domingo, 21 de agosto de 2016

''Tem 67 anos. Há cerca de oito teve uma doença grave, julgou que iria morrer, apostou em viver até ao último fôlego e ganhou a aposta. Viver é, sempre foi, um modo de estar. Filmar é outra coisa: “As coisas da vida são de outro mundo, se as fixarmos perdem-se. A matéria dos filmes vem de outro lugar.” Esse outro lugar pode surgir da palavra, como a palavra de Fernando Pessoa em “Livro do Desassossego”, ou na beleza pura de “Os Maias”, de Eça de Queirós. Em 40 anos realizou 26 filmes, entre documentários, curtas e longas-metragens.
Encontrámos João Botelho, o cineasta malabarista que se tornou personagem desta cidade, em trânsito entre Lisboa e o mundo para apresentar em vários festivais o seu último filme “O Cinema, Manoel de Oliveira e Eu”, espécie de homenagem ao homem com quem aprendeu a fazer cinema, e que ainda não se estreou por cá. Entretanto, prepara-se para avançar para “Peregrinação”, que será rodado no Oriente, nas mesmas paragens por onde andou Fernão Mendes Pinto. Durante um bom par de horas tentámos perceber de que matéria é feito este ser de corpo frágil e energia eletrizante. O cinema aconteceu-lhe por um acaso, ou melhor, pelo efeito catalisador de uma “catástrofe, no sentido em que é um acontecimento muito forte, como uma revolução, pode mudar uma vida”, dirá ele. No cinema assume-se radical. “A história não conta, é tudo aldrabice.” Mas quando não está está a filmar, são os pequenos fragmentos das histórias que descobre nas pessoas e em bocados de cidade que se revelam na efémera intensidade dos dias e das noites que o espantam e o fazem mover. “A vida é uma coisa tão maravilhosa que não se pode falar sobre ela.” E se tivesse de a contar em filme? Propomos. Botelho acede.
Descreva-nos a sua infância como se a estivéssemos a ver no cinema.
Nasci no frio. Lamego, 1949. Vivi lá até aos dez anos e depois fui para Vila Real. O frio era terrível, contaminava tudo. Pés com frieiras e botas difíceis de calçar. Os meus colegas iam para a escola descalços com os pés enterrados na neve. Até ao quinto ano do liceu não se podia usar calças compridas, andávamos de calções e joelhos à mostra para enrijecer. Lembro-me de ter acontecido a revolta na Hungria e de ouvir histórias que nos aterrorizavam: “Os comunistas raptam crianças para fazer sabão.” Naquele tempo a ideia da pobreza era muito forte.
Em sua casa também?
Em minha casa não havia pobreza. A minha família vinha de Vila Real, de Trás-os-Montes. Os meus pais eram professores primários e foram dar aulas para Lamego. Em Lamego, o meu pai era um homem muito respeitado. Educava os filhos dos ricos e frequentava o clube da terra que era bastante chique e elitista. Muito menino, eu ia para o clube jogar pingue-pongue e, nas tardes de domingo, havia uns bailes completamente idiotas, com os rapazes sentados de um lado e as raparigas com as mães do outro. Tínhamos de atravessar a sala para convidar a menina para dançar e mandávamos o gordo à frente para ser o primeiro a levar tampa... Mas quando penso em Lamego a memória mais forte que se atravessa é o frio e o silêncio. Se tivesse de filmar a infância era isto.
A imagem do frio já é forte. Porquê o silêncio?
Coisas terríveis aconteceram. A primeira, foi a morte da minha mãe quando eu tinha 6 anos. Depois a do meu irmão, com 20 anos, num acidente de aviação. Ele era o mais velho e eu o mais novo. Tinha 9 anos quando ele morreu. As minhas irmãs tomaram conta de mim e uma das imagem mais antigas que guardo é de uma delas a cantar e a embalar-me. Mas também há boas memórias. As vindimas, por exemplo, em casa de uns tios numa quinta perto da Régua onde eu ia passar o verão. Eram férias fantásticas. Crianças a dormir em camas muito largas, umas para os pés outras para a cabeça. De manhã levantava-me e não precisava de beber leite. Serviam-me um caldo de cebola para depois poder comer as uvas. As uvas eram peganhentas e colavam-se aos dedos. Ainda hoje, quando vou ao coração do Douro, o que me agarra são os cheiros. Cebolas cruas com sal, o cheiro das uvas e das giestas.
Gostava de voltar à imagem do silêncio.
A morte da mãe ficou marcada pela ausência. Qualquer coisa sobre a qual nunca se falava porque naquele tempo não se podia falar da dor. Portanto, instalou-se um silêncio que tomava conta de tudo. Refeições inteiras onde ninguém dizia uma única palavra. Beijávamos a mão ao pai, e dávamos também um beijo pela mãe. Mais tarde, pelo irmão.
O silêncio era a regra do seu pai?
Sim. Tornou-se muito duro. Tinha quarenta e poucos anos quando lhe morreu a mulher com um cancro. Foi uma coisa muita rápida e violenta. Nunca mais se casou. A minha avó veio tomar conta de nós e chamávamos-lhe “mãezinha”. À minha volta só havia mulheres — a minha avó, as três irmãs — e o trauma dessa ausência da mãe acabou por ser colmatado por um certo conforto feminino. Eu era o bebé da casa e elas protegiam-me. O primeiro livro que li foi “Os Desastres de Sofia”, da Condessa de Ségur, que era considerado literatura para raparigas.
E o irmão?
Fazíamos 11 anos de diferença. Estava no Exército, na Força Aérea, e só aparecia em casa de vez em quando. Era a pessoa que vinha. Namorava com uma rapariga de Lamego e anunciava a sua vinda com acrobacias de jato sobre o rio Balsemão: “Olha o Raul Zé!” Quando chegava era uma festa. Mas nunca ficava mais de quatro dias, por isso já era uma figura ausente depois da morte da mãe. Mas, claro, para mim era um herói. Um dia recebemos uma comunicação a anunciar que tinha havido um acidente. Muitos anos mais tarde, descobrimos que o acidente tinha sido num exercício de fogo real em que um obus atingiu o jato. Na altura o caso foi abafado.
Quando foi fazer filmes inscreveu nalgum deles essas memórias?
Nunca misturei, não gosto do cinema de resolução. Gosto do cinema que inquiete e perturbe, mas que não resolva nem dê consolo. O meu único filme que pode ser um bocadinho mais biográfico é o “Adeus Português” (1985). Foi um dos poucos em que escrevi o guião. O pai do filme, também vem da província e chama-se Raul como o meu pai. Nesse filme as pessoas praticamente não falam e o silêncio que o atravessa é o mesmo que havia em minha casa, embora ali o luto seja o da Guerra Colonial.
Como é que esses acontecimentos o marcaram? 
Coisas simples. Adapto-me bem às circunstâncias, rapidamente tive consciência de que queria estar sozinho. Mal acabei o liceu, ainda não tinha 17 anos, quis afastar-me da família. Naquela época já vivia em Vila Real, onde passei a adolescência, e esse tempo já foi muito diferente do tempo de Lamego. Eu era muito bom em desenho e matemática e deveria ter ido para arquitetura. Mas teria de ir para o Porto, onde tinha família. Por isso escolhi estudar Engenharia em Coimbra onde não conhecia ninguém. Como recebi uma bolsa da Gulbenkian a minha decisão não foi questionada. Cheguei a Coimbra católico, todas as sextas-feiras ia comungar, e ainda fui assediado por uns grupos de extrema-direita, onde estavam o Lucas Pires, o Júdice, o Alarcão, que me convidaram para umas festas na Quinta das Lágrimas. Depois há uma série de coisas que se transformam por pressão dos acontecimentos.
Em que ano estamos?
1966. Depois apanhei a crise de 69 e fui responsável por uma série de grafitos e cartazes da faculdade. Aí comecei a minha atividade como gráfico, que me acompanhou parte da vida. Há fotografias dessa época, eu com 18 anos e de boina guevarista, a pintar nas escadas da universidade.
Geografia. Em Lisboa, a quinta cidade que habita, o centro foi sempre o Príncipe Real. A casa e o escritório, ao ar livre na praça, ponto de encontro de cineastas. Entre eles João César Monteiro, o companheiro das eternas deambulações
Geografia. Em Lisboa, a quinta cidade que habita, o centro foi sempre o Príncipe Real. A casa e o escritório, ao ar livre na praça, ponto de encontro de cineastas. Entre eles João César Monteiro, o companheiro das eternas deambulações
LUÍS BARRA
Acabou o curso?
Não. A universidade era um pesadelo, deixei de ir às aulas. No terceiro ano, comecei a partilhar casa com outros estudantes. Rapazes e raparigas, o que não era nada comum. Uma das boas coisas boas do tempo de Coimbra, e que mudou tudo, foi ter crescido num ambiente de aprendizagem coletiva. Gosto muito das coisas coletivas. Eu era um rapaz de província, cheguei e fui aprendendo... Havia um tipo com uns óculos muito grossos que recebeu um disco do Miles Davis e nós íamos todos lá para casa ouvi-lo em grupo. Depois o Zé Manuel Pinto dos Santos, semissurrealista e doido por literatura, obrigava-nos a ler em voz alta o “Quarteto de Alexandria”, do Lawrence Durrell. No Círculo de Artes Plásticas, onde um Barreto, o irmão do António, dava umas aulas, aprendi a desenhar. Mas o mais importante foi o Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra (CITAC), onde comecei por ser um ator vagamente estúpido e acabei na direção.
Que ambições tinha?
Nenhumas. Era cinéfilo. No primeiro ano havia aquela coisa sinistra da praxe. Se a partir das seis da tarde um caloiro fosse apanhado fora de casa podia ser espancado. Como sou galdério desde que nasci, todas as noites me enfiava no cinema para não estar na rua. Outra coisa importante que fiz logo desde muito cedo foi ter começado a viajar à boleia pela Europa — Dinamarca, Suécia, Inglaterra... Ia sozinho, trabalhava em restaurantes ou em fábricas e depois gastava o dinheiro na cinemateca de Paris. Quando o dinheiro acabava, voltava para Portugal na camioneta dos imigrantes. A viagem demorava 36 horas, vinha sem um tostão no bolso mas os imigrantes eram generosos e davam-me de comer durante a viagem.
A cinemateca de Paris era já o desejo de aprender cinema?
Não, era vício, como o vício dos cigarros. Só queria ver, ver, ver. Chegava a ver seis filmes por dia sozinho na sala. Vi “A Paixão de Joana D’Arc”, do Dreyer, pela primeira vez, a segurar os olhos para não adormecer. O desejo de fazer filmes acontece muito mais tarde. Entretanto, fui para o Porto, para acabar o curso porque se acabou a bolsa da Gulbenkian e aí comecei a fazer pequenos trabalhos gráficos para sobreviver.
Paramos no Porto? 
Podemos parar. O Porto representa o encontro com pessoas maravilhosas, como o Manuel António Pina, que passou a ser uma espécie de irmão mais velho. A capa do primeiro livro do Pina já é minha. O tempo do Porto marca-me muito culturalmente, mas a cidade era muito fechada e começou a tornar-se insuportável. E de repente acontece o 25 de Abril. Nessa época estava a dar aulas de desenho à noite numa escola de Matosinhos. Apanhei imediatamente um comboio e no 1º de Maio já estava em Lisboa. Aí, sim, fui para a escola de cinema, o que não estava no programa. Mas as catástrofes mudam a vida.
Catástrofes?
Sim, no sentido em que um acontecimento muito forte e que não está previsto pode mudar-nos radicalmente. Decidi: “Não quero mais dar aulas nem ser engenheiro. Quero fazer cinema.” Comecei com 26 anos, os meus colegas tinham 20. Cheguei à escola com um amigo, o Fernando Cabral Martins, entregámos um texto e uma fotografia e o professor escreveu: “Percebem a coisa cinematográfica!” e entrámos. [Gargalhada]
Como é que se aprendia cinema?
O ensino era completamente tradicional e eu não sabia nada. Durante muito tempo andei a passar “O Couraçado Potemkin”, nas fábricas e nos quartéis, onde os soldados de cabelos compridos cantavam a Internacional. Um crítico dos “Cahiers du Cinéma” veio a Lisboa dar um seminário e levou-nos para a mesa de montagem, mostrando-nos plano a plano como se fazia. Nessa mesa de montagem comecei a aprender cinema. Depois pegávamos numas máquinas e nas películas que sobravam e íamos fazer uns filmes. As primeiras experiências foram umas encomendas para a televisão sobre educação permanente e fizemos uma coisa a preto e branco completamente diferente. Para mim, naquela altura só havia dois cineastas no mundo, Straub e Godard, e dizia coisas como: “Abaixo Visconti, viva Rossellini.” Era muito radical.
Ser radical não era o ar daquele tempo?
Depois da II Guerra Mundial, o Rossellini reinventou o cinema. Daí saiu a Nouvelle Vague, o Cinema Novo Alemão e o Novo Cinema Português. Pequenas máquinas, pequenas equipas a filmar milagres. Nada tinha que ver com a indústria americana, é isto que apanho. Como não havia meios, tínhamos de defender as nossas escolhas, havia essa prática dialética. Já nessa altura tinha identificado a minha família e tinha uma ideia que queria fazer um cinema austero, onde o artifício é sempre mostrado.
Não há uma diferença grande entre ver e fazer?
Enorme. Mas enquanto vemos também vamos aprendendo. No tempo da escola consumíamos cinema 24 horas por dia. Logo de manhã começávamos na Castelo Lopes. Durante a tarde íamos para a Cinemateca e ainda víamos um filme na mesa de montagem e à noite íamos ao cinema normal. Portanto, quando comecei a realizar conhecia bem a História do Cinema. É importante.
Filmar faz medo?
Tantas vezes! Mas o que faz mais medo é não chegar à resolução do tempo e do espaço. “E agora? Por onde vou?” Não se pode, equipas inteiras dependem de nós.
Neste filme, “O Cinema, Manoel de Oliveira e Eu”, descreve a primeira vez que entrou nos estúdios da Tobis e de como sentiu a magia do cinema.
O Manoel de Oliveira estava a filmar o “Amor de Perdição” e eu dirigia a revista “Regra do Jogo”. Resolvi dedicar-lhe um número. Foi logo depois do 25 de Abril, numa época em que o ambiente nas equipas de filmagens era muito duro. Andavam há quase três anos à roda do filme, já não estavam para aturar o Oliveira e diziam-lhe: “Filma tu, ó velho!” Quando entrei na Tobis vi uma figura debruçada, calmamente a desenhar no chão, com a equipa toda de braços cruzados, parada, à volta dele. Estava a desenhar o Teorema de Talles para medir uma cena. Na altura, tudo já era feito com tecnologia e ali estava um artesão, um homem que vinha do cinema mudo e ainda usava a técnica para fazer a montagem no eixo, que permite passar de um plano largo para um plano aproximado, só com uma câmara. É a técnica do raccord perfeito. Eu era de matemática e de geometria descritiva e achei-o espantoso. Foi com ele que aprendi cinema.
Como foi?
O Oliveira dizia: “Eu é que decido a luz, aqui não há Deus.” Tinha razão. O estúdio é o lugar do controlo absoluto. Nessa época, ele vivia em Lisboa, no Hotel D. Carlos, e eu todas as noites aparecia lá. Encontrava-o em frente à televisão — “A ver novelas brasileiras, Manel?”; “É o que me descansa o cérebro, João” — bebia um whisky e saíamos. Ele tinha de estar no estúdio às sete da manhã, mas andávamos avenida abaixo, avenida acima até às duas da manhã sem parar de conversar. Andava mais rápido do que eu, que tinha vinte e poucos anos, e sabia de cinema que nunca mais acabava. Era um homem conservador, católico, mas quando filmava tentava chegar à matéria funda das coisas. Ensinou-me uma coisa fantástica: “Para cada situação, uma posição. Só existe um ponto de vista.” Depois de ter percebido o que queria dizer, percebi o que era o cinema.
E o que é?
Conheço quatro versões da “Madame Bovary” — do Minnelli, do Renoir, do Buñuel, e a do senhor Oliveira, a bovarinha do Douro do Vale Abraão — são todas diferentes e são todas geniais. Quer isto dizer que a história não interessa para nada. O que interessa é como se filma. Estou a filmar numa sala onde estão quinhentas pessoas e escolho só filmar uma. Para cada momento há 20 ou 30 variáveis, quem filma tem de decidir. Era isto que ele queria dizer quando falava do ponto de vista e do modo de filmar.
A narrativa não é importante?
Não. Reajo muito ao cinema que se tenta identificar com a vida e toda a gente fica muito contente porque acha que o que estão a ver no ecrã é igual à vida real. Desde logo percebi que era tudo aldrabice. Cinema são luzes e sombras e lá no meio uns seres aflitos. Começou por ser uma invenção tecnológica, um espetáculo de feira, e acabou nos centros comerciais. Não há remédio, é um circo. Portanto, a ideia é tentar chegar às emoções dando a noção da aldrabice.
Não percebo o que quer dizer.
Por exemplo, na ópera todo o artifício é mostrado. Uma cantora de 100 quilos e 60 anos faz papel de rapariguinha. Se cantar bem, emociona-nos profundamente, porque a verdade na ópera é a música. Também posso chorar ao olhar para as riscas de um quadro de Rothko. E o que é que lá está? Nada. No cinema procuro exatamente a mesma coisa e tento lutar por uma abstração. Só me interessam as emoções — tédio, riso, choro, alegria. Não há um único filme que tente reproduzir o real. Qualquer sentimento que se tenha perante uma obra é a verdade dessa obra. O resto é aldrabice. Há histórias maravilhosas que dão filmes da treta e histórias de treta que dão filmes maravilhosos... Alfred Hitchcock! O maior pintor abstrato do século XX. Um génio. Libertou-se do “cacaracá” e fez cinema por todo o lado. Aquilo é pintura. Camadas sobre camadas. Vinte anos depois, vejo um filme de Hitchcock e ainda descubro coisas boas.
Em que medida é que o espectador lhe interessa?
A mim interessa-me o seguinte: fazer o melhor que sei. É evidente que quando se faz uma obra, queremos mostrá-la e quanto mais pessoas a virem melhor. Mas não me vendo.
Nunca vê cinema como puro entretenimento?
Não. Não me ensina nada. Sei sempre o que vai acontecer e aborreço-me de morte. Houve um filme, do senhor Spielberg, que estragou tudo. Chama-se “O Tubarão”. Abriu a boca e engoliu todo o cinema do mundo. Foi o primeiro infanto-juvenil que apareceu, uma espécie de suspense e terror muito previsível, e nem sequer é mau. Mas foi a partir daqui que os adultos começaram a ser escorraçados das salas. Hoje, 98 por cento do cinema que se faz para passar em sala é entretenimento para jovens. Fora disto, existe o chamado cinema independente, que só passa em festivais temáticos e em mostras de cinema. Sabe porquê?
Então?
A produção do cinema americano é tão cara que o mercado interno não é suficiente. Entre tudo o que produzem, e é muito, dez filmes rendem fortunas, 20 conseguem dar algum dinheiro, 30 pagam-se a si próprios e 200 dão prejuízo. Portanto, quando estreia um blockbuster, têm de ocupar mais de metade dos ecrãs disponíveis no mundo inteiro. Isto marcou uma profunda mudança no cinema que se produz e agora as pessoas saem das salas, dizem “foi giro” e vão à vida. Não há posições críticas. Isto inquieta-me profundamente.
Existe uma família do cinema português? Uma linguagem que nos identifique?
Uma das características que nos distinguem é, precisamente, ninguém nunca fazer igual a ninguém. Cada um tem a sua assinatura... Mas talvez haja uma linguagem comum. Somos do tempo do movimento e da contemplação. Não somos da ação. Sabemos muito de luz, da sombra e do vento nas árvores, mas quando filmamos um assalto e dizemos: “Mãos no ar!”, desata tudo a rir. É ridículo.
O que gosta mais no trabalho de realizar?
Entre as 30 variáveis, chegar à medida justa. Quando tudo bate certo: Olhar, luz, texto... Gosto de tudo o que tem que ver com a composição. Um quadro, seguido de outro quadro, onde o ideal é que não se note quadro nenhum. Mas a coisa mais bonita do cinema é a elipse.
Energia. A dança é o motor elétrico e trocar os dias pelas noites é o seu hábito mais antigo. Há qualquer coisa na luz do sol que o incomoda. “Oliveira inventou a quinta idade e eu só vou na terceira. Portanto, ou trabalho ou leio ou divirto-me”
Energia. A dança é o motor elétrico e trocar os dias pelas noites é o seu hábito mais antigo. Há qualquer coisa na luz do sol que o incomoda. “Oliveira inventou a quinta idade e eu só vou na terceira. Portanto, ou trabalho ou leio ou divirto-me”
LUÍS BARRA
O que é a elipse?
É a passagem do tempo. A melhor que fiz foi em “Tempos Difíceis”. Uma menina de nove anos estende um lençol no arame e quando o tira já tem vinte. Numa fração de segundo passaram-se dez anos. Isto é a coisa mais maravilhosa que há. O tempo do cinema não é o tempo da vida. Fica mais perto do tempo do sonho. Estás a ser perseguido e não consegues andar, andas muito depressa ou então voas no espaço.
Como é que um filme surge na sua cabeça?
A maior parte surge a partir do texto. O texto é o herói do filme. A primeira longa que fiz foi “Conversa Acabada”, uma espécie de teatro filmado, onde não existem atores. Os atores eram amigos meus que se pareciam fisionomicamente com personagens e a matéria do filme é beleza do texto de Sá Carneiro e das cartas trocadas entre ele e Fernando Pessoa. Em “Os Maias”, por exemplo, não é a relação entre a Maria Eduarda e o Carlos da Maia que me interessa. Interessam-me as páginas que o Eça escreveu e parecem tratados de pintura. Esse filme foi feito para ser um incentivo à leitura do romance que continua a ser notável. Andámos a mostrá-lo pelas escolas do país e bateu recordes de bilheteira. Teve 150 mil espectadores, foi um dos mais vistos desse ano.
O cinema é sempre um ato puramente cerebral?
Sim. E é frio, e é seco, e é duro. Provavelmente, vem da minha herança da engenharia. Quando vejo um filme estou sempre a seguir os planos e a tentar perceber como é que foram feitos, onde está o artifício. Só há um cineasta que me engana, Jean Renoir. Esse ultrapassa-me sempre. Está para lá do limite da compreensão humana.
Vamos voltar à sua vida?
A vida interessa pouco. É uma coisa maravilhosa mas não é para se falar dela. As pessoas estão na terra para fazer coisas.
O desejo eterno de deixar marca?
Nada disso. Isto é tão complicado, tão complexo... Cada vez tenho menos certezas. As doenças são naturais, as rugas e a velhice também, portanto a ideia é aproveitar e fazer coisas. Considero-me um otimista. Hoje é bom, mas amanhã tem de ser melhor. Se assim não for, não estou cá a fazer nada.
Por isso vive tão intensamente os seus dias?
Divirto-me imenso. Mas, ao contrário do que as pessoas imaginam, trabalho para caramba. Quando estou a trabalhar, acordo às oito da manhã, trabalho 15 horas seguidas e não faço mais nada. Por brincadeira costumo dizer: “Sou marxista. Oito horas de trabalho, oito horas de lazer, oito horas de descanso.” Como nesta idade já só preciso de dormir seis horas e como adoro dançar, aproveito a noite. Diz o ditado: “Homem pequenino ou velhaco ou bailarino”. Escolhi dança. A noite, a mim, marcou-me mais do que as mortes que tive na infância.
Como?
Há qualquer coisa no sol que me incomoda. Em Coimbra, nos dois anos em que estive sem estudar, levantava-me às duas da tarde, começava a ensaiar às cinco e deitava-me às nove da manhã. No Porto, dava aulas à noite. Depois tive três filhos com cinco anos de intervalo entre cada um. Nessa altura, como só conseguia encontrar o silêncio para trabalhar a partir das duas da manhã, deitava-me de manhã. Foi assim durante muito anos.
Os seus filhos e da Leonor Pinhão? Eram considerados um casal histórico.
Conheci a Leonor numa peça do Ricardo Pais, “Ninguém Duas Vezes”. Eu vi essa peça dez vezes. E nem era grande coisa, mas estava lá a Leonor. Todas as noites íamos para o Jamaica dançar. A Leonor era uma pessoa completamente diferente do normal e foi essa diferença que me atraiu. Quando fui apresentado à família, o avô dela, o pai do Carlos Pinhão, perguntou: “É dos nossos?” Ela respondeu que sim e ele não precisou de saber mais nada: “Então está bem”. Se eu não fosse do Benfica não havia hipótese nenhuma de relacionamento. Ela tinha 21 anos quando tivemos o primeiro filho e eu 29. Vivemos 27 anos maravilhosos, e um dia, tal como os impérios acabam, o casamento acabou. É isto.
Foi comentador do Benfica na TVI, foi o primeiro passo da sua personagem pública.
E fiz mais viagens ao estrangeiro com os meus filhos para ir ver o Benfica do que a festivais de cinema. Convidavam-me para ir a festivais e como tinha medo de andar de avião não ia.
E como fazia para ir ver os jogos do Benfica?
Ia com eles. O avião do Benfica nunca cai.
E a briga com o Pinto da Costa?
Foi uma história complicada. Teve que ver com uma pequena vingança. Ele tinha aquela guarda pretoriana composta por dragões, e uma vez, em Aveiro, insultaram, cuspiram e bateram no pai da Leonor, o Carlos Pinhão. Foi uma coisa horrorosa, de uma humilhação absoluta. Isso aconteceu porque no jornal “A Bola” apareceu num título: “Ontem foi o Guímaro”. O José Guímaro, o árbitro que tinha beneficiado um jogo porque eles queriam o título e naquela altura mandavam no futebol. Em Aveiro fizeram-lhe uma espera e a Leonor, que é uma pessoa de boa moral, disse: “Vamos vingar-nos”. Quando apareceu a Carolina Salgado e toda aquela história horrorosa foi posta num livro, a Leonor ofereceu-se para o corrigir e melhorar o texto. Foi uma confusão. O Pinto da Costa acabou por ir a tribunal e ser julgado por um juiz do Porto, que assiste aos jogos no camarote do Futebol Clube do Porto, portanto foi ilibado. Não me orgulho nada desse episódio.
O que é para si a moral?
O respeito pela diferença. Reconhecer o outro e não incomodar o espaço do outro.
Foi criada uma página no Facebook em sua honra com milhares de seguidores e, quando o encontram na noite, todos querem tirar selfies consigo. Tornou-se definitivamente uma persona pública, mais conhecido do que os filmes que faz.
Não tive nada que ver com isso, nem gosto. Queria acabar com essa página, mas nem sei como se faz. Não tenho Facebook, nem iPhone, nem sequer escrevo em computador. Escrevo à mão.
Cruza-se com tanta gente e tantas histórias. Nunca teve a tentação de as filmar?
Não. O cinema é demasiado importante para contar histórias particulares. Evidentemente que há expressões e emoções que capto e visualizo num ator. Posso contar o comportamento da minha vizinha ou outra coisa qualquer, mas é apenas mais uma camada. As coisas da vida são de outro mundo, se as fixarmos perdem-se. Eu nunca poderia filmar um jogo de futebol. Tente filmar uma noite louca no Lux... Gastam-se pipas de massa para filmar aquilo e mesmo assim não se consegue chegar ao coração. Reproduzir o real é sempre uma violação. Não serve para nada.
Anda a pé, não tem carta. Está sempre em movimento de um lado para outro a descobrir coisas. Fale-me da sua cidade.
Durante anos foi o Príncipe Real, o meu escritório e onde sempre tive a casa. Agora não se pode, sempre cheio de feiras e feirinhas, uma chatice. O último lugar que me encantou foi a Mouraria. Sentava-me na tasca da Cristina e via as raparigas coreanas, que adoram cabelos, a pentearem-se. Passava uma carrinha cheia de cães, e atrás uma cadeirinha com um bebé que nunca tomou banho na vida. Os homens-estátuas, todos decadentes, subiam Mouraria acima e depois vinham todos frescos para baixo. Até o Nando, o chefe dos gangues, eu vi a fazer segurança na igreja de São Cristóvão, porque estava lá dentro uma exposição de arte. Gosto muito daquilo, daquela coexistência. Com também já gostei muito do Bairro Alto.
E as noites?
Há sempre o Lux, onde me sinto em segurança e ninguém me incomoda... Neste momento consigo fazer o meu percurso noturno em Lisboa, durante todos os dias da semana. Aos domingos, só posso ir ao Purex e ao Lounge, mais nada. Às segundas, posso ir a uma coisa lá em baixo na Mouraria, junto das tascas do Benformoso, que tem gigolôs e negros e prostitutas, mas de repente há uma DJ chamada Full Moon que põe uma música incrível. Recentemente descobri em Xabregas um sítio que se parece com Berlim, o Ecca Palace, numa antiga escola primária, com um barzinho onde se pode tomar o pequeno-almoço. Gosto muito de descobrir pessoas e lugares.
Estou a lembrar-me de quando ouviu a Carminho cantar na Mesa de Frades, muito antes de ela se ter transformado numa fadista estrelar e fez dessa descoberta um acontecimento.
E depois apareceu-me a Gisela e ainda no outro dia me cruzei com um miúdo que toca saxofone como nunca tinha visto ninguém tocar. Nem sei o nome dele. Fez uns concertos com o grupo pequenino na ZDB e andei fascinado com aquilo. Há muitas coisas novas que me emocionam.
O que lhe interessa mais nas pessoas?
A alegria.
Ainda a descobre nas pessoas da sua geração?
O Oliveira inventou a quinta idade, só vou na terceira. Portanto, ou trabalho ou leio ou divirto-me. Deixei de ter os compromissos do meio.
Que são?
Aquela história da convivência lenta que às vezes é muito manhosa. Tenho muitas famílias, dou-me com gente muito diferente. Mas quando começa a ser chato, ou obsessivo, parto para outra. A vida é demasiado curta, não tenho tempo para me chatear. Há oito anos, aconteceu-me outra revolução. Matei um cancro. Foi outra catástrofe, mas agora um acidente, uma coisa grave, que me mudou a vida.
Teve medo?
Claro que tive e durante vários dias chorei. Depois salvei-me. A partir daí ganhei uma perceção do efémero, perdi o medo do futuro e passei a divertir-me mais. Mas daqui a três anos vou deixar de dançar, já avisei toda a gente. A partir dos 70 vou começar a fazer outra coisa qualquer.''
Artigo publicado na edição do EXPRESSO de 13 agosto 2016

sábado, 20 de agosto de 2016

When I do interviews people ask me about music, music, music, music, music.
And I say no, no, no, no. Music is second; The Human Being is first.

 Wayne Shorte
hoje é um dia tremendo na força das margens
um dia cheio de lama e de pedras nos bolsos
um dia de ver os órgãos na montra do talho
é um dia feito de garrotes para conter a luz
os pássaros trocaram o canto pela trovoada 
a brisa anuncia-se num ranger de dentes
transformaram o horizonte num desfiladeiro
um abismo perpétuo onde morrem a luz e a voz
hoje é um dia ao contrário do solstício
um parede de ferro onde desaguamos em carne
não se pode viver num dia assim não se pode morrer
não é habitável não tem relação com o sangue
é uma verruga no lábio por cima do beijo
um escarro de física imprevisível regressando
um dia como a casa em ruínas onde dormem crianças


Valério Romão

domingo, 14 de agosto de 2016

«Offret» (1986) Tarkovsky


''cheiro de envelhecer as mortes''


Carlos Nejar. A Idade da Eternidade. Poesia Reunida. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001., p. 62

«Amor, se é verde, dói.»


Carlos Nejar. A Idade da Eternidade. Poesia Reunida. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001., p. 62

«O que é a palavra, antes de envelhecer o vento.»

Carlos Nejar. A Idade da Eternidade. Poesia Reunida. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001., p. 61

Por tua culpa, amor


Jofre Rocha in 50 Poetas Africanos. Plátano Editora, 1ª Edição, Lisboa., p. 116

«Trazias tanto mar na pele dos dedos»


Manuel Rui in 50 Poetas Africanos. Plátano Editora, 1ª Edição, Lisboa., p. 113

Sempre mar



para a Antonieta


Mar vezes quando o sol nos enche os olhos
e nos promete mais vezes no olhar
fecham-se os olhos no rolar do tempo
de ver andar o antes e o depois
numa miragem que se chama mar
Mar prometendo mais vezes de vermelho
luz transformada num redondo
esquivo
um sol de devagar como descendo
da guerra sem estrondo
na lúcida mutação
de sempre mar.

E a tarde é todo um fim
um beijo tão molhado despenteado
como uma boca a tua boca à beira-
-mar depois das ondas e diferente
princípio de um começo como a noite
antes de o sol se adormecer aquático
formam-se linhas como os pensamentos
linhas carícias que nos fazem ver
que entre os passos da areia e os nossos movimentos
há sempre um pôr-do-sol
de um sol para nascer.

(1977)
Cinco vezes onze poemas em novembro, 1984



Manuel Rui in 50 Poetas Africanos. Plátano Editora, 1ª Edição, Lisboa., p. 112

«Poema que se faz e nunca 
feito
poema para amar e nunca
amado»

Manuel Rui in 50 Poetas Africanos. Plátano Editora, 1ª Edição, Lisboa., p. 108

« o teu gesto de adeus a perder-se na distância»


João Abel in 50 Poetas Africanos. Plátano Editora, 1ª Edição, Lisboa., p. 92

«Não existe traição alguma que mereça um verso»


Costa Andrade in 50 Poetas Africanos. Plátano Editora, 1ª Edição, Lisboa., p. 80

«Olhámo-nos como se nunca despertados
pressagiando corvos à distância.»


Costa Andrade in 50 Poetas Africanos. Plátano Editora, 1ª Edição, Lisboa., p. 79


Talvez fossem homens bons os que caíram
mas cumpriam estranhamente o crime
de assassinar a pátria alheia que pisavam. 

Poesia com armas, 1975


Costa Andrade in 50 Poetas Africanos. Plátano Editora, 1ª Edição, Lisboa., p. 79

Atrás de ti sem te falar
só a querer-te.


M. António in 50 Poetas Africanos. Plátano Editora, 1ª Edição, Lisboa., p. 69

(Sou todo uma ilha de suor e sal...)


António Cardoso in 50 Poetas Africanos. Plátano Editora, 1ª Edição, Lisboa., p. 63
It is difficult
to get the news from poems
yet men die miserably every day
for lack
of what is found there.

William Carlos Williams, «Asphodel, that greeny flower & other love poems: that greeny flower», New Directions Pub. Corp., N.Y., 1994.

sábado, 13 de agosto de 2016

''morte industrial''

Jean-Paul Sartre. Os Sequestrados de Altona. Livros de bolso Europa-América. p., 15

Criar


Criar criar
criar no espírito no músculo criar no nervo
criar no homem criar na massa
criar
criar com os olhos secos

Criar criar
sobre a profanação da floresta
sobre a fortaleza impúdica do chicote
criar sobre o perfume dos troncos serrados
criar
criar com os olhos secos

Criar criar
gargalhadas sobre o escárnio da palmatória
coragem nas pontas das botas do roceiro
força no esfrangalhado das portas violentadas
firmeza no vermelho sangue da insegurança
criar
criar com os olhos secos

Criar criar
estrelas sobre o camartelo guerreiro
paz sobre o choro das crianças
paz sobre o suor sobre a lágrima do contrato
paz sobre o ódio
criar
criar paz com os olhos secos.

Criar criar
criar liberdade nas estradas escravas
algemas de amor nos caminhos paganizados do amor
sons festivos sobre o balanceio dos corpos em forcas simuladas

criar
criar amor com olhos secos.


Sagrada esperança, 1974



Agostinho Neto in 50 Poetas Africanos. Plátano Editora, 1ª Edição, Lisboa., p. 31

sexta-feira, 12 de agosto de 2016


ILUSÕES
Recordação da minha terra (ao amigo João Gourgel)

Outrora, quando criança, as ilusões
que conservo qual herança valiosa,
guardava-as no coração de minha mãe
e minh'alma voava rindo, tão vaidosa...

Anos depois, pelas margens do Zaire
nos palmares, sentia a brisa dolente;
ansioso, lhe ouvia seus tristes cantos
e nas meigas relvas ficava dormente.
...........................................................
Mais tarde, as alvoradas eram para mim
ternos idílios, e então já pensava
horas esquecidas e o Zaire correndo,
na carreira, pensamentos me levava...

Um dia, depois vestiram-me um fato novo
e consultei o Zaire com o meu olhar
- «Vão-te levar» - pareceu-me ouvir dizer-te
num sussurro com uma alma a soluçar!

Hoje, depois de tão prolongada ausência
aí repousa a minh'alma sem um abrigo.
Muita vez de minha mãe pergunto ao Zaire.
Soluçando diz: - morreu ... sou teu amigo!

(Dos «Termos e Idílios»)
Luanda, 28 de Maio de 1900

Luz e Crença. n.º 2, 1903

Lourenço do Carmo Ferreira in 50 Poetas Africanos. Plátano Editora, 1ª Edição, Lisboa., p. 22

« o bem-estar imenso do amor satisfeito.»

Lourenço do Carmo Ferreira in 50 Poetas Africanos. Plátano Editora, 1ª Edição, Lisboa., p. 21

"É preciso muito tempo para tornar-se jovem." (Pablo Picasso)

quinta-feira, 11 de agosto de 2016


ASFÓDELO, ESSA FLOR ESVERDEADA


O asfódelo, essa flor esverdeada,
como um ranúnculo amarelo
sobre o seu caule ramificado —
só que verde e lenhoso —
venho, minha bela,
cantar-te.
Vivemos muito tempo juntos
uma vida repleta,
dir-se-ia,
de flores. Tanto que
me alegrei
assim que soube
que também no inferno
havia flores.
Hoje
invade-me a memória esmaecida dessas flores
que ambos amávamos,
inclusive esta pobre
coisa descolorida —
que eu vi
em pequeno —
pouco apreciada entre os vivos
mas que os mortos vêem,
interrogando-se entre si:
Será que recordo algo
cuja forma
fosse a forma desta coisa?
enquanto os nossos olhos se enchem
de lágrimas.
Do amor, do amor duradouro
será reveladora
embora um finíssimo banho carmim
lhe confira cor
tornando-a inteiramente credível.
Tenho algo
algo urgente
a dizer-te
e a ti apenas
embora tenha de esperar
enquanto me deleito
com o gozo da tua chegada,
quiçá pela última vez.
E assim
de coração receoso
vou-me alongando
e continuo a falar
por não me atrever a parar.
Ouve-me enquanto falo
contra o tempo.
Não demorará
muito.
Esqueci
e porém vejo com bastante nitidez
algo
central no céu
que em volta o abrange.
Uma fragrância
que brota!
Uma fragrância agradabilíssima!
Madressilva! E eis
que surge o zumbido de uma abelha!
e toda uma enxurrada
de memórias irmãs!
Só te peço algum tempo,
algum tempo para as recordar
antes de falar com franqueza.
Peço-te algum tempo,
algum tempo.
Em miúdo
tive um livro
ao qual, de vez
em quando,
acrescentava flores espalmadas
até que, daí a algum tempo,
me vi com uma bela colecção.
O asfódelo,
agoirento,
entre elas.
Trago-te,
ressuscitada,
uma memória dessas flores.
Eram perfumadas
quando as espalmava,
conservando
um quê desse seu perfume
por muito tempo.
Trata-se de uma fragrância curiosa,
uma fragrância moral,
a qual me transporta
para junto de ti.
A cor
era a primeira a desaparecer.
Deparara-se-me
um desafio,
o teu querido ser,
mortal como eu,
o pescoço do lírio
diante do colibri!
Uma riqueza infinita,
pensei eu,
estendeu-me os seus braços.
Mil trópicos
numa flor de macieira.
A própria terra generosa
deu-nos de bom grado.
O mundo inteiro
tornou-se o meu jardim!
Mas o mar
que ninguém cultiva
é também um jardim
quando nele incide o sol
despertando
as ondas.
Já o vi
e tu também
a cobrir de vergonha
todas as flores.
Existem ainda a estrela-do-mar
endurecida pelo sol
e demais sargaços
e algas. Era algo que conhecíamos
a par de tudo o mais
pois nascêramos junto do mar,
conhecíamos as suas sebes de rosas
que vinham até à beira da água.
É aí que cresce a malva-rosa
e quando está na época
os morangos
e foi aí que, mais tarde,
fomos apanhar
a ameixa silvestre.
Não posso dizer
que fui ao inferno
pelo teu amor
mas foi lá
que muitas vezes dei por mim
à tua procura.
Não me agrada
e deu-me vontade de
estar no céu. Ouve-me.
Não vires costas.
Aprendi muito ao longo da vida
em livros
e fora deles
sobre o amor.
A morte
não é o seu final.
Há uma hierarquia
que pode ser alcançada,
julgo eu,
ao seu serviço.
A sua recompensa
é uma flor mágica;
um gato de vinte vidas.
Se ninguém o tentasse
o mundo
ficaria a perder.
Tem sido
para ti e para mim
como alguém que observa uma tempestade
a aproximar-se sobre as águas.
Estivemos
ano após ano
diante do espectáculo das nossas vidas
de mão dada.
A tempestade desenvolve-se.
Os relâmpagos
brincam na orla das nuvens.
O céu a norte
está plácido,
resplandece azul
com o adensar-se da tempestade.
É uma flor
que chegará em breve
ao auge do seu florir.
Dançávamos,
em pensamento,
e líamos juntos um livro.
Lembras-te?
Era um livro sério.
E foi assim que os livros
entraram nas nossas vidas.
O mar! O mar!
Sempre
que penso no mar
vem-me à ideia
a Ilíada
e a falta pública de Helena
que a engendrou.
Não fosse isso
e não teria existido
poema e o mundo,
se tivéssemos recordado
aquelas pétalas carmins
derramadas entre pedras,
ter-lhe-ia chamado simplesmente
assassínio.
A orquídea sexual que então floresceu
lançando tantos homens
desinteressados
para o túmulo
deixou a sua memória
a uma raça de loucos
de heróis
se for uma virtude o silêncio.
Só o mar
na sua multiplicidade
encerra alguma esperança.
A tempestade
revelou-se um fracasso
mas sobramos nós
após os pensamentos que ela despertou
para
cimentarmos de novo as nossas vidas.
É a mente
a mente
que há que curar
antes da intervenção
da morte,
e a vontade torna-se novamente
um jardim. O poema
é complexo e o espaço aberto
nas nossas vidas
para o poema.
O silêncio também pode ser complexo,
mas não se vai longe
com o silêncio.
Recomecemos.
É como o inventário
de navios de Homero:
serve para fazer tempo.
Falo através de figuras,
em certa medida, os vestidos
que pões são figuras também,
de outro modo não nos
encontraríamos. Quando falo
de flores
é para lembrar
que em dado momento
fomos novos.
Nem todas as mulheres são Helena,
bem sei,
mas trazem Helena nos seus corações.
Minha bela,
também tu a trazes, e é por isso
que eu te amo
e não poderia amar-te de outro modo.
Imagina que vias
um campo cheio de mulheres
de um branco prateado.
O que haveria a fazer
senão amá-las?
A tempestade rebenta
ou esmorece! não é
o fim do mundo.
O amor é outra coisa,
ou assim pensava eu,
jardim que se expande,
embora eu te tivesse conhecido como mulher
e nunca tenha achado outra coisa,
até ocupar
todo o mar
e todos os seus jardins.
Foi o amor do amor,
o amor que engole tudo o mais,
um amor agradecido,
um amor da natureza, das pessoas,
dos animais,
um amor que gera
a amabilidade e a bondade
que me animou
e que vi em ti.
Eu deveria saber,
embora não soubesse,
que o lírio do vale
é uma flor que adoece muitos
daqueles que a sopram.
Tivemos os nossos filhos,
adversários na chacina geral.
Ponho-os de lado
embora tenha cuidado deles
como qualquer homem cuidaria
dos seus filhos
no meu entender.
Compreendes
que tinha de te encontrar
após o sucedido
e que ainda tenho de te encontrar.
O amor
perante o qual te curvarás
ao meu lado —
uma flor
uma flor fragilíssima
será a nossa aliança
e não que sejamos
demasiado fracos
para agirmos de outro modo
mas porque
do alto das minhas forças
arrisquei aquilo que tinha de fazer,
para assim provar
que nos amamos
enquanto os meus próprios ossos suavam
para que eu não to gritasse
em flagrante.
O asfódelo, essa flor esverdeada,
venho, minha bela,
cantar-te!
O meu coração exalta-se
ao pensar em trazer-te notícia
de algo
que diz respeito a ti
e diz respeito a muitos homens. Repara
no que passa por novidade.
Não o encontrarás aí mas nos
poemas desprezados.
É difícil
obter notícias dos poemas
embora os homens morram miseravelmente todos os dias
à falta
do que aí se encontra.
Ouve-me
pois também a mim diz respeito
bem como a qualquer homem
que deseje morrer em paz na sua cama
de resto.

William Carlos Williams 
(tradução de Vasco Gato)

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Dona Rute, 62 anos, diagnóstico de Demência Mista e história de doença psiquiátrica



“Só pintei as unhas duas vezes na vida. Das duas vezes em que me casei”

''A Dona Rute lembra-se perfeitamente que no primeiro casamento foi de vestido branco. No segundo, não. Do que não se lembra mesmo é de quantos anos tem hoje. “A gente em miúda conta, agora já não faço assim muitas contas.” Solta umas gargalhadas.''

Come In Alone



Come in alone, you will love to let go
And I'll turn you around
When your hopes gave me doubts
(Ohh)
Run and hide

Why I don't need to believe
What you see to look up and around
You were gone, words came out to a sound


Feel, I'm alive
You will see why I'm alive
Felt like crying over her I will go to
The wall
(Ohh)
Run from some

Come in alone, you will love to let go
And I'll turn you around
When your hopes gave me doubts
(Ohh)
Run and hide
when God created love he didn't help most
when God created dogs He didn't help dogs
when God created plants that was average
when God created hate we had a standard utility
when God created me He created me
when God created the monkey He was asleep
when He created the giraffe He was drunk
when He created narcotics He was high
and when He created suicide He was low
when He created you lying in bed
He knew what He was doing
He was drunk and He was high
and He created the mountians and the sea and fire at the same time
He made some mistakes
but when He created you lying in bed
He came all over His Blessed Universe.
«yes yes», Charles Bukowski

terça-feira, 9 de agosto de 2016

"Love comes when manipulation stops; when you think more about the other person than about his or her reactions to you. When you dare to reveal yourself fully. When you dare to be vulnerable.”,

 Dr. Joyce Brothers

a granel
em montes, sem conta nem peso, à mistura, sem embalagem

''jornalixeiros de plantão''

apaniguado

adjetivo, nome masculino
1. mantido por outrem
2. protegido; favorito
3. partidário

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

|| suicídios exemplares ||


VIOLÊNCIA E PAIXÃO


Quando se percorre a poesia escrita por mulheres ao longo do século XX português, o nome de Natália Correia continua a surgir como um dos que causaram uma repercussão mais duradoura, quer pela sua personalidade forte e polémica, quer pelo alcance da sua obra literária, na qual sempre se manifestou uma vocação poderosamente dionisíaca e por isso excessiva, capaz de apreender magicamente a realidade e de a transfigurar mediante uma rica imaginação metafórica, sobretudo a partir de "Dimensão Encontrada" (1957), já que os seus primeiros livros ("Rio de Nuvens", de 1947, e "Poemas", de 1955) exprimiam ainda uma atitude lírica mais tradicional.
É antiga a questão de saber até que ponto Natália Correia poderá ou não considerar-se uma escritora surrealista, embora nunca tenha pertencido a qualquer movimento com esse nome: definida algures por Claude Roy como «la violence surréaliste faite femme», a própria Autora terá admitido alguma proximidade com a visão surrealista do mundo, essencialmente no que toca a uma «identificação entre a poesia e a magia», na medida em que ambas procuram o acesso a uma alquimia libertadora. Trata-se, no fundo, de uma radical vontade criadora, de um desejo de libertar a linguagem de todos os constrangimentos e de dar livre curso à imaginação, como podemos sentir num texto que nos fala de uma ressurreição apta a transformar a morte em vida e a tristeza em alegria: «A harpa do vento / e os meus dedos de ventania / compuseram uma canção / da mais fantástica alegria. // (...) // É uma onda de magia / onde se enrolam os mortos / erguidos da terra fria / dum rosto que lhes pintou / a nossa melancolia.»
Foi sob o efeito do irresistível impulso dessa «onda de magia» que se construiu o essencial da escrita de Natália, em que um dos traços mais flagrantes consiste numa posição (sempre reafirmada) de rebeldia diante das instituições e dos poderes estabelecidos ou de quaisquer regras impostas pela força. Até certo ponto, é como um sinal dessa rebeldia que se compreendem as incursões da Autora no campo da poesia satírica e humorística, dirigida contra figuras ou acontecimentos da esfera política, como sucede na sequência das «Cantigas de Risadilha» — composta por poemas que ridicularizam episódios da vida parlamentar que Natália acompanhou enquanto foi deputada —, assim como em toda a "Epístola aos Iamitas" (1976), cujos sonetos constituem reflexões ora entusiásticas, ora sobretudo corrosivas, a respeito do Portugal pós-25 de Abril e disso a que na altura se chamou o P.R.E.C. (Processo Revolucionário Em Curso), perante o qual se manifesta por vezes uma dolorosa desilusão: «E veio Abril: cravos camonianos / aparelharam da liberdade as barcas. / Do verde pinho as flores foram-me enganos, / as tecelãs do sonho eram as parcas. // Da podridão variam os estados: / magicamente os nomes são mudados; / intacto o pasto vil das varejeiras.»
A mesma faceta surge igualmente em certos poemas isolados, como a célebre «Queixa das Almas Jovens Censuradas», fazendo eco de um profundo grito de revolta que preza, acima de tudo, a liberdade do poeta contra todas as formas de sujeição. E é também isso a estar em jogo num outro texto muito conhecido («A Defesa do Poeta»), aliás escrito com a intenção de ser lido no Tribunal Plenário que no tempo da ditadura acusou Natália Correia: «Senhores juízes sou um poeta / um multipétalo uivo um defeito / e ando com uma camisa de vento / ao contrário do esqueleto. // (...) // Sou (...) / uma avaria cantante / na maquineta dos felizes. / (...) // Sou uma impudência a mesa posta / de um verso onde o possa escrever. / Ó subalimentados do sonho! / A poesia é para comer.»
Lido este excerto, convirá atender a dois aspectos: por um lado, mesmo levando em conta o intuito profundamente afirmativo do texto (que desenvolve a vigorosa declaração: «sou um poeta»), o lugar de quem escreve poesia surge relacionado com uma excepcionalidade inquietante ou perturbadora, já que se identifica com um «defeito» ou uma «avaria cantante / na maquineta dos felizes», que corresponderiam à cinzenta maioria; por outro lado (e refiro-me agora aos dois últimos versos), acentua-se a dimensão gustativa, sensorial ou carnal da poesia, inscrevendo-se num entendimento global do mundo em que «o espírito é tão real como uma árvore», pressupondo uma integração harmoniosa na natureza. Ficamos, portanto, dentro de uma unidade fundamental entre todas as coisas humanas e cósmicas, naturais e divinas: «Vem das estrelas o sangue que nos guia / E na amorosa perfeição da carne / Está toda a eternidade resumida.»
Perante versos como estes, pode dizer-se sem grande exagero que Natália Correia nos deu, do princípio ao fim da sua obra, uma visão religiosa da existência, alicerçada não em qualquer adoração de um Deus ou num rito eclesiástico específico, mas numa espécie de comunhão pagã entre o eu e tudo o que o rodeia, religando-se a um universo do qual pretende auscultar os sinais, como se estivesse diante de um segredo que só a alguns é permitido desvendar e que a poesia aguarda, como se esperasse «o romper da manhã na noite mística». De facto, na escrita de Natália o conhecimento quase nunca se produz pela via intelectual e corresponde, acima de tudo, ao amor: fiel à tradição lírica portuguesa e à sua predilecção por temas amorosos, a Autora convoca sentimentos simultaneamente carnais e espirituais, porque neste caso é a partir dos sentidos que se intui a hipótese (ou a certeza?) de um sentido que os excede — veja-se o início do poema «Pórtico»: «Corpo, alma, razão, já os cantei, / estreme, sem me isentar em pseudónimos. / Antífrases de mim as assinei. / Contrários indaguei: eram sinónimos. // O Espírito agora cantarei. / Corpo, alma, razão lhe são compósitos.»
Também enquadrado no mesmo propósito de união e ampla comunhão universais está um politeísmo estrutural que leva a poesia desta «feiticeira cotovia» a celebrar a beleza do mundo, conotando-a com a presença do sagrado que o povoa e assim reflecte os poderes de uma pluralidade de deuses e deusas cujo culto, em vez de exigir submissão — «Os deuses não nos querem de joelhos» —, nos convida, pelo contrário, a um esfusiante cântico da vida e do amor, do qual podem ser emblemas os Jardins de Adónis, onde se recusam os labirintos da racionalidade e se declara a superioridade das sensações, tornadas elas mesmas divinas: «Sentir nos baste. Ideias são reveses. / Da vida, as naturais disposições, / Sigamos, Flávio. Até que sejam deuses / As nossas sensações.»
Perto das sensações mais vibrantes se encontram, aliás, todos os elementos de uma natureza cujo incognoscível daimon feminino se condensa na famosa imagem da «Mátria», nem sequer demasiadamente erotizada no sentido mais comum que atribuímos à sexualidade humana, mas sobretudo transmissora de paz, de bem-estar e de reconciliação com um estado primitivo, maternal ou genesíaco do universo: «E se o mundo em ti principiava, / No teu mistério entre astros absortos, / Suavemente, ó mãe, tudo termina.» Também o Amor (com maiúscula) ultrapassa, deste modo, as habituais fronteiras que limitam a consciência individual, elevando-se ao mais alto grau de gnose mística e adquirindo o estatuto de uma sabedoria esotérica comparável à de uma verdadeira alquimia: «Indemne atravessei as labaredas / porque o Amor faz a Obra / e o fogo faz o Amor.»
Para concluir, digamos que toda a poesia de Natália Correia configura um «ofício das trevas», mergulhando nas águas de mistérios que não ousa decifrar e assentando numa ideia (surrealista) de libertação total do ser, num processo de comunhão iniciática. Trata-se de um ritual posto em jogo não apenas graças aos já mencionados poderes alquímicos da escrita, mas também por uma abertura à «Saudade» portuguesa que sempre fascinou a Autora — essa «retráctil flor da ausência», cujo místico perfil se recorta sobre o passado e sobre o futuro, parecendo conferir ao conjunto da obra de Natália Correia uma indestrutível crença em qualquer coisa que extravasa os mesquinhos limites da razão humana. Na esteira dos românticos ou dos seus herdeiros surrealistas, é sempre muito para lá de tais limites que esta poesia nos deseja convocar, arrastando-nos para uma dimensão soberanamente libertadora da realidade e da linguagem — como se lê no texto final dos "Sonetos Românticos", que funciona como um «credo»:
«Creio nos anjos que andam pelo mundo, / Creio na Deusa com olhos de diamantes, / Creio em amores lunares com piano ao fundo, / Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes, // Creio num engenho que falta mais fecundo / De harmonizar as partes dissonantes, / Creio que tudo é eterno num segundo, / Creio num céu futuro que houve dantes, // Creio nos deuses de um astral mais puro, / Na flor humilde que se encosta ao muro, / Creio na carne que enfeitiça o além, // Creio no incrível, nas coisas assombrosas, / Na ocupação do mundo pelas rosas, / Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen».

Fernando Pinto Do Amaral, "Violência e Paixão", prefácio a Antologia Poética. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2002.

POESIA COMPLETA | O SOL NAS NOITES E O LUAR NOS DIAS (Introdução)


INTRODUÇÃO | NATÁLIA CORREIA 

Perturba-me escrever sobre a minha poesia como me solicitam os que aqui a dão a conhecer numa amplitude próxima do seu conjunto (ficam ainda de fora alguns inéditos) porque, ao fazê-lo, das duas uma: ou, tara que não me seduz, indulgiria em entregar-me ao onanismo de uma autoapreciação irremediavelmente atada ao cordão umbilical que me liga aos meus poemas; ou, baforando fumaças de objetividade, só por um factício prodígio poderia transmigrar de autora para teorizadora desse meu íntimo assunto poético em que além de mim age um ignotus que ainda estou para saber o que é. Mas se não alcanço esse «outro» que entre as minhas intrínsecas pluralidades me provoca com palavras a ordená-las em imagens que libertem a linguagem escondida no silêncio, nem por isso cairei na cilada que, logo no raiar das Artes Poéticas, Platão no Ion armou aos poetas dizendo serem os deuses que põem a inspiração nas suas palavras. Não que ache isso impossível, pois recusa-se-me a mente a achar impossível seja o que for, mas lá perigoso é. Porque, a ser assim, o poeta toma-se por um ser excecional. O que, dando lugar à sua arrogância, o expõe ao ridículo de não ter razão para a ostentar visto que os versos que faz nem sequer são dele mas de uma entidade sobrenatural que fala pela sua boca, reduzindo-o à função de microfone. Ora um microfone vaidoso é um absurdo hilariante que retira toda a credibilidade ao poeta. O que não convém para que neste nosso tempo de chiqueiro dos dejetos de uma civilização atarantada pelo cerco de ameaças catastróficas possa a vida respirar o ar limpo de um começo que na poesia diz que quer emergir. Neste ponto seria tentada a enredar-me no fio que uma nova ciência nos estende para nos conduzir ao postulado de uma conexão cósmica da poesia com uma linguagem englobante da música e das matemáticas em que está estruturado o Universo. Nas matemáticas, o número de sílabas e de acentos regulado nas formas métricas. Na música, não só a simples melodia produzida por esse arranjo métrico mas a que na lógica encantatória da linguagem poética é essencial ao poema (Mallarmé). É nesta cosmicidade do idioma poético que surge a tentação remissiva que nos convida a revisitar Velhos Tratados Espirituais em que cada letra do alfabeto corresponde a um número numa relação significativa de um constituinte do Universo.
Envolvida nos feitiços destas meditações que por vezes me sobressaltam sobre o porquê da minha poesia, não sei se dela me distanciei ou aproximei. Sinto, isso sim, que a última alternativa é a mais idêntica a um puro relâmpago da minha recôndita disponibilidade para receber a mercê que me é dada em palavras de olhar as coisas de uma outra forma, alinhando-as num ritmo que corre para um ponto onde tudo está abrangido. Mera sensação? Como saber se até ignoro se sou eu que convoco essa dádiva em poesia ou se é ela que se convoca a si mesma em mim. Para quê? Para me mostrar o não ser do que julgo ser e o ser do que julgo não ser? Quantas perguntas! Esta, por exemplo: não será cada poema um pouco da biografia de todos? E esta ainda que é corolário da precedente: será que a poesia se manifesta no poeta porque é obra de todos? Fixo-me nesta velha questão porque nela encontro pistas abonatórias do que na vivência do meu fazer poético me surge como uma evidência: o brotar da poesia numa linguagem construída na esfera psíquica de fatores transpessoais que atuam como uma força unificadora. Eis porque nada é isolável em poesia, pelo que não pode ela furtar-se a nenhum modo de expressão, vivendo o poeta em cada um deles os diversos heterónimos do estar sendo em situação interior ou exterior. O tal drama em gente que o anglo-saxonizado Fernando Pessoa resolveu com pragmatismo metódico em sistematizada heteronímia.
Ora situando-se na faceta exterior da totalidade do sentir poético, logo ressalta o interesse geral em que o poeta partilha os sofrimentos e as esperanças dos outros. Chega o momento de a sociedade arder na alma do poeta em chamas de revolta contra a Medusa das prepotências que petrifica as almas? Inexoravelmente volve-se então a sua poesia em disparo de fulminantes recusas e subversões contra o olho dos Ciclopes da Ordem Absoluta que pintam com as cores da liberdade (política: hoje hospitalizada na clínica psiquiátrica dos Mastodontes do Gamanço Universal do Dinheiro), da abundância (atual pretexto para o voraz canibalismo economocrata) e das prebendas num deleitoso além canonicamente mobilado (igreja: à beira de ser inócua por anemia) o convite dirigido à incapacidade de ter de se escolher uma destas servidões.
Mas neste passo cumpre-me esclarecer: não sendo escassas as balas que, em poemas, disparei contra a univisualidade do mostrengo das coações fascio-puritano-pirosas, não me faltando também no arsenal as que estavam a pedir certas peneiras autoritárias com cravos de Abril na fala, não foi pelo manual de um neorrealismo, com o qual aliás sempre embirrou o meu duende libertário, que me fiz atiradora. Do que eu me livrei em não ter caído nessa esparrela que pode ter um desenlace trágico. Vejam o Maiakowski. Nem mesmo o seu génio tão vitalista quanto o seu agitado panfletarismo revolucionário sugeria o safou de seguir o pst do anjo fatal dos suicidas russos ao ver, entre o Cubofuturismo da LEF e o retorno aparente às práticas burguesas da NEP, o seu grito «… burguês, chegou o teu último dia!» afundar-se no apodrecimento da revolução.
Mas, prosseguindo nessa via comum, percorrida por todos os outros que são o poeta, forçoso é dar relevo ao magno momento: o encontro com a justiça. Distingamos. Refiro-me a Astreia, a Iustitia que vivia em harmonia com os mortais até que os delitos da humanidade a puseram em fuga para o céu onde lá está a cintilar na constelação da Virgem. Não à dadura lex, Témis, conselheira de Zeus, o Pater que subvertendo com o regime conflitual da fragmentação o indiviso da ordem materna que o precedera, reforçou a expansão falocrática, instauradora da competição instigadora de crimes que geraram a lei. Exercício espiritual, sempre mas nunca convictamente malogrado, para o retorno (a) ou progresso para a plenitude de uma comunhão universal prometida no mito de uma idade de ouro, a poesia, em sua pureza acrática identifica-se com a Iustitia. Daí a justiça poética, termo que no século XVII por fim dá o nome à moral da vida verdadeira que participa da vida do Universo, moral congénita à poesia que, por isso mesmo, pune a falsificação da vida submetida às leis de moralismos utilitários.
Volto-me agora para a face interna da totalidade que a poesia desespera por abranger fazendo -se a arte de ampliar a alma a tudo quanto existe por obra do mistério que o véu da Sabedoria encobre. Por outras palavras: é chegado o momento espiritualmente crucial do poeta fazer sua a ira de Shlegel: «Já são horas de rasgar o véu de Ísis e revelar-lhe o mistério. Quem não suportar a visão da deusa, fuja ou pereça.» Mas para lá chegar há que passar pela prova do abandono à atração da «gravidade metafisica» do Amor em que é demonstrado que a amada só no amante existe e vice-versa, fundamento da gnose inerente à poesia que nos diz: as coisas só se revelam inteiramente no seu oposto, visto que com ele são unas.
Com esta consabida receita contra a doença da homogeneidade, me desembaraço de ser nesta minha obra poética não omnia, subestimado aquilo que nela mais prezo por autêntico testemunho das várias almas que se unem na minha alma. Uma mobilidade dadivosamente passiva às solicitações dos correlatas que em matizes líricos de sacralidade do amor terreno, ou da terrealidade do divino
e outras coisas luminosas tiradas do inferno, tensão dialógica sob forma mesmo estruturalmente dramática, ode, sátira ou humor que, cito-me, como a poesia, surge onde não há solução (O Surrealismo na Poesia Portuguesa), pediram a palavra ao meu léxico poético. Fontes de analogia sem as quais nunca subiria ao miradouro do Espírito de onde o poeta, por fim, enxerga (Sonetos Românticos) o futuro causador do começo. Operação de reversibilidade de causa e efeito a que é devido chamar-se poesia. Pelo que assiste toda a razão aos poetas de pesquisarem o ouro de um futuro vedado pela ordem artificial das ideias caminhando para um passado mítico. É-lhes pois irrecusável a competência para restabelecer as relações do homem com a natureza. Ou seja: consigo mesmo.
Finalmente uma satisfação que, dando aos leitores, também dou a mim mesma.
Logo no primeiro volume dos meus poemas Rio de Nuvens, que vieram a público anos depois de neles ter timidamente debutado por volta dos meus dezassete anos, agora integrados nesta compilação, serão notados cortes e correções pelos raros que os leram . Ou antes, raríssimos. Vai a razão:
Uma autoexigência insatisfeita com a escolha feita pelo poeta hoje esquecido mas então encartado e amigo da família que, empenhado na sua publicação, deles expurgou os poemas que me eram mais caros por considerá-los metafísicos e de grandiloquência dramática levou-me a bloquear a sua distribuição. Em abono da coerência do selecionador, autor do respetivo prefácio em que exagera a tónica de passar por meu mestre, direi que era seu vade mecum a arte poética postulante da poesia quase sem palavras. Princípio que aplicou ao exame dos meus poemas. Apenas já então me era intolerável aceitar que o valor da poesia consistisse na procura de se abolir no silêncio pois já intuía que a palavra vinha à poesia para tomar audível o que fala no silêncio.
Enfim, tal foi o choque que, durante anos, me encerrei num mutismo hostil à Musa tentadora até que a sua teimosia acabou por libertar em oito dias um caudal de poemas com amigos à volta a aturdirem-me mais o estonteamento: este sim... este não... Resultado, o livro Poemas, cuja releitura a dezenas de anos de distância me forçou a meter nele o bisturi.
Só vos digo que o mal foi começar. Porque se não me contenho em alterações, ia muita coisa a eito. Até ao ponto em que me pareceu mais fidedigno o testemunho em livro dos trechos do primeiro ciclo do meu pecúlio poético. Tolheu-me a gana cirúrgica o imperativo de não serem esses poemas desfigurados por corretivos verbais oriundos de entusiasmos pretéritos que sonegariam aos leitores interessados em seguirem essa evolução ou involução a que se dá o nome de obra poética, a autenticidade da sua génese e colocação nopoiétikós que aqui se desenrola.
Quanto aos inéditos que desdenhei em prol da preferência dada aos publicados, falem eles por si. Como todos, de resto. O que vos dirão não sei. A mim dizem-me que são uma urgência do Espírito. Urgência de quê? Da poesia ser praticada. É por isso que cada poema, por mais elevado, evanescente ou injetado de virulentas ou mesmo fesceninas invetivas, é uma lição de moral. Não da moralidade que expira com a religião que a procriou, mas de uma ética espiritualizada que já neste kairos da roda das metamorfoses, em que o fantasma do Deus morto só aparece para passar o testemunho a uma nova legitimação sacral, dá sinais de querer ser objetivada. Apenas se o fatum do poeta o recruta para ser agente da fundação de uma nova história da mente, a fantasmagoria das potências do caos ambiental social e mental paralisam-no numa desresponsabilização que se socorre da narcísica anestesia dos outros que o poeta é. Ou, caso o atormente a insistência da lembrança de um futuro inscrito na mais elevada categoria do espírito que os proxenetas da prostituição da vida esconjuram com vade retros de poderio económico, resta-lhe desencantar, em penosa solidão, o engenho de fazer ouvir o sopro da AIma Universal na palavra em que se incuba a transformação da alma da humanidade.

Natália Correia
Lisboa, 28 de outubro de 1992.

«O livro é como um rio. Tem a sua nascente e a sua foz. E assim como o rio se mistura na vastidão oceânica, funde-se o livro na massa do saber universal. A sua nascente é o autor. A foz, o leitor

Alocução proferida por Natália Correia, na inauguração da Livraria Nove Estrelas,
em Ponta Delgada, em 7.12.1981, dirigida por José de Almeida.

RETRATO DE NATÁLIA


 

 Hierática     cromática     socrática
 passas branca de neve pela sala
 nebulosa da pele     via láctea
 do único percurso que nos falta.

 No teu andar há ventres há tecidos
 de leve lã      circuitos do brocado
 duma seda tecida na manhã
 dos raios dos teus olhos deslumbrados.

 Nos teus quadris há cisnes há pescoços
 de virgens degoladas     há indícios
 do alabastro quente dos teus ossos
 iluminando claros precipícios.

 É isso. Uma vestal iluminada
 uma deusa rangendo uma secreta
 porta barroca aberta para o nada
 que é o docel da cama do poeta

 Ali deitas crianças      animais
 gemidos e maçãs      vagidos e atletas
 pois que amas as coisas naturais
 com a tua carne impúbere e erecta.

 Porém tu acalentas      tu alentas
 nossa senhora lenta      mãe do escândalo
 ave de carne      lírio de placenta
 com aroma de nardos e de sândalo.

 Desinfectante e amante eis que transformas
 em teus olhos de cânfora as orgias
 e o teu corpo ânfora é a forma
 em que a lira da noite vaza o dia.

               José Carlos Ary dos Santos, Fotos-Grafias, 1970.
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