terça-feira, 1 de abril de 2014
Quando o cadáver cheira a política até as moscas largam a asa
«Tendo em vistas o advogado dos brilhos, salienta que o homo politicus é um animal lixado de trabalhar porque tem padrinhos no céu e afilhados no inferno, para não falarmos no purgatório que é onde se junta a maralha dos conspiradores em part-time. Por estas e por outras é que: Quando o cadáver cheira a política até as moscas largam a asa, como se costuma dizer, e muito bem, aqui o nosso chefe Santana.»
José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 138
José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 138
Etiquetas:
Balada da Praia dos Cães,
imagens,
José Cardoso Pires
«(...) tufos de pêlos irrompem-lhe das axilas. Debruçado nas costas da cadeira o polícia estuda-a com olhos de míope.
Mena. Os braços erguidos alteiam-lhe os seios que parecem soltos e estão mesmo (sem soutien, pela maneira de descair do pull-over) e os pêlos do sovaco são dum negro seco e agreste, tão negro como é decerto todo o cabelo que ela tem no mais privado do corpo e com um gosto acidulado, retenso. O chefe de brigada tira um limpa-unhas do bolso num movimento paciente.
Silêncio. O silêncio do preso é a insónia do polícia, aguardemos.»
José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 128
Abril
«Vizinha da morte estava ela, vizinha como nunca; uma mulher paredes meias com a morte e com o sangue. Mas durante este tempo, todos os dias uma criada lhe fazia chegar ao quarto três das mais belas rosas desse Abril.»
José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 128
José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 128
Etiquetas:
Balada da Praia dos Cães,
imagens,
José Cardoso Pires
«O meu exemplar (primeira edição, hoje rara) descobri-o em Coimbra, por acaso, durante o despejo dum armazém de alfarrabista pobre. Não está mal conservado apesar no segundo terço do livro e um túnel de traça, ainda incipiente, que eu próprio limpei e desinfectei, assim como meti cola nova na lombada, esta sem dúvida em mau estado: a tela interior no fio, o papel de fora a esfarelar-se.»
Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 425
«(...) mandem gravar na campa do poeta o epitáfio que ele próprio escreveu:
A dádiva suprema é dar a vida
Ao silêncio de pedra que é a morte.
Larga-me da vida, morte,
Faz-me da morte pedra.
Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 421
A dádiva suprema é dar a vida
Ao silêncio de pedra que é a morte.
Larga-me da vida, morte,
Faz-me da morte pedra.
Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 421
Etiquetas:
Afonso Duarte,
Carlos de Oliveira,
poetas portugueses
« - Sabes, um suicídio a dois só com o acordo de ambos e tu não me perguntaste nada, pois não?»
Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 416
nenhuma companheira é possível e as solidões somadas pesam mais que uma só
«De Álvaro de Campos: «ó companheira que eu não tenho nem quero ter». Olho para Gelnaa e não compreendo: tenho-a e quero tê-la. Mas ao mesmo tempo compreendo: não a devia ter a ela; ou não vale a pena tê-la; ou então dói-me a sua fragilidade, sombra dum arquétipo, eterno neste momento. Logo depois volto a não compreender: meu amor mortal, de carne e osso, tenho-te para sempre, agora. Coisas que se equivalem, na gramática relativa da vida. Não nos deram outra, Gelnaa. E mal acabo de pensar isto compreendo de novo: nenhuma companheira é possível e as solidões somadas pesam mais que uma só. Etc.»
Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 415
segunda-feira, 31 de março de 2014
(...)
«Assim se movem
as nuvens comovidas
no anoitecer
dos grandes textos clássicos.»
Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 401
«Assim se movem
as nuvens comovidas
no anoitecer
dos grandes textos clássicos.»
Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 401
Etiquetas:
Carlos de Oliveira,
poesia,
poetas portugueses
domingo, 30 de março de 2014
Enredos
"bebo este líquido escorregadio como uma agonia, é carinhoso o meu amigo, mas nada há mais terrível que a sua carícia interrompida pela eficiência do mundo, ou que o sermos amados pelas regras do mundo, gosto da luz absoluta do equívoco onde consigo imaginar as faces mais vulgares, nada posso senão perder-me nas minhas histórias já que ninguém entra no meu quarto, o resto é colocar na boca de sombras o que gostaria de ouvir"
"Enredos"
Rui Nunes
Rui Nunes
«Contornava-me, cingia-me com um braço e procurava-me as coxas e as nádegas por baixo da roupa. Eu própria levantei o vestido, colando-me mais a ele, e imagina a surpresa que o tomou quando sentiu nos dedos a verdade do meu ventre!»
José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 122
José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 122
Etiquetas:
Balada da Praia dos Cães,
José Cardoso Pires
«E de súbito calou-se e pôs os olhos nos meus com uma dureza terrível. Suportei-os.
José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 122
Etiquetas:
Balada da Praia dos Cães,
José Cardoso Pires
«Elias é aquilo: um homem a ouvir-se de memória e quantas vezes com estranheza.»
José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 108
José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 108
Etiquetas:
Balada da Praia dos Cães,
José Cardoso Pires
LÍQUENES
I
Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 296
Algures,
no lugar
mais frio
da memória,
mas
nítido
como um centímetro
quadrado de neve
que pede
a própria luz
à algidez interior,
surge
a paisagem
de líquenes,
Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 296
ESPAÇO
I
«A noite
impôs ao céu
uma servidão
de inúmeras
estrelas»,
e a via láctea
aprende
como nasce
um cometa
dilacerante,
«que o meu corpo
se despedace
nas pontas
das estrelas»,
Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 301
“Tive sempre o sentimento de não estar conforme com a ordem estabelecida – Quer seja politicamente definida pela monarquia, pelas repúblicas ou pela ditadura, quer sirva economicamente de pasto ao “homo faber” e aos seus satélites, quer esteja teologicamente desmitizada pelas raposas da inteligência. Por isso precisei de nadar contra uma corrente cada vez mais forte (…) em plena “terra de ninguém” (…) muitas vezes com a pergunta de Molière, sete vezes repetida: “Que diabo estou eu a fazer nesta galera?” De ano para ano tenho suportado, também, o sofrimento que Hölderlin atribui a Hyperionte: o sentimento de ser estrangeiro na própria pátria.”
Ernst Jünger
PUZZLE
I
O sono
cresce como
se
uma anestesia
ténuescura
se
propagasse
do cérebro
pela rede nervosa
friamente
até aos dedos
e o tacto
dos homens
esquecesse
Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 287
O sono
cresce como
se
uma anestesia
ténuescura
se
propagasse
do cérebro
pela rede nervosa
friamente
até aos dedos
e o tacto
dos homens
esquecesse
Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 287
VI
ó tépida tequilla,
existe ainda
o amor
e o vulnerável cão
do espírito
que lavra
cada palavra
oculta
por pudor
e a ladra
inutilmente
dentro
da garganta
vazia
Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 272
existe ainda
o amor
e o vulnerável cão
do espírito
que lavra
cada palavra
oculta
por pudor
e a ladra
inutilmente
dentro
da garganta
vazia
Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 272
II
Imaginar
o som do orvalho,
a lenta contracção
das pétalas,
o peso da água
a tal distância,
registar
nessa memória
ao contrário
o ritmo da pedra
dissolvida
quando poisa
gota a gota
nas flores antecipadas.
Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 236
o som do orvalho,
a lenta contracção
das pétalas,
o peso da água
a tal distância,
registar
nessa memória
ao contrário
o ritmo da pedra
dissolvida
quando poisa
gota a gota
nas flores antecipadas.
Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 236
sexta-feira, 28 de março de 2014
Adeus anilha de ouro
«Curvou-se e levou as pontas dos dedos ao tornozelo marcado: Adeus anilha de ouro, deus voto de alcova, que regresso ao meu natural.»
José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 105
José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 105
Etiquetas:
Balada da Praia dos Cães,
José Cardoso Pires
«Ela desde que é pessoa sabe que este país é de espertos e todo em moral que até chateia. Precisava mas era de ser pasteurizado com merda de ponta a ponta, que era como a Mena dizia.»
José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 102/3
Etiquetas:
Balada da Praia dos Cães,
José Cardoso Pires
quinta-feira, 27 de março de 2014
«Uma data de frustados que até na cama têm medo da CENSURA, »
José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 102
Etiquetas:
Balada da Praia dos Cães,
José Cardoso Pires
sabujo
nome masculino
1. cão de montaria
2. figurado indivíduo servil, bajulador; capacho; lambe-botas
(Do latim medieval segusĭu- [cane-], «[cão] de Segúsia», cidade da Pérsia antiga, hoje Susa»)
leitosamente
um pouco larga
cheirando sempre
ao ar da cama
Vasco Graça Moura. Poemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 33
um pouco larga
cheirando sempre
ao ar da cama
Vasco Graça Moura. Poemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 33
Etiquetas:
excerto,
poesia,
poetas portugueses,
Vasco Graça Moura
dá-me a linguagem
dá-me a linguagem
do centro das pedras
aquela secura
a clivagem certa
dá-me os rebordos
cortantes das pedras
seu voo ofensivo
o fácil arremesso
dá-me a centelha
da pele das pedras
aquela dureza
com que são objectos
Vasco Graça Moura. Poemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 31
do centro das pedras
aquela secura
a clivagem certa
dá-me os rebordos
cortantes das pedras
seu voo ofensivo
o fácil arremesso
dá-me a centelha
da pele das pedras
aquela dureza
com que são objectos
Vasco Graça Moura. Poemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 31
Etiquetas:
poema,
poesia,
poetas portugueses,
Vasco Graça Moura
para que saibas e fujas se quiseres
Vasco Graça Moura. Poemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 29
em curvas de regresso ininterruptas
Vasco Graça Moura. Poemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 29
ou era o sono aos poucos
ou era o sono aos poucos descobrindo
densas camadas de um vão delírio aceso?
ou era o frio nos lençóis de linho
e a tua carne em sombra? o linho mesmo?
seria o rasto trémulo, o caminho
inviolado? os animais espessos
de frio em cada pedra? um gesso mais salino
pelos caules do linho reconduzindo os dedos?
mas como o gesso em pó se vai abrindo
(a tua orelha é um búzio escurecendo)
como um novelo tem apenas fios
e fio a fio o vai roendo o tempo
no esfrangalhar da luz te fragmento:
a tua orelha salinamente atlântica
como sal encrespado um búzio escurecendo
demorado nas pedras (as falanges)
o tempo recobrado é recolhido dentro
de endurecidas paredes cranianas
forrado de meninges é centro do seu centro
e só de prolongar-se te estilhaça
pois estes sons dirigem-se ao teu próprio tempo
à duração que os membros entrelaça
ao ondular do próprio desconcerto
com que, no amor, por vezes desatinam
poupadamente os campos do silêncio
no território de um ao outro tímpano
vai ser preciso distender o tempo
vai ser preciso tirar tudo a limpo
de um movimento a outro movimento.
nem a pressão crescente destes cinco
dedos da mão consente que se guardem
quantos cabelos o tempo ramifica
Vasco Graça Moura. Poemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 27/8
densas camadas de um vão delírio aceso?
ou era o frio nos lençóis de linho
e a tua carne em sombra? o linho mesmo?
seria o rasto trémulo, o caminho
inviolado? os animais espessos
de frio em cada pedra? um gesso mais salino
pelos caules do linho reconduzindo os dedos?
mas como o gesso em pó se vai abrindo
(a tua orelha é um búzio escurecendo)
como um novelo tem apenas fios
e fio a fio o vai roendo o tempo
no esfrangalhar da luz te fragmento:
a tua orelha salinamente atlântica
como sal encrespado um búzio escurecendo
demorado nas pedras (as falanges)
o tempo recobrado é recolhido dentro
de endurecidas paredes cranianas
forrado de meninges é centro do seu centro
e só de prolongar-se te estilhaça
pois estes sons dirigem-se ao teu próprio tempo
à duração que os membros entrelaça
ao ondular do próprio desconcerto
com que, no amor, por vezes desatinam
poupadamente os campos do silêncio
no território de um ao outro tímpano
vai ser preciso distender o tempo
vai ser preciso tirar tudo a limpo
de um movimento a outro movimento.
nem a pressão crescente destes cinco
dedos da mão consente que se guardem
quantos cabelos o tempo ramifica
Vasco Graça Moura. Poemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 27/8
quarta-feira, 26 de março de 2014
«Agora a cachorra aluada erra pela encosta das campas rasas com toda a matilha atrás. O coveiro olha de cá de cima, apoiado na enxada. Não se vêem senão caudas como vírgulas a acenar por entre campas e crucifixos de pedra, e há uma poalha de borboletas a tremeluzir ao sol.»
José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 99
José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 99
Etiquetas:
Balada da Praia dos Cães,
José Cardoso Pires
''pénis decrépito fardado de almirante.''
José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 99
Etiquetas:
Balada da Praia dos Cães,
imagens,
José Cardoso Pires
«Está nisto quando uma cadela ao cimo da ruazinha, seguida por um arraial de ladrantes. Uma rafeira minúscula, no cio evidentemente, e vem a trote desgraçado, sem destino. Atrás dela a canzoada escorraça-se, fervem dentadas, e mais para trás ainda vê-se um perdigueiro coxo à babugem. E a cadelita, troquetroque, segue sem vontade, transportando a natureza. Descansa um pouco, senta-se. O cortejo dos cães faz alto à volta dela, é um ofegar de línguas penduradas, à espera. Alguns aguardam nas passagens entre os jazigos, outros tocam-na com os focinhos pelo traseiro para a fazerem levantar e tentarem a sua sorte; à falta de melhor os perseguidores mais desiludidos montam no parceiro mais à mão e procuram governar-se por ali. O perdigueiro, esse observa à distância a coçar a barriga com a pata coxa, cheio de convicção.»
José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 98
Etiquetas:
Balada da Praia dos Cães,
José Cardoso Pires
«Por que razão é que os cemitérios hão-de ficar sempre em lugares altos, sobranceiros aos mortais? Elias atribui isso a uma regra antiga: medo da peste. Vapores e podres de defunto só o chão das igrejas sossega e purifica. Ou então os ventos. Os ventos lá do alto levam tudo.»
José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 97
José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 97
«(...) no horizonte vê-se o Tejo em mar de escama de prata.»
José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 97
Etiquetas:
Balada da Praia dos Cães,
José Cardoso Pires
Memento mori
«Aquele que além vêdes, irmão, porventura com uma caveira a seus pés (Elias não distingue bem), aquele devora o pão dos mortos à beira da cova que o há-de devorar um dia. Está apoiado à enxada, alimenta-se a meditar. À sombra dele e dos ciprestes dormem as almas sofredoras em sua escrita de mármore e suas assinaturas de cruzes, e é o campo eterno dos humanos. Senhor como cresceu. Cemitério, jardim de lápides. Cresce e multiplica-se a cada hora diante do coveiro afadigado que come a triste côdea da manhã, ele é o pastor que conta o seu rebanho de pedra estendido ao sol pela colina; a sua vista só se detém na linha do rio, lá longe.»
José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 96/7
Etiquetas:
Balada da Praia dos Cães,
José Cardoso Pires
terça-feira, 25 de março de 2014
«Otelo vem à janela, está uma manhã de sol, o que não quer dizer que a merda esteja em repouso. Pelo contrário, o sol leveda o podre e multiplica as larvas e quando o cidadão menos se precata já só sobrevive em bicos de pés e com trampa até ao traço do lábio. Trampa subversiva, que é a mais viscosa. E nada de ondas, nada de ondas, para que a fossa não transborde: ao menor gesto, ao menor resmungo, a merda política escorre para dentro do corpo do desgraçado e depois de o encher até às entranhas seca rapidamente e endurece transformando-o em estátua para curiosos da tortura.»
Etiquetas:
Balada da Praia dos Cães,
José Cardoso Pires
«Tira um cigarro, bate-o na cigarreira, os punhos da camisa aparecem muito dignos e engomados. Isqueiro radioso, dupont de estalinho e chama pronta. Sopra duas lentas e refasteladas fumaças olhando de viés para o dossier: esterqueira.»
José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 92
Etiquetas:
Balada da Praia dos Cães,
José Cardoso Pires
bei-jo
« Era correcto beijar a mãe, ou era incorrecto beijá-la? E que significava isso, beijar? Levanta-se a cara para cima, assim, para dizer boa noite, e a mãe inclinava o rosto. Era isso, beijar. A mãe punha os lábios na sua face; os seus lábios eram doces e humedeciam-lhe a face; e provocavam um ínfimo rumor: bei-jo. Por que razão as pessoas agiam assim com os seus rostos?»
James Joyce. Retrato do artista quando jovem. Tradução e Prefácio de Alfredo Margarido, 2ª Edição. Editora Difel, 2002 p. 32
Etiquetas:
james joyce,
retrato do artista quando jovem
«Mas não era ali que se sentia doente. Pensou que a doença estava no coração, se era possível ter uma doença em semelhante órgão. Fleming era gentil querendo saber o que se passava. Ficou com vontade de chorar.»
James Joyce. Retrato do artista quando jovem. Tradução e Prefácio de Alfredo Margarido, 2ª Edição. Editora Difel, 2002 p. 32
Etiquetas:
james joyce,
retrato do artista quando jovem
Dava prazer pensar em rosas azul-pálido e creme ou rosa.
James Joyce. Retrato do artista quando jovem. Tradução e Prefácio de Alfredo Margarido, 2ª Edição. Editora Difel, 2002 p. 31
«Lembro-me que senti um país muito escuro (…), achei tudo muito triste. O que achei mais é que as pessoas não estavam a perceber nada do que se estava a passar. Percebiam a liberdade, mas não percebiam o que é que era», recordou. Foi por isso que fez o documentário «Deus, Pátria, Autoridade», o seu primeiro filme, em 1975, e que «correspondia ao que as pessoas queriam ouvir, para perceber o que era isto, o que era a sociedade, como funcionou o fascismo».
Novas criaturas surgem da terra, com as narinas mordiscando o ar,
os esquilos abundam e repetem-se como perguntas,
os vermes continuam a investigar até as folhas repetirem quem são,
mas aqui temos apenas uma calma sem estações,
e sem história, que é tédio interrompido pela guerra.
A civilização é impaciência, um frenesi de térmitas
em redor dos formigueiros de Babel, antenas transmissoras
e mensagens; mas aqui o caranguejo-eremita acobarda-se quando encontra
uma sombra e pára até a do eremita.
Um medo escuro da minha sombra alongada, confesso,
para este caranguejo escrever “Europa” é ver aquela criança agachada
junto a um canal sujo em Rimbaud, chaminés, e borboletas, pontes antigas
e as manchas sombrias de resignação à volta dos olhos de carvão
de crianças que se parecem todas com Kafka. Treblinka e Auschwitz
descendo o rio com o fumo de barcaças industriais
e a prosa de uma página a que sacudo as cinzas,
os túmulos dos buracos de caranguejo, a ampulheta dos séculos
que passaram sobre esta baía como o pó soprado pelo harmatão
das nossas tribos, dispersando-se sobre as ilhas,
e a lua erguendo-se na sua procura, como a lanterna de Diógenes
sobre a esfinge do promontório, de equilíbrio e justiça.
- DEREK WALCOTT
os esquilos abundam e repetem-se como perguntas,
os vermes continuam a investigar até as folhas repetirem quem são,
mas aqui temos apenas uma calma sem estações,
e sem história, que é tédio interrompido pela guerra.
A civilização é impaciência, um frenesi de térmitas
em redor dos formigueiros de Babel, antenas transmissoras
e mensagens; mas aqui o caranguejo-eremita acobarda-se quando encontra
uma sombra e pára até a do eremita.
Um medo escuro da minha sombra alongada, confesso,
para este caranguejo escrever “Europa” é ver aquela criança agachada
junto a um canal sujo em Rimbaud, chaminés, e borboletas, pontes antigas
e as manchas sombrias de resignação à volta dos olhos de carvão
de crianças que se parecem todas com Kafka. Treblinka e Auschwitz
descendo o rio com o fumo de barcaças industriais
e a prosa de uma página a que sacudo as cinzas,
os túmulos dos buracos de caranguejo, a ampulheta dos séculos
que passaram sobre esta baía como o pó soprado pelo harmatão
das nossas tribos, dispersando-se sobre as ilhas,
e a lua erguendo-se na sua procura, como a lanterna de Diógenes
sobre a esfinge do promontório, de equilíbrio e justiça.
- DEREK WALCOTT
NADA MAIS - RIEN NE VA PLUS
Na alienação que é o pensamento
as coisas escorrem pelos dedos abaixo
a matéria, a «phisis»
tudo nos escorre pelos dedos abaixo
na alienação que é o pensamento
Dominam-se as coisas até onde o céu
pode ser aberto
e a geometria uma realidade nossa
para limitar o espaço
A cabeça em limites
onde um limite um ser
uma coisa
e tudo cá dentro cá dentro cá dentro
até onde um limite
ainda torna possível a existência
dum outro por abrir
Hoje o céu é novo é diferente
é dormir e acordar de novo para as coisas
o céu os pássaros
a fantasia dos pássaros
Hoje é o céu novo o céu novo
hoje é a Grécia de ontem
foi ontem a Grécia
mas a Grécia ainda é hoje
é hoje porque é dormir e acordar de novo para as coisas
achá-las vê-las
cumprimentar as coisas com bons dias ao Sol
bom dia meu irmão
ressuscitar um morto
dizer aqui S. Francisco de Assis
aqui a cabeça cheia de vento
a graça as flores
o vento na cabeça
a cabeça a janela
aberta aberta
de S. Francisco de Assis
Hoje é dizer fui ontem mas ainda sou amanhã
amanhã amanhã
amanhã até onde o céu for aberto
e até onde a Estrela Polar distante distante
Hoje é dormir cantar
dormir com uma canção na cabeça
dizer boa noite meu amor meus astros minha esfera
amanhã outra vez amanhã de novo te conheço
ressuscito para as coisas
e assim o sono a existência o momento que passa
e nada mais
porque nada mais meu bom Sartre na verdade
nada mais que o momento
conta senão para nós.
- António Gancho, O AR DA MANHÃ,
Lisboa: Assírio & Alvim, 1995
Na alienação que é o pensamento
as coisas escorrem pelos dedos abaixo
a matéria, a «phisis»
tudo nos escorre pelos dedos abaixo
na alienação que é o pensamento
Dominam-se as coisas até onde o céu
pode ser aberto
e a geometria uma realidade nossa
para limitar o espaço
A cabeça em limites
onde um limite um ser
uma coisa
e tudo cá dentro cá dentro cá dentro
até onde um limite
ainda torna possível a existência
dum outro por abrir
Hoje o céu é novo é diferente
é dormir e acordar de novo para as coisas
o céu os pássaros
a fantasia dos pássaros
Hoje é o céu novo o céu novo
hoje é a Grécia de ontem
foi ontem a Grécia
mas a Grécia ainda é hoje
é hoje porque é dormir e acordar de novo para as coisas
achá-las vê-las
cumprimentar as coisas com bons dias ao Sol
bom dia meu irmão
ressuscitar um morto
dizer aqui S. Francisco de Assis
aqui a cabeça cheia de vento
a graça as flores
o vento na cabeça
a cabeça a janela
aberta aberta
de S. Francisco de Assis
Hoje é dizer fui ontem mas ainda sou amanhã
amanhã amanhã
amanhã até onde o céu for aberto
e até onde a Estrela Polar distante distante
Hoje é dormir cantar
dormir com uma canção na cabeça
dizer boa noite meu amor meus astros minha esfera
amanhã outra vez amanhã de novo te conheço
ressuscito para as coisas
e assim o sono a existência o momento que passa
e nada mais
porque nada mais meu bom Sartre na verdade
nada mais que o momento
conta senão para nós.
- António Gancho, O AR DA MANHÃ,
Lisboa: Assírio & Alvim, 1995
HOSPITAL CANTONAL DE PERREUX
Aqueles jardins tinham o gosto da anestesia
no céu da boca, havia longas alamedas
poluídas pelo segredo dos pavilhões proibidos.
Os internados dormiam toda a tarde sem ruído,
às seis vinham a tropeçar pelo refeitório,
cumprimentavam no seu francês turvado pelos químicos:
'Ça va, m'sieur?' Eu andava à procura de um acelerador
para a minha viagem, interrogava constantemente
os meus oráculos, o livro aberto sobre as sombras
no terraço.
Eram mesmo para mim as mensagens que encontrei
nos muros de algumas cidades, ou foram só ilusões
engendradas pelo acaso? Eu não sabia responder
naquela altura, tal como nunca soube. Às vezes
o silêncio de Perreux era confortável
para os meus sentidos, trazia-me depressa
o sono. Na manhã seguinte, eu voltaria a partir.
- Rui Pires Cabral, A SUPER-REALIDADE,
2.ª ed., Lisboa: Língua Morta, 2011
Aqueles jardins tinham o gosto da anestesia
no céu da boca, havia longas alamedas
poluídas pelo segredo dos pavilhões proibidos.
Os internados dormiam toda a tarde sem ruído,
às seis vinham a tropeçar pelo refeitório,
cumprimentavam no seu francês turvado pelos químicos:
'Ça va, m'sieur?' Eu andava à procura de um acelerador
para a minha viagem, interrogava constantemente
os meus oráculos, o livro aberto sobre as sombras
no terraço.
Eram mesmo para mim as mensagens que encontrei
nos muros de algumas cidades, ou foram só ilusões
engendradas pelo acaso? Eu não sabia responder
naquela altura, tal como nunca soube. Às vezes
o silêncio de Perreux era confortável
para os meus sentidos, trazia-me depressa
o sono. Na manhã seguinte, eu voltaria a partir.
- Rui Pires Cabral, A SUPER-REALIDADE,
2.ª ed., Lisboa: Língua Morta, 2011
segunda-feira, 24 de março de 2014
Para que serve a poesia?
Uma resposta.
"EM VEZ DE PREFÁCIO
Nos terríveis anos de Iezhov passei dezassete meses nas filas de prisão em Leninegrado. Certa vez alguém 'identificou-me'. Então uma mulher de olhos azuis que estava atrás de mim, que de certeza nunca ouvira o meu nome, saiu desse torpor próprio de todos nós naquela altura e perguntou-me ao ouvido (aí todos falavam num murmúrio):
- É capaz de descrever isto?
E eu respondi:
- Sou.
Então algo parecido com um sorriso perpassou por aquilo que outrora fora o seu rosto.
1 de Abril de 1957
Leninegrado"
_ ANNA AKHMATOVA
Uma resposta.
"EM VEZ DE PREFÁCIO
Nos terríveis anos de Iezhov passei dezassete meses nas filas de prisão em Leninegrado. Certa vez alguém 'identificou-me'. Então uma mulher de olhos azuis que estava atrás de mim, que de certeza nunca ouvira o meu nome, saiu desse torpor próprio de todos nós naquela altura e perguntou-me ao ouvido (aí todos falavam num murmúrio):
- É capaz de descrever isto?
E eu respondi:
- Sou.
Então algo parecido com um sorriso perpassou por aquilo que outrora fora o seu rosto.
1 de Abril de 1957
Leninegrado"
_ ANNA AKHMATOVA
Gosto da brisa gelada
e do vapor que fala no Inverno:
Eu sou eu. A realidade é a realidade.
Um rapazinho, vermelho como um tomate,
dono e senhor do seu trenó,
lança-se encosta abaixo.
E eu, em desacordo com o mundo, com a liberdade,
aceito o contágio do trenó,
dos seus estriados braços de prata.
O século poderia ser mais leve que um esquilo,
mais leve que um esquilo no doce arroio.
Metade do céu é usar botas de inverno.
- OSSIP MANDELSTAM
in 'Um ateu no campo', versões de João Rodrigues,
Lisboa, edições pirata, 2000
e do vapor que fala no Inverno:
Eu sou eu. A realidade é a realidade.
Um rapazinho, vermelho como um tomate,
dono e senhor do seu trenó,
lança-se encosta abaixo.
E eu, em desacordo com o mundo, com a liberdade,
aceito o contágio do trenó,
dos seus estriados braços de prata.
O século poderia ser mais leve que um esquilo,
mais leve que um esquilo no doce arroio.
Metade do céu é usar botas de inverno.
- OSSIP MANDELSTAM
in 'Um ateu no campo', versões de João Rodrigues,
Lisboa, edições pirata, 2000
O GATO
O meu não come ratos; não gosta disso. Só apanha um de vez em quando por brincadeira.
Quando já brincou o suficiente, poupa-lhe a vida e, inocentemente, vai sonhar para outro lado, sentado sobre o caracol da cauda, a cabeça insondável como um punho fechado.
Mas, por causa das suas garras, o rato morreu.
- JULES RENARD /Trad. Inês Dias
O meu não come ratos; não gosta disso. Só apanha um de vez em quando por brincadeira.
Quando já brincou o suficiente, poupa-lhe a vida e, inocentemente, vai sonhar para outro lado, sentado sobre o caracol da cauda, a cabeça insondável como um punho fechado.
Mas, por causa das suas garras, o rato morreu.
- JULES RENARD /Trad. Inês Dias
[...]
Se o sul é para trás e o norte é para o lado,
é para sempre a morte.
Agarrado ao volante e pulmões às costas
como um pneu furado,
o poeta pedala o coração transfigurado.
Na memória mais antiga a direcção da morte
é a mesma do amor. E o poeta,
afinal mais mortal do que os outros animais,
dá à pata nos pedais para um verão interior.
- HERBERTO HELDER
Se o sul é para trás e o norte é para o lado,
é para sempre a morte.
Agarrado ao volante e pulmões às costas
como um pneu furado,
o poeta pedala o coração transfigurado.
Na memória mais antiga a direcção da morte
é a mesma do amor. E o poeta,
afinal mais mortal do que os outros animais,
dá à pata nos pedais para um verão interior.
- HERBERTO HELDER
Subscrever:
Mensagens (Atom)