segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

«Mas a sua maneira de ser repugnava-me. Por isso, acontecia deixar escapar piadas que os feriam mortalmente e aumentavam o rancor deles para comigo.»


François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 17
«se alguma coisa nasceu para voar
foi o teu coração»


Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 30
«Só dentro do meu sono
toda a morte é possível.»


Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 28

''uma ave para desfolhar''

História de Inverno

A mulher de água
traz limos nas espáduas.
Tem olhos de lagoa
e o corpo como um rio.

Traz musgo sobre os seios
e a sua voz dá frio,
o seu olhar magoa.

Mas não lhe sei o nome.

Estende os cabelos de água
no inverno dos meus olhos,
dorme na minha sorte
por toda a noite insone.

Faz um rumor de chuva,
tem um sabor de morte.

Mas não lhe sei o nome.


Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 27

estro


nome masculino

1. entusiasmo artístico; veia poética; riqueza de imaginação
2. época do cio
3. ZOOLOGIA gusano

(Do grego oĩstros, «tavão», pelo latim oestru-, «estro poético»)

''lobisomens chorando nas areias.''


espúrio


adjetivo

 1. antiquado diz-se de filho de uma relação extraconjugal; bastardo; ilegítimo
2. que não segue as leis; ilegítimo
3. diz-se da obra que não pertence ao autor a quem é atribuída
4. adulterado; falsificado
5. que não pertence ao vernáculo
6. não autêntico; não genuíno
7. regionalismo avarento e de aspeto pouco agradável


(Do latim spurĭu-, «bastardo; espúrio»)

«soubesses tu que tudo o que me dizes
é a sombra do que me não podes dar.»

Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 21

Elegia de Coimbra


Gela a lua de março nos telhados
e à luz adormecida
choram as casas e os homens
nas colinas da vida.

Correm as lágrimas ao rio,
a esse vale das dores passadas,
mas choram as paredes e as almas
outras dores que não foram perdoadas.

Aos que virão depois de mim
caiba em sorte outra herança:
o oiro depositado
nas margens da lembrança.



Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 20

domingo, 29 de dezembro de 2013

«o primeiro vestígio da beleza
é a cólera dos versos necessários.»


Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 20

Ama, tens frio;

Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 18

Cantiga do ódio


O amor de guardar ódios
agrada ao meu coração,
se o ódio guardar o amor
de servir a servidão.
Há-de sentir o meu ódio
quem o meu ódio mereça:
ó vida, cega-me os olhos
se não cumprir a promessa.
E venha a morte depois
fria como a luz dos astros:
que nos importa morrer
se não morrermos de rastros?


Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 15

O viandante

Trago notícias da fome
que corre nos campos tristes:
soltou-se a fúria do vento
e tu, miséria, persistes.
Tristes notícias vos dou:
caíram espigas da haste,
foi-se o golpe do vento
e tu, miséria, ficaste.
Foi-se a noite, foi-se o dia,
fugiu a cor às estrelas:
e, estrela nos campos tristes,
só tu, miséria, nos velas.



Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 14

4

Canta a noite, sentimento da terra,
ou morreste, flor estranha?
Há tanto já que chove e nós sem lenha,
sem paz e sem guerra.

Há tanto. E eu sei lá bem
se inda persistes,
minha incólume esperança.
Vão-me doendo os olhos já de serem tristes.

Vão-me doendo,
que mos turva de sombra o desespero.
E escrevendo à luz débil me pergunto
se é a morte ou a manhã que espero.


Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 13
HEDDA

Ah, os pensamentos...não são assim tão fáceis de reprimir!


Henrik Ibsen. Hedda Gabler. Tradução de Freire de Andrade. Editorial Presença, Lisboa., p. 199

''noite tempestuosa e orgíaca''

Der Zauberberg

«De forma tão incompreensível como o cimento desaparece, crescem também as paredes. A gente recebe ordens para aqui e para ali, começa uma coisa e é enxotada do lugar. Apanha bofetadas e pontapés. Torna-se teimosa e melancólica por dentro e por fora servil e cobarde. O cimento carcome as gengivas até fazer ferida. Quando se abre a boca, os lábios rasgam como papel dos sacos de cimento. A gente cala a boca e obedece.»


Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 38
«Sou obrigado a lembrar-me contra minha vontade. E mesmo quando não sou obrigado, mas quero, preferia não ser obrigado a querer.»



Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 35

O último mergulho

«Com geada ou calor de abrasar, passaram-se noites inteiras sem sentido. Só os piolhos em nós tinham permissão de movimento. Durante a interminável contagem, podiam encher-se até rebentar e desfilar em parada pelos nossos corpos miseráveis, rastejar horas a fio desde a cabeça até aos pelos da púbis. Na maior parte das vezes, os piolhos já se tinham enchido e deitado a dormir nas costuras dos casacos enchumaçados e nós continuávamos em sentido. O comandante de campo Chichtvanionov ainda continuava a gritar. O seu nome próprio nós não sabíamos. Chamava-se só tavarichtch Chichtvanionov. Era suficientemente longo para se gaguejar de medo ao pronunciá-lo. Ao ouvir o nome tavarichtch Chichtvanionov, vinha-se sempre à memória o ruído da locomotiva de deportação. E o nicho branco lá na terra, na igreja, O CÉU PÕE O TEMPO EM MOVIMENTO. Com certeza fomos obrigados s ficar em sentido contra o nicho branco, horas sem conta. Os ossos ficaram emperrados como ferro. Quando a carne desaparece no corpo, é o carrego dos ossos que se transforma num fardo, empurrando-te pelo chão dentro.»
 
 

Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 28-29
«O que é que se pode dizer da fome crónica. Pode-se dizer que há uma fome que te põe doente de fome. Que se vem juntar sempre mais faminta à fome que já se tem. A fome sempre nova, que cresce insaciável e se lança em salto mortal para dentro da fome eternamente velha, a custo dominada. Como é que uma pessoa anda por este mundo, quando sobre si nada mais sabe dizer, a não ser que tem fome. Quando já não consegue pensar noutra coisa. O céu-da-boca é maior que a cabeça. alto e de ouvido aguçado até ao cocuruto do crânio, uma cúpula. Quando já não se aguenta a fome, o céu-da-boca retesa-se como se nos estivessem esticado atrás da cara uma pele de lebre recente a secar. As faces murcham e cobrem-se de pálida penugem.
   Nunca soube, será que deve acusar-se a erva-armola azeda de já não a podermos comer, porque fica lenhosa e se nos recusa. Saberá a erva que já não nos serve a nós e à fome, mas ao anjo da fome. »
 


Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 26-27


The clock died at a quarter to midnight
Frozen angels on my bedpost
Tripping over some senseless beggar
A simple case of mistaken face
My how nothing changes
Different men in the same positions

Just this side of motel's end
At suicide ocean

Just this side of motel's end
At suicide ocean

Just this side of motel's end
At suicide ocean

Time died at a quarter to Midnight
The scent of a ghost fills the air
The clock on the wall broke down to fall
My bleeding head on the baseboard
My how nothing changes
Different men in the same positions

Just this side of motel's end
At suicide ocean

Just this side of motel's end
At suicide ocean

Just this side of motel's end
At suicide ocean

The clock died at a quarter to midnight
Frozen angels on my bedpost
Tripping over some senseless beggar
A simple case of mistaken face
My how nothing changes
Different men in the same positions

Time died at a quarter to Midnight
The scent of a ghost fills the air
The clock on the wall broke down to fall
My bleeding head on the baseboard
My how nothing changes
Different men in the same positions
«Sim, eu era terrível. Na pequena sala de jantar da nossa vivenda, sob o candeeiro que nos iluminava durante as refeições, eu respondia por monossílabos às suas perguntas tímidas. Outras vezes, encolerizava-me ao mínimo pretexto, ou até sem qualquer motivo.
    Ela nem tentava compreender-me. Nem perscrutava as causas dos meus acessos de fúria: suportava-os como se da cólera de um deus se tratasse. «É a doença», dizia ela.»



François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 15

. A minha juventude não passou de um suicídio lento.

«Em compensação, quando pretendia gracejar, descarregava sobre os outros, mesmo sem querer, golpes que eles nunca mais me perdoavam. Ia direito aos pontos fracos, aos defeitos, que nenhum de nós gosta que nos apontem. Por timidez e por orgulho, falava com as mulheres no tom superior e doutoral que elas detestam. Era incapaz de lhes elogiar os vestidos. Quanto mais sentia que lhes desagradava, mais se acentuava tudo o que as afastava de mim. A minha juventude não passou de um suicídio lento. Receando desagradar involuntariamente, passei a ser desagradável de propósito.»



François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 15
«Eu, que mais tarde sofri tanto por me sentir doente e ninguém se importar com a minha doença, reconheço que fui justamente castigado pela minha dureza e pelo meu carácter implacável de rapaz mimado.»



François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 14

Fui cruel para com os que pretendiam amar-me.

«Lembro-me de que o prestígio dos meus sucessos, apesar do meu temperamento irritável, atraía certas índoles. Fui cruel para com os que pretendiam amar-me. Fugia dos «sentimentos.»



François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 13
   «Não me sentia preocupado e nada fiz para provocar as tuas confissões. Mas tu prodigalizaste-mas com tal complacência que, apanhado de surpresa, me senti perturbado. Na verdade,  não eram os escrúpulos que te obrigava a falar, nem sequer um sentimento de delicadeza para comigo, como me disseste e no qual, aliás, acreditavas.
     Não, tu sentias prazer em lembrar uma recordação feliz que não podias esconder por mais tempo. Talvez pressentisses a ameaça que isso representava para a nossa felicidade, mas, como se costuma dizer, foi mais forte do que tu. Não podias evitar que a sombra de Rodolfo vagueasse à nossa volta. O que sentias por ele ultrapassava-te.
      Porém, não imagines que foi o ciúme a causa da nossa desunião. Eu, que mais tarde me tornei um ciumento obcecado, não senti nada de semelhante naquela noite de Verão, a noite do ano de 85 em que me confessaste que estiveras, durante umas férias passadas em Aix, noiva desse rapaz desconhecido.»



François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 10

«Sinto-me feliz por poder morrer no único lugar do mundo onde tudo está tal e qual as recordações gravadas na minha memória.»


François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 8
«A característica dominante do meu carácter, que teria cativado qualquer outra mulher que não tu, é de uma lucidez impressionante.
    Essa capacidade de se iludirem a si próprios, que ajuda a viver a maior parte dos homens, nunca eu a possuí. Tive sempre plena consciência de tudo quanto de abjecto senti e pratiquei...»



François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 8
«(...) Quanto mais necessidade eu sentia de acreditar no meu valor, mais tu te empenhavas em provar a minha nulidade...Mas esse aspecto pouco importa. É de um outro silêncio que eu queria vingar-me; o silêncio em que te obstinaste quanto à nossa vida a dois, quanto à nossa desunião profunda. Quantas vezes, quando assistia a peças de teatro, ou lia romances, perguntei a mim mesmo se, na vida real, existirão amantes e esposas que fazem «cenas», que se explicam de coração aberto e que sentem alívio nesses desabafos.
   Durante estes quarenta anos em que sofremos lado a lado tiveste sempre a coragem de evitar toda e qualquer conversa mais profunda, matava-las à nascença.
   Cheguei a pensar que o fazias de propósito, por algum motivo que me escapava. Porém, certo dia percebi que a verdade era outra: o assunto não te interessava. Eu andava tão longe do teu pensamento que te furtavas, não por medo, mas porque te aborrecia. Eras hábil a pressentir os momentos de perigo; descobrias-me ainda longe. E, se te apanhava de surpresa, arranjavas facilmente pretextos para me dares um beijo e saíres pela porta.»



François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 7/8

sábado, 28 de dezembro de 2013

LOVBORG

 É verdade, Hedda! E quando eu lhe fazia as minhas confidências! Quando lhe contava os meus próprios problemas! Assuntos que nunca ninguém suspeitou que pudessem servir de tema das nossas conversas. Sentava-me lá e confessava que andava quase todos os dias e também as noites perdido de bêbado. Por fim, era mesmo todos os dias e todas as noites. Oh, Hedda! Que extraordinário poder havia em si para me obrigar a confessar coisas como essas!

HEDDA

 Acredita que houvesse um poder tão grande, em mim?



Henrik Ibsen. Hedda Gabler. Tradução de Freire de Andrade. Editorial Presença, Lisboa., p. 128

BRACK
Por que não há-de ter, como a maior parte das outras mulheres, uma dádiva, pela vocação que...?

HEDDA
Esteja calado! Às vezes quer-me parecer que somente tenho uma coisa como presente!

BRACK (Aproximando-se)
E qual é ela, sem me permite a pergunta?

HEDDA (Mantendo o olhar vago)
É aborrecer-me de morte. Agora já fica a saber. (Voltando-se e olhando na direcção da sala interior, com um sorriso ) É assim mesmo! Aí vem o nosso professor.

BRACK
Cuidado agora, minha senhora Hedda!



Henrik Ibsen. Hedda Gabler. Tradução de Freire de Andrade. Editorial Presença, Lisboa., p. 106

sempiterno


adjetivo
1. que não teve princípio nem há de ter fim; que dura muito
2. figurado perpétuo; incessante

(Do latim sempiternu-, «idem»)
HEDDA
Como é realmente o seu marido, Thea? Percebe o que digo... no trato diário? É amável para si?

SENHORA ELVSTED (Evasivamente)
É tão senhor do seu próprio valor, que julga que faz tudo melhor do que os outros.

HEDDA
Mas diga-me, não será velho de mais para si? Mais de vinte anos, não é?

SENHORA ELVSTED
Sim. É velho de mais. Em diversos aspectos, a minha vida com ele é miserável. Não temos nenhum ponto de contacto, eu e ele. Nem um bocadinho.

HEDDA
Mas ele não a estima? Quero dizer...mesmo fazendo-o à sua maneira?

SENHORA ELVSTED
Ora! Nunca soube qual é a maneira dele sentir. Julgo que lhe sou útil apenas. Apesar de tudo, não lhe saio cara. Sou fácil de contentar.

HEDDA
Isso é idiota da sua parte.

SENHORA ELVSTED (Abanando a cabeça)
Não consigo ser diferente. Pelo menos, com ele. Efectivamente, não gosta de ninguém a não ser dele próprio. Talvez um pouco, dos filhos...um pouco.



Henrik Ibsen. Hedda Gabler. Tradução de Freire de Andrade. Editorial Presença, Lisboa., p. 57/58

HEDDA GABLER

«Hedda Gabler, é um extraordinário retrato de mulher, que domina a intriga do primeiro ao último acto. A sua figura tem algo de fluido, de inapreensível. Lúcida, fascinante, dominadora, há nela quase todos os talentos para viver contente consigo própria. Todavia não vive; o tédio é a sua condição. Incapaz de romper, por um acto definitivo, com as grades em que se sente envolvida, incomunicável com o meio que a cerca, ela vai dissolver-se aos poucos na destruição, vai minar esse pequeno mundo dos outros do qual se sente à margem. Até ao último acto da tragédia. Hedda será sempre presa da sua profunda contradição: detesta o mundo das convenções mas falta-lhe a coragem para arrostar com o rompimento. Isso constituirá a sua derrota no amor e na vida.»

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013


amolgadelas

«Nessa noite, talvez não tivesse sido eu, mas o pavor dentro de mim, que de repente se tornou adulto.»

Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 24

Entendemos, sem compreender

«Entendemos, sem compreender, que ubornaia significa ida colectiva à retrete. Lá no alto, muito lá no alto, a lua redonda. A respiração esvoaçava diante dos nossos rostos, branca e cintilante como a neve debaixo dos nossos pés. A toda a volta, as pistolas automáticas prontas a disparar. E agora: calças abaixo.
   Aquele constrangimento, o sentimento de vergonha do mundo inteiro. Como era bom que aquela terra nevada estivesse tão sozinha connosco, que ninguém olhava para ela, a ver como nos compelia a todos a fazer o mesmo, ao lado uns dos outros, colados. Eu não precisava de ir à retrete, mas deixei cair as calças e pus-me de cócoras. Como era cruel e silenciosa aquela terra nocturna. Como nos expunha ao ridículo nas necessidades. Como a Trudi Pelikan, à minha esquerda, a arrepanhar o casaco com feitio de sino até às axilas e a puxar para baixo as calças até aos tornozelos, assim como o silvar da enxurrada entre os sapatos. Como, atrás de mim, o advogado Paul Gast a gemer de tanta força, como o intestino da sua sr.ª Heidrun Gast a estalejar da diarreia. Como, cintilante, logo congelava a toda a volta o vapor morno e pestilento. Como esta terra nevada nos zurzia uma cura de mata-cavalo, nos abandonava solitários de rabo a reluzir, no meio dos ruídos do baixo-ventre. Como se tornavam lamentáveis as nossas entranhas naquela comunhão.»


Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 23

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

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