Tu
- onde estão os lábios da nossa vida HÁ
uma porta secreta minúscula
O-AMOR
MEU AMOR"
-"Poesia"
- António Maria Lisboa 

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

"Nesses dias era sílaba a sílaba que chegavas.
Quem conheça o sul e a sua transparência
também sabe que no verão pelas veredas
da cal a crispação da sombra caminha devagar.
De tanta palavra que disseste algumas
se perdiam, outras duram ainda, são lume
breve arado ceia de pobre roupa remendada.
Habitavas a terra, o comum da terra, e a paixão
era morada e o instrumento de alegria.
Esse eras tu: inclinação da água. Na margem
vento areias mastros lábios, tudo ardia."

-"Poesia e Prosa: 1940- 1980"
- Eugénio de Andrade
Powered By Blogger