segunda-feira, 24 de março de 2014

II

    «Os camponeses, esses, destinados às sepulturas rasas, aos estratos de mortos sobre mortos, servem-se do pinho, dos adobes (materiais perecíveis), erguem casas na lama, manuseiam utensílios tão rudimentares como a charrua de madeira. Passam sobre a areia e as pegadas somem-se depressa, «mas carregam aos ombros a pedra do meu lar (pensa a criança obscuramente) e a minha lápide futura». 



Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 212

«(...): na madrugada, a aprendizagem da criança começa pela dor, que se desdobra sem descanso a partir de si mesma.»
Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 211

ESTÁTUA

a Jane L.


   Nos umbrais desta página recebo o poema que chegou de longe, duma memória escura, voluntária, atravessando lama, sono, olvido. Desvendo-lhe as feições, sílaba a sílaba. Quando grito por fim «eis uma cara nova», penso logo «afinal, eras tu». Reconheci apenas outro rosto esquecido na aridez do mundo, recolhi-o da sombra donde veio, e aqui lho deixo, adoradora de estátuas muito antigas, petrificado no papel.»

Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 209
«Deixe-o falar. Incline a cabeça  para o lado, altere o ângulo de visão.»
Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 205

LOOK BACK IN ANGER

      «Podia ser a névoa habitual da noite, os charcos cintilantes, o luar trazido por um golpe de vento às trincheiras da Flandres, mas não era. Quando acordou mais tarde num hospital da retaguarda, ensinaram-no a respirar de novo. Lentas infiltrações de oxigénio num granito poroso, durante anos e anos, até à imobilidade pulmonar das estátuas.
    Hoje, um dos seus filhos sobe ao terraço mais obscuro da cidade em que vive e olha o passado com rancor. O sangue bate, gota a gota, na pedra hereditária dos brônquios e ele sabe que é o mar contra os rochedos, a pulsação difícil das algas ou dos soldados mortos nessa noite da Flandres.
   As imagens latentes, penso eu, porque sou eu o homem na armadilha do terraço difuso, entrego-as às palavras como se  entrega um filme aos sais de prata. Quer dizer: numa pura suspensão de cristais, revelo a minha vida.»



Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 203

domingo, 23 de março de 2014


«Elias pega na corrente, põe-se a passá-la nos dedos e à volta do pulso. É uma cadeia delicada em forma de pulseira mas numa bela perna de mulher vale como um compromisso público de pacto de cama.»


José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 87
«Disse isto e deitou-lhe um olhar certeiro, a ver o efeito. E depois, como quem não quer a coisa: Neste momento veio-me uma à ideia que não deixava de ter a sua graça.
   O advogado: Sim?
   Elias Chefe já com a mão na porta: A amante do major, senhor doutor. Não era nada do outro mundo se ela lhe aparecesse àquela porta um dia destes.
  O advogado em despedida de mão mole: Meu amigo, surpresas dessas nem ao diabo se desejam.»


José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 85
«Mena. A porta fechada e ela cá dentro a escorrer chuva. Tremulava na água, muito hirta, havia um pequeno lago aos seus pés. E no entanto entrava sol pela janela e a cabeleira platinada irradiava luz gelada.»

José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 83

A mim tanto se me dá.

falcatruas

« - Não preciso de esmolas! - disse o vadio, com uma dignidade que o emocionou a si próprio.»

Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 46
«Entre as pessoas letradas da vila contava-se que D.Quitéria, numa das recepções do paço episcopal, discutira em voz alta  com outra senhora o emprego do há e do hão; D. Quitéria, por fim, pretendera esmagar a rival com exemplos concretos:
-Então a senhora diz «há coisas» ou «hão coisas»?
-«Há coisas», evidentemente.
-Pois diz mal. «Coisas» é plural.
 Contava-se que o bispo, ao ouvir o remate da conversa, concluíra para um abade que o acompanhava:
 -É estúpida, mas coerente.
E era, de facto.»


Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 45

Fernando Namora, 1960


Com a face de uma rigidez sonâmbula



Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 41

pergunta de algibeira

pergunta feita a uma pessoa com o objectivo de a confundir ou embaraçar

insulso

adjectivo

1. sem sal; insosso
2. figurado que não tem graça; desenxabido

(Do latim insulsu-, «insípido»)


«Cada um possuía uma intimidade de que ele era afastado. A sua alma, vazia de alegrias e sofrimentos, era afinal corroída pelo isolamento.»


Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 42

«Dias lentos! Dias que pediam repouso e eternidade, sono e independência, tudo menos compromissos.»


Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 33

«A tontinha da Alice estava ansiosa e fascinada. E, na verdade, seria engraçado domesticar um rato; mas que anos de paciência uma tarefa dessas exigia!»

Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 33

desacreditado

Dangerous Muse

marouva

nome feminino

BOTÂNICA espécie de cereja miúda e desenxabida

«Todo o homem verdadeiro traz da juventude uma direcção. Depois, só lhe resta ter vergonha e manter-se-lhe fiel; ou, então, apodrecer.»

Fernando Namora in ''O Homem Disfarçado''


«Bem: à falta de um bom espectáculo, com o gato, o vadio pôs essa coisinha arrepiada na palma da mão e logo sentiu o quanto era excitante ter uma vida fechada num capricho, mesmo tratando-se apenas de um frágil ratinho, tão miserável que bastaria um gesto para o sufocar. O coração do Barbaças, porém, não era o de um carnívoro: em vez de violências, afagou o ingénuo prisioneiro, sob a vigilância de Alice, vigilância que, de tão ardente, era aflitiva, poisando-o depois cuidadosamente na clareira de sol, enquanto procurava à volta, e um pouco à toa, qualquer coisa que pudesse fazer um ratinho feliz: migalhas, restos de bolota, talvez caracóis. Qual seria o manjar mais do apetite de um rato daquela idade? Trigo, alface? Que baralhada! A convivência do Loas fazia-lhe a cabeça parva.»



Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 31/2

Alice



«Alice estava deitada sobre a grama, o rosto ávido apoiando-se num cotovelo, num silêncio fascinado, devorando o rato com o seu pasmo. Alice e um ratinho parvo, à espera que um bichano lhe viesse roer o pêlo sedoso e os tenros ossos!»




Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 31

The Open Door, 1843


chousal


nome masculino

redil que os pastores armam no campo, no Verão, para o gado pernoitar

«(...) um sujeito relaxado como ele, que ainda não se civilizara o bastante para se mostrar humilde»


Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 29
«Barbaças sentiu fieiras de agulhas espetarem-lhe as entranhas. Estava angustiado. Aquele Loas falava de defuntos e de diabos como quem se refere a companheiros de taberna!»


Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 28

O Cesariny, à observação de uma senhora «O senhor fuma muito», respondeu «Eu fumo sempre».

sábado, 22 de março de 2014


sentia-me pouco à vontade, para não dizer infeliz


«É impressionante como o tempo nos faz compreender certas coisas, só agora é que percebo como isso já na altura me magoava, ele gostar de mim por essa necessidade de proteger. Verdade. Mesmo miúda tinha um pressentimento qualquer, sentia-me pouco à vontade, para não dizer infeliz. Enfim, tudo acabou como tinha que acabar, mas foram oito meses da minha vida que não é possível esquecer.»


José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 77
«Mena passa a mão pela testa e pára a olhar por entre os dedos uma mancha de bolor que tinha descoberto nessa manhã a um canto do tecto. Tinha o feitio duma osga, o pardo e o repelente duma osga imóvel no cimento, com aqueles dedos abertos, minuciosos e arredondados em pontas de ventosa. Suspira. Depois conta: Ele estava tremendamente bêbado nessa noite.»


José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 71


«Três homens à roda duma mesa e uma mulher que fumava, que fuma, com aquele aspirar arrastado que tanto incomoda o chefe de brigada (dentro em pouco a cela vai entrar em nebulosa, o prato da folha que faz de cinzeiro está a transbordar.) Aquilo não era uma casa, era uma insónia, recorda Mena. Fumávamos como cavalos.»




José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 68-9

   «Durante semanas e semanas Mena tinha-se queimado por dentro com cigarros, tinha-se embrutecido com valium num batalhar contra as insónias da Casa da Vereda. Temporal, ruídos de sobressalto lá fora, e ela de olhos acesos no escuro, deitada ao lado do major e a fixar o vulto dum gato de barro que estava em cima da cómoda com uma cabeleira de mulher. O gato com a peruca enfiada na cabeça, a peruca das viagens clandestinas de Mena, reflexos platinados, cinza e mescla. Até de noite o adivinhava. Mas estranhamente o sono voltou-lhe na própria noite do crime. Em cima dos tiros e do sangue o sono abateu-se sobre ela de pancada; e foi espesso e brutal, e durou uma noite, e só uma, porque dali em diante era ela que não queria adormecer. Tinha medo de sonhar com o morto.»


José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 63

sexta-feira, 21 de março de 2014


«A presa sentada em solidão, sempre mais agarrada ao seu espaço íntimo, e ele a aproximar-se atrás de cada pergunta. Como que por acaso, como que por acaso. Pode fazer-se isso com pequenos movimentos de quem se inclina para ouvir melhor e avança um pouco a cadeira, ou no acto de se apanhar qualquer objecto que se deixou cair, ou indo à janela e ganhando mais um palmo ao sentar-se. Mil pretextos. Perguntas, sempre perguntas; às duas por três Elias já estava colado à prisioneira, cobria-a com o seu bafo de polícia. Invasão do espaço individual.»

José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 61/2

depuração narrativa


casse-tête

''o eterno cigarro nos dedos''

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