quinta-feira, 7 de maio de 2015
Mostrar-vos-ei quão mais profundo é o grito
Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 82
4
A tua felicidade foi como um sorriso aberto numa manhã de sol,
Raiando sobre a terra numa alegria imensa.
E os teus olhos demoravam o voo das aves e alegravam-se,
Surpresos e meditativos como o olhar dos séculos
Ante o límpido acordar da paisagem.
Porém, rapidamente baixando sobre o brilho da tua alma,
Veio o sonho ajoelhar os teus joelhos,
A sombra do teu destino duro,
Da tua nudez pesada e triste.
Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 81
4
Tomar nas minhas mãos o sopro suave
Que aflora à tua boca.
Levá-lo aos meus lábios e beijá-lo
Como quem, timidamente,
Se debruça e escuta
o fluir do orvalho
Sobre as flores da aurora.
Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 75
«Haveis de voltar, eu sei, deuses tutelares da adolescência;
-Quantos e quantos corações bateram,
Por ti, Justiça
Por ti, Direito,
Por ti, retórica da liberdade plena,
Por ti, cadáver de vermes exaltados;
Vozes enganadoras, vozes que ninguém esquece,
Vozes de animais, se eles um dia falassem,
Vozes de revolta, não compreendidas por aqueles que as proferem,
Vozes de hálito bafiento, de lirismo doce,
Vozes de um futuro condenado à morte,
Para que se cumpra a Tua palavra, Senhor!,
Para que sejam os mortos a enterrar os mortos.»
Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 69
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RUY CINATTI
«E eu procurava arrancar de mim aquela máscara
Que em mim polarizava o desespero;
Era falso o tormento, a alma que eu sentia
Não me pertencia.
E eu disfarçava aquele momento,
Falando de mim mesmo a alguém que, ausente,
Abria sobre mim as represas da angústia.»
Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 67
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«Fak diz que tens razão, ele tem sempre razão, tu tens sempre razão. Deve ser por falares pouco e esconderes os teus segredos. Assim, é natural que não te enganes muito.»
Bernard-Marie Koltès. Cais Oeste. Tradução de Ernesto Sampaio. Centro de Dramaturgias Contemporâneas - Porto. Livros Cotovia., p. 52/3
Bernard-Marie Koltès. Cais Oeste. Tradução de Ernesto Sampaio. Centro de Dramaturgias Contemporâneas - Porto. Livros Cotovia., p. 52/3
«CÉCILE
Pára de dormir e responde-me primeiro.
CHARLES
Não estou a dormir.
CÉCILE
Estás sempre a dormir quando te faço uma pergunta.
CHARLES
Não; estou a pensar na resposta.»
Bernard-Marie Koltès. Cais Oeste. Tradução de Ernesto Sampaio. Centro de Dramaturgias Contemporâneas - Porto. Livros Cotovia., p. 46
quarta-feira, 6 de maio de 2015
1
Ao Francisco Stilwell
Porque os caminhos são longos
E os carreiros que a eles vão dar são misteriosos,
A razão atraiçoou-nos.
Pensámos que Deus dera o dever de desprezarmos;
A noite sem estrelas cobriu-nos
Enquanto o Senhor se mostrava a cada esquina,
Misterioso como príncipe encantado.
As noivas vendidas abriram a janela,
Com inocência abriram, e entre si ouviram,
O Senhor das almas,
Mas nós, que no leito vivíamos a sordidez da imagem,
Em sobressalto orámos;
Então o raiar da aurora descobriu-nos a nudez do corpo,
E uma outra espécie de anjos se acolheu aos nossos braços.
É esta a minha verdade.
E a Verdade aparecerá sem ser sentida
Quando cairmos humilhados.
E aqueles que baptizados, ainda suplicam
Serão longamente atormentados
Até que Deus acabe de falar aos esquecidos
E os erga com ternura ao seu Amor!
Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 59
Ao Francisco Stilwell
Porque os caminhos são longos
E os carreiros que a eles vão dar são misteriosos,
A razão atraiçoou-nos.
Pensámos que Deus dera o dever de desprezarmos;
A noite sem estrelas cobriu-nos
Enquanto o Senhor se mostrava a cada esquina,
Misterioso como príncipe encantado.
As noivas vendidas abriram a janela,
Com inocência abriram, e entre si ouviram,
O Senhor das almas,
Mas nós, que no leito vivíamos a sordidez da imagem,
Em sobressalto orámos;
Então o raiar da aurora descobriu-nos a nudez do corpo,
E uma outra espécie de anjos se acolheu aos nossos braços.
É esta a minha verdade.
E a Verdade aparecerá sem ser sentida
Quando cairmos humilhados.
E aqueles que baptizados, ainda suplicam
Serão longamente atormentados
Até que Deus acabe de falar aos esquecidos
E os erga com ternura ao seu Amor!
Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 59
«Bebei os soluços, »
Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 55
«Faz-me sofrer por não saber dar mais.»
Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 55
«Toda a minha tristeza é feita de carícias.»
Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 55
«Mas tu não ouves...
Só tu sobrevives e rasgas no abismo
Os véus castos do sonho!»
Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 54
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RUY CINATTI
«Aqui começa o reino de Cham:
Florestas e desertos, aragens assassinas
E uma humanidade que se desloca desde o nascer do mundo
Com os mesmos gestos, iguais farsas,
A mesma preguiça pensativa, a mesma despreocupação
E uma alegria feita de sorrisos imperceptíveis;
Tal como sacerdotes que, uma vez sacrificada a vítima,
Monologam com Deus num cântico cerrado, feito mais de sons que de palavras,
E depois repousam sob o céu estrelado
Num grande sono de paz e de assombrado recolhimento;
Tal como as árvores da floresta em perpétuo movimento.
Oh!, ninguém sabe o drama que vai lá por dentro:
Somente a verdura se espalha em largas superfícies
Ondulantes, aveludadas, existentes;
Tal como animais que, refeitos no pasto diário,
Se dirigem ao rio mais próximo.
E aí, bebia a água, levantam o olhar límpido
E aspiram os perfumes da noite
Com a candura de gente surpreendida pelo inevitável
E ainda duvidosa de que o maravilhoso possa descer sobre os seus crimes
Como noite estrelada,
Tal como tu, terra sagrada e nua, e secreta,
Couraçada de desertos e florestas,
De rios e pântanos: nevoeiros frios
Sobre a cálida terra genesíaca.
Tuas estradas estão juncadas de cadáveres:
São mesmo os cadáveres que indicam as estradas
Onde o homem passou sem se encontrar.»
Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 52
«E o pão não se azedava nas entranhas.»
Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 51
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verso solto
POEMAS DA VIAGEM
I
Abro o meu diário de viagem:
«Há cinco anos» - dizia - «há cinco anos...»
-Ah!, quanto o coração e as mãos me tremem -
«Há cinco anos» - diria - «há cinco anos...
Eu viajava».
E eu escuto a ver se as páginas me falam.
Como sonho noutros mundos vida,
Renasce a ilusão e trémulo sinto
Todo aquele abandono e branda aragem
Da partida.
Doce e amarga vida -
Ó navio da aventura!
No livro abrem-se abismos de um segredo
Que eu canto de pé, de olhos em frente.
Há cinco anos seria de alma alevantada.
«Acima, acima gajeiro,
Capitão das águas idas;
Vê se vez o mar inteiro
De lágrimas...
Perdidas...»
Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 48
Uma angústia suave nas almas nostálgicas.
Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 46
« - O tempo, era o dos lírios - .»
Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p.40
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terça-feira, 5 de maio de 2015
DREAMING OF YOU
"De súbito
como do alto do estio
nós estamos no aqui.
Cada coisa que vemos é feliz
e nós somos o seu silêncio
ou o seu nome.
O clamor tornou-se voz
e o silêncio claro
equivalente a um fundo azul liso.
Luz lúcida
excepcional
sobre as errantes raízes
lenta portadora de uma água visível."
como do alto do estio
nós estamos no aqui.
Cada coisa que vemos é feliz
e nós somos o seu silêncio
ou o seu nome.
O clamor tornou-se voz
e o silêncio claro
equivalente a um fundo azul liso.
Luz lúcida
excepcional
sobre as errantes raízes
lenta portadora de uma água visível."
-"Horizonte a Ocidente"
- António Ramos Rosa
- António Ramos Rosa
segunda-feira, 4 de maio de 2015
A bondade absoluta não existe
«A bondade absoluta não existe, a não ser em algumas criaturas tão excepcionais que não contam para efeitos estatísticos. As relações que os seres humanos vão estabelecendo uns com os outros estão impregnadas da ideologia mortal deste tempo: são cínicas, mas não dispensam, sobretudo nos que ainda não estão de todo desesperados (por razões de sorte ou de fortuna), uns toques de afectividade.»
A NOITE QUE ME TRESPASSA O CORAÇÃO
"Meu irmão, tu nada sabes da noite,
nada sabes deste tormento que inteiramente me prostrou,
do mesmo modo que a poesia, que transportou a minha alma,
nada sabes destes mil crepúsculos mil espelhos,
que me hão-de precipitar no abismo.
Meu irmão, tu nada sabes da noite,
que eu tive de vadear como o rio,
cujas almas foram há muito estranguladas pelos mares,
e nada sabes da fórmula de esconjuro
que a nossa Lua me abriu entre os ramos secos
como um fruto da Primavera.
Meu irmão, tu nada sabes da noite,
que me impeliu através das sepulturas do meu pai,
que me impeliu através de florestas maiores do a Terra,
que me ensinou a ver nascer e pôr o Sol
nas trevas doentes do meu trabalho diário."
nada sabes deste tormento que inteiramente me prostrou,
do mesmo modo que a poesia, que transportou a minha alma,
nada sabes destes mil crepúsculos mil espelhos,
que me hão-de precipitar no abismo.
Meu irmão, tu nada sabes da noite,
que eu tive de vadear como o rio,
cujas almas foram há muito estranguladas pelos mares,
e nada sabes da fórmula de esconjuro
que a nossa Lua me abriu entre os ramos secos
como um fruto da Primavera.
Meu irmão, tu nada sabes da noite,
que me impeliu através das sepulturas do meu pai,
que me impeliu através de florestas maiores do a Terra,
que me ensinou a ver nascer e pôr o Sol
nas trevas doentes do meu trabalho diário."
Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno.
quarta-feira, 29 de abril de 2015
“É que o meu sonho constante, desde a infância, o meu contínuo e único íntimo pensamento foi o ver-me de fora, foi o desdobrar-me em Eu e em Testemunha de mim, em uma Vida estranha, curiosa, interessante, e em o Autor dela”
- Fernando Pessoa, “Uma carta da Argentina”, in A Estrada do Esquecimento e Outros Contos, Lisboa, Assírio & Alvim, 2015, p.42.
LEITURA E RECONHECIMENTO
"Como é que o passado reconhecce o presente? Como é que o presente reconhece o passado? Como é que o reproduzido reconhece o reprodutor? Como é que a mulher reconhece o homem?
Ou, exprimindo-se num tom mais japonês: como é que o Agora se agita com a visitação, a condensação, a capitalização do Outrora no fundo de si mesmo?
Ao reconhecimento excessivo e impossível (do fecundande pelo fecundado) oponho três formas de não reconhecimento: o desconhecimento, o reconhecimento insuficiente ou difícil, o reconhecimento excluído."~
Ou, exprimindo-se num tom mais japonês: como é que o Agora se agita com a visitação, a condensação, a capitalização do Outrora no fundo de si mesmo?
Ao reconhecimento excessivo e impossível (do fecundande pelo fecundado) oponho três formas de não reconhecimento: o desconhecimento, o reconhecimento insuficiente ou difícil, o reconhecimento excluído."~
-"Histórias de Amor de Outros Tempos"/ "Retratos Vivos"
- Pascal Quignard
- Pascal Quignard
segunda-feira, 27 de abril de 2015
sexta-feira, 24 de abril de 2015
LUZ NATURAL
"A luz ficava bem à sua graciosidade e habitava entre
Cegos olhos e sombras que têm formas de homens;
Olhem, vejam como a luz nos derrete num cântico:
A luz do sol quebrada traz ela comom escudo
Que tem o meu coração sob a sua jurisdição.
No bosque selvagem nunca a cria da corça
Andou tão silenciosa; nenhuma teia é tecida
Tão delicada como ela, quando o sol
Afasta as claras esmeraldas das ervas inclinadas
Para que estes não seguem tão depressa, por onde ela passa."
Cegos olhos e sombras que têm formas de homens;
Olhem, vejam como a luz nos derrete num cântico:
A luz do sol quebrada traz ela comom escudo
Que tem o meu coração sob a sua jurisdição.
No bosque selvagem nunca a cria da corça
Andou tão silenciosa; nenhuma teia é tecida
Tão delicada como ela, quando o sol
Afasta as claras esmeraldas das ervas inclinadas
Para que estes não seguem tão depressa, por onde ela passa."
-"Poemas Escolhidos"
- Ezra Pound
- Ezra Pound
« - Procuro descobrir se há uma outra por detrás de ti. Uma outra Clarisse, a verdadeira.
-Mas por que não há-de ser esta a verdadeira?
-É o que pergunto em certos momentos.
(...)
Fui possuído pela sensação de que, na maioria das vezes, eu era para Clarisse um inimigo atento ao mínimo deslize que lhe pudesse trair os defeitos. Tinha de me defender contra isso, tanto como das armadilhas do seu humor instável. »
Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 172
-Mas por que não há-de ser esta a verdadeira?
-É o que pergunto em certos momentos.
(...)
Fui possuído pela sensação de que, na maioria das vezes, eu era para Clarisse um inimigo atento ao mínimo deslize que lhe pudesse trair os defeitos. Tinha de me defender contra isso, tanto como das armadilhas do seu humor instável. »
Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 172
«Nem eu nem Clarisse falávamos, mas cada um de nós ia, decerto, com os nervos saturados do diálogo irritadiço dessa tarde, das frases que haviam ficado por dizer, reagrupando agora esses fragmentos talvez para os suavizar ou azedar mais ainda.»
Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 168
«-Uma garota de nariz arrebitado. Caprichosa, volúvel, nem sempre fácil de aturar.
-Volúvel? - repetiu Clarisse, numa inflexão interrogativa mas sonâmbula, como se recitasse uma frase vazia de sentido.
-...E sobretudo uma garota que me puxa demasiadamente pela língua. Já devias saber que a loquacidade não está nos meus hábitos.»
Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 166
« - Às vezes tenho a impressão de que falo, ou que me escutas, de muito longe. E quando me calo, é como se nenhum de nós fosse real. - E emudeceu, a sopesar a verdade do que dizia.
-Ao menos tu, serás real?
Que podia eu dizer-lhe, sem a crosta dos hábitos a defender-me? Segui-lhe no rosto a minha própria emoção.
-Deves ter razão em duvidar. Para te falar franco, chego a julgar que me inventaste - e apertei os dentes, atravessado por uma dor instantânea.
-Mas eu não invento a tua frieza.
Bem vi que outros pensamentos lhe galopavam de encontro às têmporas. Não lhes daria voz, porém. Pelo menos, a todos. Clarisse preferia não esticar, além de certos limites, as cordas do meu enfado. Picava-me, apenas. Ia aceitando, gradualmente, embora com espanto, fúria e terror, o pouco que eu lhe poderia oferecer.
- Nunca quiseste saber nada de mim. Vá, que sabes tu do meu passado?
Escorei-me nos antebraços. Procurei um cigarro nos bolsos. Media, à régua, as palavras que iria dizer.
-Que te sentavas num café com esse arzinho provocante...E se falássemos de outras coisas? A propósito, Clarisse: usavas um gracioso colete de bombazina. Veste-o um dia destes. Ficava-te muito bem.
Ela fixava-me, dorida, a desvendar um estranho.
-Escuta, Jorge, agora escuta-me. Quero sentir que estás, realmente, aqui. Tu poderás compreender que eu deseje tanto que saibas tudo de mim? Só assim poderei pertencer-te, como eu quero. - Ela fazia pontaria ao meu mutismo, para o estilhaçar. Mas logo uma ira crispada lhe borbulhava nas narinas frementes. - Dá-me às vezes a impressão de que és um saco de areia. Dou um murro, a mão amolga o saco, mas não se ouve a pancada. E o saco, claro, fica na mesma. Será inútil repetir o murro.»
Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 164/5
-Ao menos tu, serás real?
Que podia eu dizer-lhe, sem a crosta dos hábitos a defender-me? Segui-lhe no rosto a minha própria emoção.
-Deves ter razão em duvidar. Para te falar franco, chego a julgar que me inventaste - e apertei os dentes, atravessado por uma dor instantânea.
-Mas eu não invento a tua frieza.
Bem vi que outros pensamentos lhe galopavam de encontro às têmporas. Não lhes daria voz, porém. Pelo menos, a todos. Clarisse preferia não esticar, além de certos limites, as cordas do meu enfado. Picava-me, apenas. Ia aceitando, gradualmente, embora com espanto, fúria e terror, o pouco que eu lhe poderia oferecer.
- Nunca quiseste saber nada de mim. Vá, que sabes tu do meu passado?
Escorei-me nos antebraços. Procurei um cigarro nos bolsos. Media, à régua, as palavras que iria dizer.
-Que te sentavas num café com esse arzinho provocante...E se falássemos de outras coisas? A propósito, Clarisse: usavas um gracioso colete de bombazina. Veste-o um dia destes. Ficava-te muito bem.
Ela fixava-me, dorida, a desvendar um estranho.
-Escuta, Jorge, agora escuta-me. Quero sentir que estás, realmente, aqui. Tu poderás compreender que eu deseje tanto que saibas tudo de mim? Só assim poderei pertencer-te, como eu quero. - Ela fazia pontaria ao meu mutismo, para o estilhaçar. Mas logo uma ira crispada lhe borbulhava nas narinas frementes. - Dá-me às vezes a impressão de que és um saco de areia. Dou um murro, a mão amolga o saco, mas não se ouve a pancada. E o saco, claro, fica na mesma. Será inútil repetir o murro.»
Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 164/5
UMA SEMANA DE BONDADE
"O molar solitário de uma prostituta,
que morrera no aonimato,
tinha uma aplicação de ouro.
Os restantes, como por mudo acordo tácito,
tinham caído.
O funcionário da morgue arrancou-o,
pô-lo no prego e foi dançar.
É que, dizia ele,
só o que é terra à terra deve voltar."
que morrera no aonimato,
tinha uma aplicação de ouro.
Os restantes, como por mudo acordo tácito,
tinham caído.
O funcionário da morgue arrancou-o,
pô-lo no prego e foi dançar.
É que, dizia ele,
só o que é terra à terra deve voltar."
- Gottfried Benn -
-"Expressionismo Alemão: Antologia Poética"
- Gottfriend Benn/ Georg Trakl / Ernst Stadler/ Georg Heym...
- Tradução: João Barrento
- Gottfriend Benn/ Georg Trakl / Ernst Stadler/ Georg Heym...
- Tradução: João Barrento
quinta-feira, 23 de abril de 2015
«A minha convivência nos desatinos e excessos de Clarisse traduzia apenas a solidariedade que se deve a um ser humano desesperado. E, sobretudo, solitário no seu desespero. Era este o disco entorpecente que fazia girar dentro do meu amor-próprio. E seria amor o que ela sentia?»
Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 145
«Talvez não seja inteiramente sincero ao dizer isto, pois, as mais das vezes, eu procurava muito mais interpretar-me, iludir as minhas acusações, do que ajudar Clarisse a libertar-se do pavor do dia seguinte. «Nada tenho dentro de mim a não ser o medo.» Ela bem o percebia, bem percebia o meu egoísmo. «Os homens são tão ciosos da sua invulnerabilidade! Tão estupidamente egoístas! (...)»
Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 144
''grandiloquências românticas''
Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 144
''nuns monossílabos acerbos que ele se dispensava de ouvir''
Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 143
''encurralava-me nas grades do meu mutismo''
Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 143
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