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segunda-feira, 29 de março de 2021

MULHER

A mulher não é só casa

mulher-loiça, mulher-cama

ela é também mulher-asa,
mulher-força, mulher-chama

E é preciso dizer
dessa antiga condição
a mulher soube trazer
a cabeça e o coração

Trouxe a fábrica ao seu lar
e ordenado à cozinha
e impôs a trabalhar
a razão que sempre tinha

Trabalho não só de parto
mas também de construção
para um filho crescer farto
para um filho crescer são

A posse vai-se acabar
no tempo da liberdade
o que importa é saber estar
juntos em pé de igualdade

Desde que as coisas se tornem
naquilo que a gente quer
é igual dizer meu homem
ou dizer minha mulher

ARY DOS SANTOS

quarta-feira, 3 de março de 2021

RETRATO DE AMÁLIA



És filha de Camões filha de Inês
assassinada voz de portuguesa
cantando a nossa imensa pequenez
com laranjas e gomos de tristeza.

É no claro Mondego dos teus olhos
que se debruça o mal da nossa mágoa.
Ao Tejo dos teus gestos que se acolhe
o nosso coração a pulsar água.

Falando desatada de saudade
choras um povo cantas a balada
mais bonita que soa na cidade
de Lisboa por ti apaixonada.

do disco Com Que Voz, 1970

sábado, 2 de janeiro de 2021

CANÇÃO DE MADRUGAR - CARLOS DO CARMO ( ALBÚM "CANOAS DO TEJO" 1972)


De linho te vesti
De nardos te enfeitei
Amor que nunca vi
Mas sei…

Sei dos teus olhos acesos na noite
Sinais de bem despertar
Sei dos teus braços abertos a todos
Que morrem devagar
Sei meu amor inventado que um dia
Teu corpo pode acender
Uma fogueira de sol e de fúria
Que nos verá nascer

Irei beber em ti
O vinho que pisei
O fel do que sofri
E dei… dei…

Dei do meu corpo o chicote de força
Rasei meus olhos com água
Dei do meu sangue uma espada de raiva
E uma lança de mágoa
Dei do meu sonho uma corda de insónias
Cravei meus braços com setas
Descobri rosas alarguei cidades
E construí poetas

E nunca, nunca te encontrei
Na estrada do que fiz
Amor que não lucrei
Mas quis… quis…

Sei meu amor inventado que um dia
Teu corpo há-de acender
Uma fogueira de sol e de fúria
Que nos verá nascer

Então nem choros, nem medos, nem uivos, nem gritos, nem…
pedras, nem facas, nem fomes, nem secas, nem…
feras, nem ferros, nem farpas, nem farsas, nem…
forcas, nem cardos, nem dardos, nem guerras, nem…
choros, nem medos, nem uivos, nem gritos, nem…
pedras, nem facas, nem fomes, nem secas, nem…
feras, nem ferros, nem farpas, nem farsas, nem mal…

Letra: Ary dos Santos
Música: Nuno Nazareth Fernandes

Carlos do Carmo : Fado dos azulejos

 Azulejos da cidade,

numa parede ou num banco,
são ladrilhas da saudade
vestida de azul e branco.

Bocados da minha vida,
todos vidrados de mágoa,
azulejos, despedida
dos meus olhos, rasos de água.

À flor dum azulejo, uma menina;
do outro, um cão que ladra e um pastor.
Ai, moldura pequenina,
que és a banda desenhada
nas paredes do amor.

Azulejos desbotados
por quanto viram chorar.
Azulejos tão cansados
por quantos vira m passar.

Podem dizer-vos que não,
podem querer-vos maltratar:
de dentro do coração
ninguém vos pode arrancar.

À flor dum azulejo, um passarinho,
um cravo e um cavalo de brincar;
um coração com um espinho,
uma flor de azevinho
e uma cor azul luar.

À flor do azulejo, a cor do Tejo
e um barco antigo, ainda por largar.
Distância que já não vejo,
e enche Lisboa de infância,
e enche Lisboa de mar.

 Letra: Ary dos Santos

sábado, 2 de novembro de 2019

38.


Tendo chegado ao fim da rua, vês de longe
que o princípio da rua não existe. O que tu vês
não é calçada ou casa, sequer esquina,
o que tu vês não é alegre ou triste,
o que tu vês arrasa os próprios olhos
porque os vês vazios.


E apenas há quem julgue que chegaste
porque pesas um peso que soltaste
pelo caminho por onde nunca andaste.

Pedro Tamen. Guião de Caronte. Quetzal Editores. Poesia. Lisboa, 1997., p. 47

''nenúfares de neve''

''jardim de amendoeiras''


«Nasça um soluço de cor
uma sílaba de pedra.
Nasça uma aresta de vidro
nítida   lúcida    certa.»


José Carlos Ary dos Santos. Tempo da Lenda das Amendoeiras. Lisboa, Julho de 196

''luas danadas''


José Carlos Ary dos Santos. Tempo da Lenda das Amendoeiras. Lisboa, Julho de 1964

« desfolhando sete lírios
dentro de um copo de vento»


José Carlos Ary dos Santos. Tempo da Lenda das Amendoeiras. Lisboa, Julho de 1964
A BRUXA

Com sete lagartos mortos
sete vasilhas de enxofre
sete lacraus     sete corvos
sete anéis de pedra negra
sete cabras sem pescoço
sete bacias de sangue
sete agulhas de veneno
sete gatos       sete figas
sete cruzes     sete salgas
sete luas          sete rezas
sete fogos para as almas
sete candeias acesas
em sete torcidas de algas.

José Carlos Ary dos Santos. Tempo da Lenda das Amendoeiras. Lisboa, Julho de 1964

''O mar vestiu-se de chuva''


José Carlos Ary dos Santos. Tempo da Lenda das Amendoeiras. Lisboa, Julho de 1964

« ai degraus da minha angústia
numa escadaria de água.»

José Carlos Ary dos Santos. Tempo da Lenda das Amendoeiras. Lisboa, Julho de 1964

''onde o amor e a dor
são tempos do mesmo instante.''


José Carlos Ary dos Santos. Tempo da Lenda das Amendoeiras. Lisboa, Julho de 1964

''terra de festas de sangue''


José Carlos Ary dos Santos. Tempo da Lenda das Amendoeiras. Lisboa, Julho de 1964

'' terra de cravos de carne''


José Carlos Ary dos Santos. Tempo da Lenda das Amendoeiras. Lisboa, Julho de 1964.
(...)

« boca de rosa de estio
vermelha, porém pequena.»

José Carlos Ary dos Santos. Tempo da Lenda das Amendoeiras. Lisboa, Julho de 1964

domingo, 24 de fevereiro de 2019

A Cidade


A cidade é um chão de palavras pisadas
A palavra criança a palavra segredo.
A cidade é um céu de palavras paradas
A palavra distância e a palavra medo

A cidade é um saco um pulmão que respira
Pela palavra água pela palavra brisa
A cidade é um poro um corpo que transpira
Pela palavra sangue pela palavra ira

A cidade tem praças de palavras abertas
Como estátuas mandadas apear
A cidade tem ruas de palavras desertas
Como jardins mandados arrancar

A palavra sarcasmo é uma rosa rubra.
A palavra silêncio é uma rosa chá
Não há céu de palavras que a cidade não cubra
Não há rua de sons que a palavra não corra
À procura da sombra de uma luz que não há

A Cidade (LP Contos velhos rumos novos(Letra de Ary dos Santos), 1969)

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

RETRATO DE NATÁLIA


 

 Hierática     cromática     socrática
 passas branca de neve pela sala
 nebulosa da pele     via láctea
 do único percurso que nos falta.

 No teu andar há ventres há tecidos
 de leve lã      circuitos do brocado
 duma seda tecida na manhã
 dos raios dos teus olhos deslumbrados.

 Nos teus quadris há cisnes há pescoços
 de virgens degoladas     há indícios
 do alabastro quente dos teus ossos
 iluminando claros precipícios.

 É isso. Uma vestal iluminada
 uma deusa rangendo uma secreta
 porta barroca aberta para o nada
 que é o docel da cama do poeta

 Ali deitas crianças      animais
 gemidos e maçãs      vagidos e atletas
 pois que amas as coisas naturais
 com a tua carne impúbere e erecta.

 Porém tu acalentas      tu alentas
 nossa senhora lenta      mãe do escândalo
 ave de carne      lírio de placenta
 com aroma de nardos e de sândalo.

 Desinfectante e amante eis que transformas
 em teus olhos de cânfora as orgias
 e o teu corpo ânfora é a forma
 em que a lira da noite vaza o dia.

               José Carlos Ary dos Santos, Fotos-Grafias, 1970.
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