sexta-feira, 11 de março de 2016
sexta-feira, 4 de março de 2016
terça-feira, 1 de março de 2016
segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016
«(...) Conheço-a,
embora esta pareça um pouco transformada:
tem um toque novo,
talvez seja menos dolorosa
à superfície. Não lhe lavro o saibro, a crosta,
com medo de lhe encontrar o mesmo coração
estrangulado,
o desvairo de trevas
sem alternativa»
Egito Gonçalves. os pássaros mudam no outono. 1ª edição. Editora Limiar, 1981., p. 16
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''dói-lhe um sorriso nos lábios''
António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 34
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(...)
«Pede um cigarro. Fuma.
Labaredas loucas saem-lhe da garganta.
Da bruma
espreita-o uma mulher nua, branca, branca.
Fuma mais. Outra vez.
E atira um braço decepado para a mesa.
Não pensa no fim do mês.
A noite é a sua única certeza.»
António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 33
«Pede um cigarro. Fuma.
Labaredas loucas saem-lhe da garganta.
Da bruma
espreita-o uma mulher nua, branca, branca.
Fuma mais. Outra vez.
E atira um braço decepado para a mesa.
Não pensa no fim do mês.
A noite é a sua única certeza.»
António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 33
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«RETRATO DO ARTISTA EM CÃO JOVEM»
António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 25
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«o cão de circo para os domingos da família»
António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 25
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''durante tanta alegria que não era tua»
António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 24
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«As tuas mãos que a tua mãe cortou
para exemplo duma cidade inteira»
António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 24
para exemplo duma cidade inteira»
António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 24
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« eu eu partisse a fumar
e o fumo fosse para se ler»
António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 23
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(...)
«não é uma pátria
não é esta noite que é uma pátria
é um dia a mais ou a menos na alma
como chumbo derretido na garganta
um peixe nos ouvidos
uma zona de lava»
António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 22
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«é um dia perfeitamente para cães
alguém deu à manivela para nascer o sol»
António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 22
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3
«Roda de todas as torturas e todas as seduções, deixaste de girar, estás agora aqui, partida, abandonada no próprio local do sangue; transportada de homem em homem através dos séculos, foste há pouco deposta pelo último homem, esse que desapareceu, ia de lado, com os joelhos duros cobertos de água e as mãos cem metros à sua frente em sinal de maldade. Corpo a corpo foste gasta até à última noite e até à última estrela; palavra a palavra foste sugada e bebida e de todos os lados sempre novas bocas chegavam para te sugar e beber; ficaste um gesto que perseguimos à dentada e acabámos por matar. Vêde: a destruição prossegue docemente. Restam apenas aqui e além algumas cidades com os seus milhões de almas e nada mais. Pequenas marcas de sangue cada vez mais vivas assinalam a nossa passagem entre as agulhas de carvão do tempo. Canhões ocupam a entrada da luz. E de Norte a Sul, de Este a Oeste, de criança para criança, aguarda-se o sinal de fogo.
Não estranheis os sinais, não estranheis este povo que oculta a cabeça nas entranhas dos mortos. Fazei todo o mal que puderdes e passai depressa.
....................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................»
António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 15
2
«Falámos tanto ou tão pouco que de repente o silêncio que se fez foi essa patada no peito de que guardamos a marca quando agora choramos, quando estendemos as mãos carregadas de dedos mortos, sonhámos tanto que mais de uma vez tivemos de matar, que mais de uma vez nos estoiraram os olhos sob a pólvora das lágrimas e as tuas mãos voaram estilhaçadas, jogámos tanto que para não nos perdermos arriscámos tudo, até tornarmos a morte uma coisa nossa, tão nossa que é ela que anda agora vestida com a nossa pele e os nossos ossos, escorregando pelas paredes de cabeça p'ra baixo ou subindo pelo interior dos bicos, olhando do alto o sangue que ficou no centro, entre os carris, passando de cadafalso em cadafalso com os lábios furados pelas unhas, com a cintura roxa das dentadas da noite, da miséria dos dias.
.................................................................................................................................................................»
António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 14/5
«Havia quem se suicidasse escrevendo um poema, como havia quem se suicidasse olhando simplesmente para o mar.»
(...)
«Havia quem se suicidasse escrevendo um poema, como havia quem se suicidasse olhando simplesmente para o mar. Qualquer coisa flutuava, a certas horas, ao redor das bocas, e era sangue ou labaredas, nunca se sabia bem. Era às vezes uma flor na boca duma criança.
Uma noite uma mulher, estendendo os braços para o horizonte, lançou de súbito um grito lancinante: AVIÕES! Mas era apenas um bando de gaivotas e a mulher teve de ser enforcada. Tais enganos constituíam segredos de Estado.
António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 13
domingo, 28 de fevereiro de 2016
''Quando não há caminho para a felicidade,
a felicidade é o caminho.''
Mahatma Gandhi
a felicidade é o caminho.''
Mahatma Gandhi
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sábado, 27 de fevereiro de 2016
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016
''a anulação das unhas''
Egito Gonçalves. os pássaros mudam no outono. 1ª edição. Editora Limiar, 1981., p. 11
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'' a pele flagelada de febre''
Egito Gonçalves. os pássaros mudam no outono. 1ª edição. Editora Limiar, 1981., p. 11
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« e sinto
uma palpitação de ternura que me arranca de muito
longe. É um caminho
que cruzo novamente,»
Egito Gonçalves. os pássaros mudam no outono. 1ª edição. Editora Limiar, 1981., p. 10/11
uma palpitação de ternura que me arranca de muito
longe. É um caminho
que cruzo novamente,»
Egito Gonçalves. os pássaros mudam no outono. 1ª edição. Editora Limiar, 1981., p. 10/11
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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016
"Ser companheiro vale mais do que ser chefe. É preciso que os homens à sua volta nunca tenham nenhuma angústia, não sofram nunca por o sentirem a você superior a eles; a sua superioridade, se existir, deve ser um bálsamo nas feridas, deve consolá-los, aliviar-lhes as dores. A sua grandeza, querido Amigo, deve servir para os tornar grandes, no que lhes é possível, não para os humilhar, para os lançar no desespero, no rancor, na inveja."
Agostinho da Silva, Sete Cartas a um Jovem Filósofo
terça-feira, 23 de fevereiro de 2016
segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016
«Sempre que não temos percepções sucessivas não temos noção de tempo, mesmo que haja uma sucessão real de objectos.»
David Hume. Tratado da Natureza Humana. Tradução de Serafim da Silva Fontes. Prefácio e Revisão Técnica da Tradução de João Paulo Monteiro. 2ª Edição. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2010., p 67
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«Uma pessoa a dormir profundamente ou inteiramente dominada por um pensamento é insensível ao tempo;»
David Hume. Tratado da Natureza Humana. Tradução de Serafim da Silva Fontes. Prefácio e Revisão Técnica da Tradução de João Paulo Monteiro. 2ª Edição. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2010., p 66
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«(...), muitas das nossas ideias são tão obscuras que, mesmo para a mente que as forma, é quase impossível dizer exactamente a sua natureza e composição.»
David Hume. Tratado da Natureza Humana. Tradução de Serafim da Silva Fontes. Prefácio e Revisão Técnica da Tradução de João Paulo Monteiro. 2ª Edição. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2010., p 65
David Hume. Tratado da Natureza Humana. Tradução de Serafim da Silva Fontes. Prefácio e Revisão Técnica da Tradução de João Paulo Monteiro. 2ª Edição. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2010., p 65
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«Uma demonstração, sendo justa, não admite dificuldade contrária; não sendo justa, é um puro sofisma e por conseguinte jamais pode constituir dificuldade. Ou é irresistível, ou não tem qualquer força. Portanto, falar de objecções e respostas e comparar argumentos numa questão desta natureza ou é confessar que a razão humana não é senão um jogo de palavras, ou que a própria pessoa que assim fala não tem capacidade à altura de tais matérias. As demonstrações podem ser difíceis de compreender em virtude do carácter abstracto do assunto, mas uma vez que sejam compreendidas jamais podem ter dificuldades tais que enfraqueçam a sua autoridade.»
David Hume. Tratado da Natureza Humana. Tradução de Serafim da Silva Fontes. Prefácio e Revisão Técnica da Tradução de João Paulo Monteiro. 2ª Edição. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2010., p 63
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«Tinha a cabeça partida e o sangue corria-lhe pela barba e pela sotaina toda esfarrapada.
-Santo higumeno - gritou ele - os anticristos assassinaram-me porque eu votei em ti anteontem nas eleições...»
Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 204
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« - Tem paciência, não estejas triste. É necessário que a nossa alma resista bem e não sucumba porque se algumas almas soçobrarem no mundo, o mundo desmoronar-se-á. São essas almas que o sustêm. É pouco mas é bastante.»
Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 204
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«Não tínhamos dito ainda uma palavra, mas sentíamos o coração angustiado.»
Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 203
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«Que é que vocês vêm cá fazer, seus palermas? - perguntou.
-Vimos rezar, meu velho.
-Rezar, porquê? E a quem? Estão doentes?
-Vimos ao mosteiro.
-Qual mosteiro? Já não há mosteiro, acabou! O mosteiro é o mundo. Tomem um bom conselho: voltem para o mundo!»
Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 203
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«Permanecia sentado todo o dia atrás da porta com um canivete na mão que lhe servia, ao que parece, para ir gravando em madeira Cristos, santos e demónios pequeninos.»
Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 203
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''acariciava um grande gato negro sobre os joelhos''
Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 201
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domingo, 21 de fevereiro de 2016
''punha-se a falar de mares''
Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 198
''velhos registos, roídos pelos vermes...''
Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 198
''celas enegrecidas pela humidade e pelo bolor''
Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 197
Como dizia um amigo meu que já faleceu: “O que interessa na mulher são as características morais, mas se for bonita ajuda”.
António Coimbra de Matos
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«O que acontece é que para o homem, por comparação com o macaco, é importante a beleza de uma rosa, o perfume de uma mulher. O que tem valor para a nossa vida não é só o cheiro a cio.»
Entrevista pelo Jornal Público a António Coimbra de Matos
Ver aqui
«Diz-se muitas vezes que o homem é um animal de hábitos, mas não é verdade. O macaco é um animal de hábitos, o homem é um animal criador, está sempre a criar coisas novas. E por isso criou uma civilização. O ser humano é de tal modo criador – e eu sou ateu! – que até criou um deus. Deus é uma criação do homem. Na psicanálise estou mais interessado no futuro do que no passado. A psicanálise clássica está sempre muito ligada ao passado: o que aconteceu com a mãezinha, com o paizinho. Eu ando mais ligado àquilo que a pessoa projecta no presente e para o futuro.
No seu divã não lhe interessa aquilo que foram as vivências e as memórias recalcadas?
Isso também é importante. Costumo dizer aos meus alunos, na brincadeira, que os analistas clássicos me fazem lembrar um condutor de automóveis que vai sempre a olhar para o retrovisor; depois espeta-se no primeiro eucalipto. Não é isso que me interessa. Dá-se uma vista de olhos de vez em quando mas olha-se em frente, fundamentalmente.»
Entrevista pelo Jornal Público a António Coimbra de Matos
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«Fiz a instrução primária numa aldeia do Douro e ouvia dizer que o Afonso Henriques era um mata-mouros. Eu inventei uma outra designação: não era um mata-mouros, era um fode-mouras [risos]. Eles conquistavam as mouras e não precisavam de liquidar os mouros. Na maior parte das vezes aproveitaram a estrutura montada pelos árabes. Os espanhóis não fizeram isso e tiveram muito mais dificuldade em conquistar.»
Entrevista pelo Jornal Público a António Coimbra de Matos
Ver aqui
«Há pouco tempo foram divulgados números que revelam um aumento dos casos de suicídio em Portugal.
Sim. Há um trabalho célebre, um trabalho seminal, em que o pai da Sociologia, o Durkheim, verificou que quando há guerras e revoluções a depressão e os suicídios diminuem porque as pessoas se revoltam. Quando as pessoas não se revoltam, é que se suicidam; quando se sujeitam, quando não têm condições para protestar com mais veemência.»
Sim. Há um trabalho célebre, um trabalho seminal, em que o pai da Sociologia, o Durkheim, verificou que quando há guerras e revoluções a depressão e os suicídios diminuem porque as pessoas se revoltam. Quando as pessoas não se revoltam, é que se suicidam; quando se sujeitam, quando não têm condições para protestar com mais veemência.»
Entrevista pelo Jornal Público a António Coimbra de Matos
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sábado, 20 de fevereiro de 2016
Ia alternando: ora ficava em casa de Solange, ora na de Adélia. Gostava mais de ficar na vivenda de Adélia onde tinha um quarto só para si e um quintal onde se entretinha a arrancar as folhas secas das roseiras e os joios que cresciam nos canteiros. No apartamento de Solange sentia-se presa, passava muito tempo à janela da cozinha como se só aí, no parapeito, observando o movimento da rua, conseguisse estar. Nesse Natal, chegou muito debilitada, o corpo cada vez mais torto e respirando com dificuldade. Toda a vida sofrera de falta de ar sem nunca lhe ter sido feito um diagnóstico ou proposta qualquer terapêutica. Em Felicidade notava-se um permanente arfar pesado, mas sempre que se sentia mais aflita recorria a mezinhas antigas: tomava chá de folhas de eucalipto e, por conselho de uma vizinha de São Bartolomeu, nos últimos tempos, fumava cigarros feitos com as folhas secas de uma planta que crescia nos terrenos arenosos junto da ribeira. Às vezes, para acalmar a chiadeira das secreções, também usava as folhas da planta em cataplasmas que aplicava no peito antes de dormir. Solange aceitava os remédios caseiros da mãe, mas torcia o nariz quando a via na casa de banho, sentada na sanita, fumando aqueles estranhos cigarros.
- Isso tem algum jeito… – dizia com paciência, sorrindo, mas achando tudo aquilo disparatado e até um pouco triste.
Nesse último Natal, nem os cigarros que fumou, nem os chás que bebeu nem sequer as cataplasmas que aplicou surtiram efeito. Tossia muito, cada vez mais. Às vezes, parecia quase sufocar; nos intervalos, abria a boca como uma carpa chinesa e respirava fundo para sentir o ar chegar aos pulmões. Os ataques provocavam-lhe constantes perdas urinárias que faziam com que largasse um cheiro adocicado de urina e exsudação. Era um cheiro intenso, enjoativo, mas que não causava a Solange propriamente repulsa. Notava, porém, o desconforto do marido e das filhas quando, sentados a ver televisão, viam Felicidade chegar da cozinha e sentar-se a seu lado.
Nessa manhã de Dezembro, ainda de robe traçado, o cabelo num desalinho, Solange arranjava um pedaço de carne para fazer o almoço. Preparava-se para cortar os pés de porco, rijos como cornos, de uma brancura, tão lisa e fúnebre, que faziam lembrar cotos de estearina ardendo em tocheiros de santuários e capelas. Cortado, o chispe cozia melhor, bastava meia hora na panela de pressão e ficava gelatinoso, tenro, desfazia-se em lascas.
Foi então que Felicidade entrou na cozinha. Cheirava pior do que costume, um bafo excessivo parecia libertar-se do seu corpo e espalhar-se, não só na cozinha, mas por todo o apartamento. Solange notou-lhe uma grande mancha na bata e, sentindo uma tristeza repentina, os seus olhos encheram-se de lágrimas. Não querendo revelar essa fraqueza à mãe, continuou o que estava a fazer. Ergueu o cutelo e procurou localizar as articulações para não falhar o corte. Com um golpe vigoroso partiu em dois o chispe, mas, foi tal a força que imprimiu ao gesto, que se rachou a tábua de cozinha. O periquito, que afiava o bico na pedra de cálcio, amedrontou-se e piou de um modo esquisito.
- Mãezinha, antes do almoço, vou dar-lhe banho, está bem? - Disse Solange, enquanto metia a carne na panela de pressão. Pressentia que o cansaço de Felicidade já não lhe permitia tratar sozinha da sua higiene. A mãe anuiu como se não entendesse bem o significado do que a filha dizia.
Solange aqueceu a casa de banho para evitar constipações, encheu a banheira de água tépida, colocou a roupa interior a aquecer no radiador a óleo. Depois, com cuidado, ajudou a mãe a despir-se. Tirou-lhe a bata, a saia, a camisola, a combinação, as meias de lã que usava sempre presas com uma liga de elástico preto. Felicidade ficou apenas de cuecas e sutiã, de lenço na cabeça.
- Vá, vamos lá tirar o resto! - Disse Solange com despacho, disfarçando o desconforto que a iminente revelação da nudez da mãe lhe provocava.
Felicidade porventura já não sentia o corpo vivo ou talvez estivesse demasiado cansada para sentir vergonha. Tirou as cuecas e desapertou os colchetes do sutiã com uma naturalidade que impressionou Solange. Deixou-se ficar nua, de pé, em frente da filha: corpo exposto, mas de lenço na cabeça.
- Tire lá o lenço! Há quanto tempo é que essa cabeça não é lavada em condições? – Perguntou Solange e, desviando o olhar das mamas e do sexo da mãe, fez um gesto para lhe tirar o lenço.
Felicidade recuou, levando as mãos à cabeça. Solange estranhou o gesto: a mãe parecia não ter vergonha de estar nua à sua frente, mostrava-lhe com uma estranha desenvoltura a plenitude da sua nudez enrugada, assexuada, mas recusava revelar-lhe essa outra nudez. Sabia que o lenço era uma espécie de segunda pele para a mãe. Na aldeia, todas as mulheres mais velhas ainda o usavam: com um nó apertado por baixo do queixo ou, nos dias de mais calor, atado atrás do pescoço. Que se lembrasse, só uma mulher mais velha andava sempre de cabeça descoberta. Era a irmã da Preciosa, mas essa tinha desculpa: para além de muda, era meio atrasada. Passava os dias a comer caramelos e a embalar bonecas na aduela da porta. Pois, com excepção da muda, todas as mulheres da geração da mãe usavam lenço; o lenço era um sinal de honra, de dignidade, sobretudo de respeito pelos maridos mortos.
Felicidade continuou a teimar como uma criança, agarrada ao lenço preto. Solange acabou por se irritar com a teimosia e fez-se ríspida: chegou perto da mãe e, com brusquidão, arrancou-lhe o lenço da cabeça. Viu um crânio liso, muito lustroso, calvo. Apenas um penacho de cabelos brancos nasciam no cocuruto, tornando ainda mais triste a sua aparência. A mãe era completamente careca.
- O cabelo começou a cair quando o paizinho morreu… – Explicou Felicidade tapando a cabeça com as mãos. – Fiquei sozinha, filha, tinha muitas saudades dele! Quanto mais triste me sentia mais o cabelo me caía. Foi caindo, caindo até ficar assim…
Solange voltou a sentir vontade de chorar. Colocou o lenço na cabeça da mãe, atando-o atrás para que não se molhasse. Depois, ajudou-a a entrar na banheira e deu-lhe banho, já sem estranhar a sua nudez. Lavou-a como se fosse uma criança, notando a fragilidade daquele corpo sempre escondido do sol: uma vida de trabalho no campo e a pele lisa, tão branca. Lavou-a com vagar: tronco, pernas, braços, os pés cheios de calosidades. Sentada na banheira, nua, o lenço atado na cabeça, Felicidade parecia não se sentir desapossada do seu corpo. Às vezes sorria à filha como que a dizer-lhe que lhe sabia bem a ternura daquele momento.
(A minha avó chamava-se Felicidade.)
Ana Cássia Rebelo. Ver aqui
"Quis publicar um livro mas nunca o chegou a fazer, porque estava continuamente a fazer alterações no manuscrito, e fez tantas e tão grandes que, por fim, do manuscrito já nada restava, a alteração do manuscrito nada mais era do que a eliminação total do manuscrito, do qual por fim nada mais ficou do que o título O Náufrago. Agora tenho apenas o título, disse-me ele, assim é que está bem. Não sei se terei forças para escrever um segundo livro, parece-me que não, dissera ele, se O Náufrago tivesse sido publicado, disse ele, teria sido obrigado a matar-me."
Thomas Bernhard, O Náufrago
Thomas Bernhard, O Náufrago
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Sopa de peixe
A minha mãe matou-me muitas vezes. Da primeira vez, era ainda pequenina, cabia dentro da sua mão, atirou-me ao mar. Da segunda vez, começava a dar os primeiros passos, aos tropeções pela sala do crocodilo amarelo, atirou-me ao rio. Quando tinha seis anos, no tempo em que usava o cabelo preso em duas tranças e passava o dia a soletrar palavras difíceis, pôs-me a dormir e ligou o gás do fogão. Devia ter dez anos quando misturou veneno na sopa de peixe. Sabia que, por ser a minha sopa preferida, a comeria até ao fim, raspando o prato até não sobrar uma gota. Aos treze anos, num domingo de tempestade, os relâmpagos caiam no monte de ervas altas, afogou-me na banheira. Aos quinze, já não esperava que o fizesse, sufocou-me com a almofada de veludo azul. Ontem, dia em que fiz dezoito anos, a minha mãe levou-me ao último andar da torre onde vivemos e empurrou-me. Cansada de morrer, olhei para as mãos da minha mãe, paralisadas no ar, e voei para longe.
Ana Cássia Rebelo. Ver aqui
terça-feira, 16 de fevereiro de 2016
Branco no Branco, o poema XXV
Raivosos, atiraram-se contra a sombra
de umas acácias que por ali havia,
o corpo dorido de tanto desejar.
Olharam em redor, ninguém os vira,
a terra era de areia, a sombra dura,
também a carne endurecera
e secara a boca, só os olhos
tinham ainda alguma água fresca
Os dedos cegos foram os primeiros
a rasgar, ferir, e logo os dentes
morderam, nem sequer
ao sexo deram tempo de penetrar.
Eram muito jovens; a terra não,
a terra estava exausta,
o coração mordido pelas vespas,
só queria morrer.
Eugénio de Andrade
Raivosos, atiraram-se contra a sombra
de umas acácias que por ali havia,
o corpo dorido de tanto desejar.
Olharam em redor, ninguém os vira,
a terra era de areia, a sombra dura,
também a carne endurecera
e secara a boca, só os olhos
tinham ainda alguma água fresca
Os dedos cegos foram os primeiros
a rasgar, ferir, e logo os dentes
morderam, nem sequer
ao sexo deram tempo de penetrar.
Eram muito jovens; a terra não,
a terra estava exausta,
o coração mordido pelas vespas,
só queria morrer.
Eugénio de Andrade
«Os seios de Maria caíam nus da blusa. Uma das mãos do carpinteiro perdia-se
nos seus cabelos emaranhados, a outra parecia ter-se enterrado na areia. O resto
era aquele corpo todo de homem: rígido e fremente ao mesmo tempo, à força
de concentrar todo o ímpeto nas nádegas, arco de onde a flecha partia, para se
cravar exasperada nas entranhas da rapariga. Parecia um cavalo ofegante – os
olhos cerrados, o suor escorrendo da raiz dos cabelos, espalhando-se pelas costas,
pelos flancos, pelas pernas, quase todas descobertas. Um cavalo cego mordendo
o céu branco de agosto.»
Eugénio de Andrade, Poesia, p. 394-395.
nos seus cabelos emaranhados, a outra parecia ter-se enterrado na areia. O resto
era aquele corpo todo de homem: rígido e fremente ao mesmo tempo, à força
de concentrar todo o ímpeto nas nádegas, arco de onde a flecha partia, para se
cravar exasperada nas entranhas da rapariga. Parecia um cavalo ofegante – os
olhos cerrados, o suor escorrendo da raiz dos cabelos, espalhando-se pelas costas,
pelos flancos, pelas pernas, quase todas descobertas. Um cavalo cego mordendo
o céu branco de agosto.»
Eugénio de Andrade, Poesia, p. 394-395.
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