sábado, 17 de agosto de 2024
'' mas nunca o amor tem a pronúncia que se espera ''
Herberto Helder. Letra Aberta. Poemas inéditos escolhidos por Olga Lima. Porto Editora, 2016., p. 34
depois quatro,
depois três,
depois dois,
depois um,
depois não nunca nada,
depois era: dêem-me um tiro na cabeça
para nunca nunca um só número,
todos os números,
qualquer número
e a água corre e vai enchendo a tua própria noite,
que fazer para não te afogares no sono,
que fazer para que te socorram,
que fazer para não encher de água o mundo inteiro?»
'' Mal de nós / se não pensarmos longe e alto.''
Lídia Jorge. O Livro das Tréguas. Poesia. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 2019.,p. 41
MAIORIDADE
No papel desenho-as, na mesa escrevo-as.»
A QUE ESPERA
mas eu não a alimentei.
Cão de guarda por cão de guarda
prefiro a alegria.
A ela entrego os meus dias
e o abraço daquele que vem de longe
para me dizer que o amor que foi ontem
ainda é hoje.
ELOGIO DA LÚCIDA LUCIDEZ
«Não falaste além do que devias, dever cumprido.»
Lídia Jorge. O Livro das Tréguas. Poesia. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 2019.,p. 29
'' Um poema é não me deixes ir ao fundo.''
Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 34
''Chorar-lhe o cuspo e não já lágrimas.''
Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 31
erosão de vida, buraco branco na explosão de coisa nenhuma,
corrosão infecta, enfermaria, anestésica
do que eu fosse e me curasse,
choque estelar e cósmica comédia de silêncio.
O grito! O grito! O grotto! O grotto!
A brancura hesitando na cama de rede do delírio,
escorrendo pelos ângulos da tarde
como uma marioneta ganhando vida de loucura,
térmites que eu vejo e não disseco, lacraus pulmonares
que me brotam das ideias e eu trem
e eu amo sem parceiro que invada
numa paragem de autocarro que eu passeio
na minha espera lenta de anteontem!”
Daniel Jonas, Canícula, pag.11
Onde estou que não me encontro?
Eu tenho uma fome assassina, de descarnar os cabos
das costelas, de estraçalhar milagres biológicos,
a existência miserável de seres que antes eram vivos
e agora enfeitam o cemitério do meu prato.
Esta afluência ao restaurante põe-me doido!
Este querer comer como eu quero este querer cuspir como eu
quero”
Daniel Jonas, Canícula, pag.48
Bob Dylan - Visions of Johanna
We sit here stranded, though we're all doin' our best to deny it
And Louise holds a handful of rain, temptin' you to defy it
Lights flicker from the opposite loft
In this room the heat pipes just cough
The country music station plays soft
But there's nothing, really nothing to turn off
Just Louise and her lover so entwined
And these visions of Johanna that conquer my mind
And the all-night girls they whisper of escapades out on the "D" train
We can hear the night watchman click his flashlight
Ask himself if it's him or them that's insane
Louise, she's all right, she's just near
She's delicate and seems like the mirror
But she just makes it all too concise and too clear
That Johanna's not here
The ghost of 'lectricity howls in the bones of her face
Where these visions of Johanna have now taken my place
He brags of his misery, he likes to live dangerously
And when bringing her name up
He speaks of a farewell kiss to me
He's sure got a lotta gall to be so useless and all
Muttering small talk at the wall while I'm in the hall
How can I explain?
It's so hard to get on
And these visions of Johanna, they kept me up past the dawn
Voices echo this is what salvation must be like after a while
But Mona Lisa musta had the highway blues
You can tell by the way she smiles
See the primitive wallflower freeze
When the jelly-faced women all sneeze
Hear the one with the mustache say, "Jeez, I can't find my knees"
Oh, jewels and binoculars hang from the head of the mule
But these visions of Johanna, they make it all seem so cruel
Sayin', "Name me someone that's not a parasite and I'll go out and say a prayer for him"
But like Louise always says
"Ya can't look at much, can ya man?"
As she, herself, prepares for him
And Madonna, she still has not showed
We see this empty cage now corrode
Where her cape of the stage once had flowed
The fiddler, he now steps to the road
He writes ev'rything's been returned which was owed
On the back of the fish truck that loads
While my conscience explodes
The harmonicas play the skeleton keys and the rain
And these visions of Johanna are now all that remain
Canícula
Fonte: https://observador.pt/2017/04/20/daniel-jonas-o-antiquado-que-e-o-mais-alto-da-poesia-portuguesa/
''Daniel Jonas , o antiquado que é o mais alto da poesia portuguesa''
Fonte: https://observador.pt/2017/04/20/daniel-jonas-o-antiquado-que-e-o-mais-alto-da-poesia-portuguesa/
Bater-se sempre à mesma porta que era antes.
Nem sei por vezes o que sinto. É um pavor
que vem de dentro, inodoro gás
do centro que se insinua indistinto,
e dura a vigília que me dura
e já nem sei o que velo eu por vezes,
que velo já cansaço e só olvido.
Tudo é triste mesmo quando não é.
O fim do Verão é triste se no meio,
e no princípio então não dura nada.
A cada fim de tarde na volta da praia
há um princípio de dia e de tarde sem volta
levado como um barco no horizonte argiloso
para o adro onde se enterram os dias.
O que foi feliz foi-o sob alguma sombra
e cada onda ensombra outra onda
e o tombo que déramos era o último que daríamos
e o riso o último antes do choro.
Eu olho a chuva e ela é triste.
É tudo triste em vez de só ser.»
«É preciso beber pela alma. Como as rosas.»
Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 29
Às vezes tudo é triste, mesmo o que não é.
Fingir-se estar com gente em frente à gente que não nos vê
e assobiar a solidão para o lado,
para aquela mesa além.
E quando a solidão se vai mais solidão se tem.
É fruste crer-se grande e ter de grande
um pouco, um tanto, um pouco mais,
levar com a raiva dos pequenos
e compartir com os magros a magreza do mundo.
Ao pé do rio tudo é mais tristonho.
É tudo entediante por princípio.
O fátuo mundo passa como se soubesse aonde vai
e todo o mundo crê caber algures
e ir aonde caiba e lhe cabe.
Fria é sempre a sopa dos pobres.
Sofrer por passatempo a vida de outros
e querer poupar-se as costas
onde se escreve ao escravo a pena de chicote
aquilo que não se lê mas se sente
e assim passar por outro
o que afinal de si não passa
o centro de onde há o tudo o que não há
e assumir que tudo é senhor da sua alma.
Que ilusão aliviar o jugo alheio
o próprio corpo levado às próprias costas!
« que mínima gente vem por aí à volta e aperta aperta
que nem se pode respirar,
gente que não precisa de oxigénio nem pensamento,
nem de uma só palavra que brilhe
que vá ao fundo da luva como a mão presta,
grande parte do povo não usa mão nenhuma
nem guarda nada de cabeça.»
penso um pensamento cobarde:
que eu morra durante o sono »
'' a fé, a coisa cega''
Herberto Helder. Letra Aberta. Poemas inéditos escolhidos por Olga Lima. Porto Editora, 2016., p. 15
«Não sei se escreva antes uns poemas que pràqui tenho
num canto da cabeça,»
''sôbolos rios que vão desaguando nas trevas,''
Herberto Helder. Letra Aberta. Poemas inéditos escolhidos por Olga Lima. Porto Editora, 2016., p. 13
'' o objecto na luz dos dias imperecíveis''
Herberto Helder. Letra Aberta. Poemas inéditos escolhidos por Olga Lima. Porto Editora, 2016., p. 10
''escrita sincopada''
ouço a tua escrita sincopada, e é perfeita. Teus terminais
de asas tocam o teclado e nada é pobre, feio, errado.»
IDADE DO BRONZE
falavam verdade - Antigamente, muito antigamente
Deus calçava os tamancos no meio dos campos
e fazia a sua justiça.
O mal , se acontecia, vinha para bem fazer.
O bem, por recompensa. O enforcado tinha cedido ao aceno
do demónio e a mulher parida, se morria entre dores aflitivas
era por não ter rezado - Nessa malha de justiça
a vida era perfeita.
Deus retirava o seu calçado, munia-se de trovões
e arremetia directamente contra os que diziam puros
mas não praticavam a misericórdia devida.
Por mau olhado, valia arrancar olhos e fígado.
O céu sabia tudo.
Agora estamos mal - dizem alguns.
Homens de todas as cidades levantam-se do chão
calçam e descalçam os tamancos e imitam o antigo Deus
na perfeição, riem alto. O céu não sabe de nada.
Estamos sós.
«Às aves nada temos para lhes ensinar.»
Lídia Jorge. O Livro das Tréguas. Poesia. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 2019.,p. 17
''revelar o lugar dos ninhos.''
Lídia Jorge. O Livro das Tréguas. Poesia. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 2019.,p. 16
as escamas, formavam-se nuvens de todas as cores.
Vinham os vendavais e faziam a cama às gaivotas.
Desses ovos nasciam pássaros desajeitados
que afagávamos entre as nossas mãos.''
Lídia Jorge. O Livro das Tréguas. Poesia. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 2019.,p. 14
sexta-feira, 16 de agosto de 2024
Tudo é triste mesmo o que é feliz.
«Tudo é triste mesmo o que é feliz.
Todas as coisas evocam um fracasso de outra coisa.
Tudo o que há é como se não houvesse sido ainda.
Tome-se como exemplo os dias de Verão
que o cerce vento barbeia,
a vaga percussão inútil
no vazio desamparado das piscinas»
Domingo a tarde - 1965
«É isto um homem ou um calafrio?»
Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 18
BREVE MANUAL PARA JARDINEIROS INQUIETOS
jardins onde as valsas não sobrevivem
e pessoas onde as flores não germinem.
Rui Xerez de Sousa
quinta-feira, 15 de agosto de 2024
quarta-feira, 14 de agosto de 2024
Cinema Japonês
Os primeiros filmes de 1960, e suas respectivas datas de estreia, de cada um dos seis cineastas que integram a Shôchiku Nûberu bâgu
''(...) produtividade da indústria japonesa, apenas no ano de 1960, seis cineastas diferentes filmaram, só nesse ano, 11 filmes que instauraram a linha Nûberu bâgu da Shôchiku: Osamu Takahashi jogando com as convenções do género policial com Kanojo dake ga shitte iru (Only She Knows, 1960) e Shisha to no kekkon (Marriage with the Dead, 1960); Nagisa Ôshima com os explosivos Seishun zankoku monogatari (Contos Cruéis da Juventude, 1960), Taiyô no hakaba (The Sun’s Burial, 1960) e Nihon no yoru to kiri (Noite e Nevoeiro no Japão, 1960); Kijû Yoshida com os escalpelizantes exercícios de desencanto social Rokudenashi (Good-for-Nothing, 1960) e Chi wa kawaiteru (Blood is Dry, 1960); Masahiro Shinoda com os heterogéneos Koi no katamichi kippu (One Way Ticket to Love, 1960) e Kawaita mizûmi (Dry Lake, 1960); Tsutomu Tamura com o seu niilista e claustrofóbico Akunin shigan (Volunteering for Villainy, 1960) e, finalmente, Eitarô Morikawa com A Tragédia do Bushidô, estreado no penúltimo mês do ano e o último filme da linha.''
Fonte: https://apaladewalsh.com/2023/10/a-tragedia-do-bushido-estetica-da-crueldade/
segunda-feira, 12 de agosto de 2024
ONATA DE OUTONO (1978)
ONATA DE OUTONO (1978), um dueto entre duas grandes atrizes, Ingrid Bergman e Liv Ullmann, inesquecível na cena da noite em que se enfrentam filmadas por Ingmar Bergman, “porque os rostos nunca foram tão alma, nunca se escavou tão dentro das pessoas” (João Bénard da Costa)
La fontaine de sang
Au rythme de son cœur
Coule et donne à boire
À des bouches au hasard
Des amis, des amants
Viennent boire impunément
Des gorgées de son sang
Gastrolâtres et gourmands
Viendront dévaliser
La fontaine de sang
Gastrolâtres et gourmands
Viendront dévaliser toute
La fontaine de sang
Sa fontaine de sang
La fontaine de sang
Sa fontaine
Est gobée librement
L'insatiable parent
A tué ses enfants
Retrouvera la vie
Une fois que ses ennemis
Ne seront plus de son temps
quinta-feira, 8 de agosto de 2024
Mojo Pin
Oh-oh, ah-ah, ah-ah
Uh, uh-uh, uh, uh
Oh-oh, uh-uh
The blanket is warm
This body will never be safe from harm
Still feel your hair, black ribbons of coal
Touch my skin to keep me whole
If you laid at my side
Wouldn't need no mojo pin
To keep me satisfied
Don't want to know
I'm blind and tortured, the white horses flow
The memories fire
The rhythms fall slow
Black beauty, I love you so
And pearls in oyster's flesh
Drop down we two to serve and pray to love
Born again from the rhythm
Screaming down from heaven
Ageless, ageless, I'm there in your arms
I don't want to know
I'm blind and tortured, the white horses flow
The memories fire
The rhythms fall slow
Black beauty, I love you so
So, so, so
So
Send whips of opinion down my back, give me more
Well it's you I've waited my life to see
It's you I've searched so hard for
Don't want to know
I'm blind and tortured, the white horses flow
The memories fire
The rhythms fall slow
Black beauty, I love you so, so
Black, black, black beauty
segunda-feira, 5 de agosto de 2024
« - ele há de facto pessoas muito estranhas, diz a Rosa;
ele alguma coisa fez! traz decerto na consciência...
-então, e a rapariga ... - rapariga é só um dizer!
- algum conselho de médico;
- capaz...
sim, ele de resto parece que nem come, todos ao
domingo de fartos de o convidar, mas ele
ao domingo até sai, e na ilha festa com o cabrito!
aonde vai ninguém sabe; também não interessa,
interessam questões sadias, que idade terá ele?»
Alberto Pimenta. Ilhíada. Edições do Saguão., p. 78
''El que no ve la belleza está condenado a destruirla.»
“O que há de bom em uma pintura nunca é pintado.”
«Quem não vê a beleza está condenado a destruí-la. A beleza não é o que acreditam aqueles para quem não é algo vital. Quem não vê não sente falta e confunde. Quem não vê, irá destruí-lo sem saber o que é.»
Golucho, pintor espanõl
And the times never right when you’re losing a soul
The summer breeze, the days were long
Meadow haze so callowly, those child eyes
I used to feel the feelings
Love that I once said I’d never rile
The burden of life… just won’t leave us alone
And the times never right… when your trading the sun
All the love of generations
Generations gone for reasons, that I know
But all the times I’ve lost my way
Crept inside, tried not to sway
Like pebbles on the shore
The burden of life… just won’t leave us alone
And the times never right… when we’re trading the sun
So all the fire, the fear, the why
The wisdom why you want it now
No Answers… are there
No Answers… of why
Cos the burden of life just won’t leave us alone
And the times never right when you’re losing a soul
Burden Of Life
Canção de Beth Gibbons
domingo, 4 de agosto de 2024
sábado, 3 de agosto de 2024
''Eu não via mais minha mãe. A trança ainda queimava. O quarto estava cheio de fumaça. Eles mataram você, disse minha mãe. Nós não nos enxergávamos mais de tanta fumaça que havia no quarto. Eu ouvia seus passos perto de mim. Tateava por ela com os braços esticados. De repente ela enganchou sua mão magra em meu cabelo. Sacudia minha cabeça. Eu gritava. Arregalei os olhos. O quarto girava. Eu estava deitada numa esfera de flores brancas despetaladas e estava presa. Então tive a sensação de que a casa caía e se esfarelava no chão. O despertador tocou. Era sábado de manhã, cinco e meia.''
“Eu não posso colocar a minha cabeça em um cofre, preciso continuar vivendo com isso. Vivi mais de trinta anos em uma ditadura, não vou poder separar totalmente todas as coisas do círculo problemático que trouxe comigo. E isto provavelmente não mudará apesar de viver agora no ocidente, pois experiências se acumulam e aprender é relacionar uma coisa com outra”
Herta Müller
“Aquilo que levianamente se denomina história também era para cada um da minha família, desde o nazismo, passando pelos anos 1950, o lado noturno da garganta. Cada um deles foi convocado pela história, tinha de alistar-se junto à história como vilão ou como vítima. E da dispensa da história nenhum deles saiu incólume. Meu pai anestesiava seu tempo como soldado da SS na bebedeira. Minha mãe se debatia com a careca morta de fome que ela fora como deportada, minha avó venerava a mala do acordeão, meu avô não largava seus blocos de recibos. Em cada um deles colidiam coisas na cabeça que jamais deveriam encontrar-se. Só fui realmente compreender como esses meus familiares se ressentiam desses danos quando eu mesma havia topado com a falta de saída. Só então eu sabia que com um assalto profundo demais todos os nervos ficam sobrecarregados para sempre. Que essa sobrecarga se afirma nos dias posteriores, que até mesmo recorre ao tempo anterior a ela. Ela não muda somente as coisas posteriores, mas também as anteriores que não teriam nada a ver com a fenda na vida, caso não houvesse a fenda. Tudo é magnetizado por essa ruptura, na cabeça toda e na vida toda nada mais se separa dela. O que havia antes da fenda se apresenta depois como se já tivesse estado aí escondido e por isso não fora reconhecido, já então um prenúncio inequívoco da perda posterior, um prólogo levianamente ignorado.''
(Herta Müller. Se nos calamos, tornamo-nos incômodos- se falamos, tornamo-nos ridículos. In: O rei se inclina e mata, p.99-100)