sábado, 17 de maio de 2014

PAGELA DA IRMÃ MARIA
   DO DIVINO CORAÇÃO

Fixe os 4 pontos que se vêem na imagem
e conte até 20 sem desviar o olhar,
diante duma parede branca.

Feche os olhos e abra-os imediatamente.

Verá aparecer na parede a Miraculosa
Irmã Maria do Divino Coração,
Escrava do Senhor.

                                   (Proibida a reprodução)

José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 105

quarta-feira, 14 de maio de 2014

palavras labiosas


"Não penses nas coisas que foram e passaram,
meditar no passado aviva o sofrimento.
Não penses no que vai acontecer,...
meditar no futuro enche-te de incerteza.
Melhor, de dia, sentado na cadeira como um saco,
de noite, deitado no leito como uma pedra.
Quando a comida chega, abre a boca,
quando o sono vem, fecha os olhos.
Estas as coisas úteis ao teu corpo,
quanto ao subir e descer,
vida breve ou vida longa,
não penses, deixa tudo ao acaso.
Eu tenho ainda um luxo,
quando meu espírito se agita,
canto uma canção louca
sobre uma taça de vinho."



Bai Juyi. Poemas

brita-ossos

o preço da persistência

chavascal

«Sentia em si paz e brandura, tal como das vezes em que, depois de um ano inteiro de fome angustiada, acaba de possuir uma mulher.»


Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 100

ferroar

  «Loas respondeu-lhe com um olhar estranhamente suave. Olhar sem animosidade e sem compaixão: liso como um lago nas madrugadas de Estio.»


Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 100

« Ninguém poderia suspeitar a tempestade que, no seu íntimo, o ia transformar noutro homem.»


Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 99

terça-feira, 13 de maio de 2014

«Se vives, Péricles, tens um coração que deve estalar de dor


William Shakespeare. Péricles, Príncipe de Tiro. Lello&Irmão, Editores Porto, 1976., p 93

SIMÓNIDES

  «Oh! como sois peremptória, senhora! (À parte.) Do coração o estimo. - Eu vos amansarei; eu vos farei ser obediente.»

William Shakespeare. Péricles, Príncipe de Tiro. Lello&Irmão, Editores Porto, 1976., p 76

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Wassily Kandinsky, Tanzkurven Zu den Tänzen der Palucca, Das Kunstblatt, Potsdam, vol. 10, no. 3 (1926)


terreola

    «O Vieirinha reflectia profundamente nos acontecimentos e apetecia-lhe chorar. Não um choro íntimo, discreto, de sóbria mas contrita penitência - mas um choro por assim dizer de exortação.»
 
 
Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 85
TAMBORES NA NOITE #2

"Vivo,na verdade, em tempos sombrios.
É insensata a palavra ingénua. Uma fronte lisa
revela insensibilidade. Aquele que ri...
é porque ainda não recebeu a notícia terrível.

Que tempos estes
em que falar sobre uma árvore é quase um crime
porque equivale a cantar tantas perfídeas!
Esse homem que vai tranquilamente pela rua,
conseguirão os amigos encontrá-lo
quando precisarem?

É verdade que ainda ganho a vida
Mas, creiam, é pura casualidade. Nada
do que faço me dá direito a fartar-me.
Libertei-me por acaso. (Estaria perdido se a sorte se me acabasse).
Dizem-me:«Come e bebe! Goza o que tens!»
Mas como posso comer e beber
se estou a roubar ao faminto aquilo que como
e o meu copo de água faz falta ao sedento?
E mesmo assim, como e bebo.

Gostaria de ser também sábio.
Os velhos livros explicam a sabedoria:
fugir das lutas do mundo e deixar passar
sem inquietação o nosso curto tempo.

Libertar-se da violência,
responder ao mal com o bem,
não satisfazer os desejos e até
esquecê-los; é essa a sabedoria.
Mas não posso fazer nada disto;
vivo na verdade em tempos sombrios."


Bertolt Brecht
. "Poesia, Textos, Teatro"

Antiqua Venezia


sedição

nome feminino

levantamento popular; motim; rebelião

(Do latim seditiōne-, «idem»)
«César, os que vão morrer saúdam-te.»


Latour Saint-Ybars. Nero. Edição Amigos do Livro, Lisboa., p. 28

domingo, 11 de maio de 2014

«(...) não fez mais do que atravessar uma casa estranha sem prender o coração nem o espírito. O lar doméstico não teve para ela senão aborrecimentos (...)»


Latour Saint-Ybars. Nero. Edição Amigos do Livro, Lisboa., p. 23
«Há os que se divertem a ver um peixe vivo colocado sobre o fogo num vaso de cristal, a debater-se na água até morrer.»



Latour Saint-Ybars. Nero. Edição Amigos do Livro, Lisboa., p. 17
«Rodeiam o amo de cuidados assíduos e de atenções incessantes, que o dispensam de toda e qualquer preocupação do menor esforço. Transportam-no, alimentam-no, deitam-no como a uma criança. Os seus desejos são adivinhados, os seus prazeres são preparados, perde o hábito de pensar e de querer.»


Latour Saint-Ybars. Nero. Edição Amigos do Livro, Lisboa., p. 15
Avancei penosa e desequilibradamente em di-
recção ao termo desse trágico funeral.

                                                   Ch. Nodier - Smarra.

Pieta (2014)


«(...) para os homens as dádivas das mulheres são imprudência.»

William Shakespeare. Péricles, Príncipe de Tiro. Lello&Irmão, Editores Porto, 1976., p 63
SIMÓNIDES

   «O que quer dizer que a beleza tem poder e vontade: tanto pode inflamar como matar.»


William Shakespeare. Péricles, Príncipe de Tiro. Lello&Irmão, Editores Porto, 1976., p 56
«Assim como as jóias perdem o brilho quando desprezadas, assim os príncipes perdem a fama quando não impõem respeito.»


William Shakespeare. Péricles, Príncipe de Tiro. Lello&Irmão, Editores Porto, 1976., p 54

PÉRICLES
 
   «Eu trato de esquecer o que fui, mas o que sou força-me a pensar em mim. Estou transido de frio; tenho as veias geladas, e da vida só me resta o alento suficiente para vos pedir auxílio; se mo recusais, rogo-vos que, em atenção a eu ser homem, me enterreis quando tiver morrido.»


William Shakespeare. Péricles, Príncipe de Tiro. Lello&Irmão, Editores Porto, 1976., p 46

sonho traído

margaça


carne prostituída

«A brancura da sua pele parecia uma mancha de luar no negrume do vestido.»


Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 75
«O dinheiro compra a mulher, mas não a prende a nós, percebeste tu? Não compra a simpatia.»


Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 65

quarta-feira, 30 de abril de 2014


DA POSSIBILIDADE POÉTICA


"O poema da mente no acto de encontrar
Quanto baste. Nem sempre teve
Que encontrar:a cena estava montada, repetia o que
Estava no guião.
Então o teatro foi mudado
Para outra coisa. Seu passado era uma lembrança.
Ele tem que estar vivo,que aprender o discurso do sítio.
Tem que enfrentar os homens do tempo e encontrar-se com
As mulheres do tempo. Tem que pensar sobre a guerra
E tem que encontrar quanto baste. Tem
Que construir um novo palco. Tem que estar nesse palco
E,como um actor insaciável, vagarosamente e
Com meditação, dizer palavras que ao ouvido,
Ao mais delicado ouvido da mente, repitam,
Exactamente, o que ele quer ouvir, ao som
Das quais, uma audiência invisível escuta,
Não a peça, mas a si mesma, expressa
Numa emoção como de duas pessoas,como de duas
Emoções a tornarem-se uma. O actor é
Um metafísico no escuro,tangendo
Um instrumento, tangendo uma corda de metal que dá
Sons a passarem por súbitas exactidões,na totalidade
A conter a mente, abaixo da qual não pode descer,
Além da qual não quer elevar-se.
Deve
Ser o encontrar uma satisfação, e pode
Ser de um homem patinando, uma mulher dançando,
uma mulher
Penteando-se. O poema do acto da mente."
-"Ficção Suprema"
- Wallace Stevens

terça-feira, 29 de abril de 2014

We don’t forget, but something vacant settles in us.
― Barthes

Como a “sombra que uma criança persegue com a vela”, na sua escrita Rui Nunes atingiu o limite do horror, iluminando o seu mecanismo de absurdos. Diogo Vaz Pinto entrevista o autor, que, ao reclamar a vulnerabilidade da pobreza como condição para o homem estreitar a sua relação com a realidade, encerra a sua obra como um dos exemplos mais notáveis de uma literatura actuante. António Pedro Santos fotografou o escritor que o grande público não soube reclamar

Rui Nunes (Lisboa, 1947) começou a publicar em 1968 e, com mais de 20 títulos de um género inclassificável editados, hoje admite que não escreverá mais, não apenas porque a progressiva cegueira que o afecta há vários anos já não o deixa, mas também por sentir que alcançou um momento final. Referência de um público minoritário, na sua clandestinidade esta obra alcançou um prestígio enorme. "Armadilha" e "Uma Viagem no Outono" saíram recentemente na Relógio D'Água - o último, numa edição limitada a 150 exemplares, só pode ser adquirido por encomenda directa à editora.

De livro para livro, há na sua escrita uma apropriação da linguagem que supera toda a ficção: uma mesma visão, um negrume...
Esse negrume, para mim, é mais uma revelação de intimidade com a morte das coisas. E com a pobreza das coisas. A humildade dos próprios objectos: isso fascina-me. Está muito ligado ao meu mundo, a um mundo que não foi fácil, desde criança. O contacto com a morte e com a doença, com as dificuldades e com a violência, foi-me construindo uma relação com a realidade que não se deixava seduzir pela sua aparência mais benigna. Por outro lado, fui-me apercebendo lentamente de que a língua, que qualquer linguagem, especialmente na sua articulação, manifesta poder. E há em mim uma grande repugnância pelo poder, por qualquer forma de poder. O poder dos sentimentos, o poder sobre o outro. Ora esse poder manifesta-se na linguagem, na chamada fluência - em que as palavras se procuram e se encontram umas às outras, independentemente daquele que fala.
Neste último livro ("Armadilha") refere isso ao falar no modo como as pessoas tendem a ouvir os políticos e a sentir que por ouvi-los falar bem estes sabem do que falam.
Que há verdade naquilo. E há certeza. É exactamente isso, a fluência: parecer que um discurso, quando se produz com alguma rapidez, prova alguma coisa. E é exactamente isso o que sempre me perturbou. Porque as palavras têm uma carga de malignidade tão grande que quando se procuram fazem-no para deter poder. E ultrapassam aquilo que nós pretendemos dizer. Daí uma espécie de vigilância ou de suspeita em relação à palavra e em relação ao discurso.
Há vários livros seus - lembro-me, por exemplo, de "A Boca na Cinza" - em que a sua linguagem, a violência a que propositadamente a sujeita, parece uma forma de se tornar a si e a quem o lê muito consciente dessa fluência.
A minha suspeição em relação ao poder da linguagem sempre me levou a um determinado tipo de escrita. Não necessariamente de forma consciente, mas é assim porque a suspeita existe. Ela existe e organiza a minha linguagem. É pela crueza da linguagem que a verdade mais simples se manifesta. E a crueza pode estar no palavrão, mas também pode estar na desarticulação sintáctica. E é interessante ver que as pessoas não reagem mal às alterações morfológicas, muitas vezes nem sequer às sintácticas. Aquilo a que reagem mal é à pontuação. Aliás, foi uma descoberta tardia minha. Ouvia as pessoas dizer: "Ai, aquelas vírgulas estão mal postas!" Por exemplo, em relação ao Saramago. Eu gosto do Saramago. Gostava dele como pessoa e gosto do que escreveu, embora não tenha muito a ver com a minha escrita. Mas a vírgula, aquela paragem, aquele cortar o fôlego, aquele sopro que se quer prolongar e não consegue, isso é que é terrífico na escrita. E é por aí que se introduz a violência.

Pensa que as pessoas se submetem à linguagem e a um conjunto de ideias que não conseguem dominar totalmente e que portanto acabam por ser súbditas no seu uso?
Quando leio um grande livro tenho um medo terrífico do que vem a seguir. Porque um belo livro pode ser uma bela perdição para quem o escreveu, e esse é sempre o meu medo: que um belo livro se transforme numa bela perdição. Isto é, lê-se um modelo do qual a pessoa já não consegue sair. E penso que isso é uma das coisas terríficas na literatura portuguesa. As pessoas submetem-se rapidamente a um modelo e sentem-se bem nele. E quando nos sentimos bem na linguagem que produzimos, no próprio discurso que produzimos, isso só significa para mim que estamos numa gaiola. Pressinto que um dos problemas da literatura portuguesa é exactamente esse. O talento que muitas vezes encerra a pessoa na sua própria gaiola.
Foi viver para a Áustria, numa zona muito isolada. Porque procurou esse isolamento?
Foi natural. Quer dizer: o isolamento está ligado a um certo desgosto do mundo. Não sou religioso, se fosse teria ido para um convento, possivelmente. Há em mim essa necessidade. O encontro comigo mesmo dá-se no silêncio, e é mesmo um silêncio absoluto. Há uns tempos, durante uma semana, tive o cuidado de medir o tempo que passava em conversa com os outros e fiquei espantado. Verifiquei que era ainda menos que aquilo que imaginava.

O desgosto na sua relação com os outros estava ligado a uma desilusão daquilo que o Rui esperava, daquilo que em si criou e que por isso esperava encontrar no outro?
É difícil dizer. É tudo. Mas em criança eu já era assim. Tinha fases em que era extremamente endiabrado e depois tinha fases em que me isolava absolutamente. Era capaz de passar horas na praia a olhar para o mar sem ninguém por perto. Oscilava entre uma situação e outra. Hoje tenho esta necessidade absoluta de silêncio, e por isso não gosto de estar em Portugal.
Mas pela relação com os portugueses?
Não. Para já, não tenho nada desse sentimento do patriota. Não gosto dos ícones da pátria, não gosto de pátrias, fronteiras e hinos. Mas o problema é o ruído. Estou sempre a ouvir gente. Estamos aqui e estamos a ouvir gente. As casas parecem-me todas de papel. Os ruídos atravessam as casas. Não há um minuto de silêncio. Chego a Viena e sinto-me em casa, tenho uma espécie de felicidade do reencontro. Não é com a casa, é com o silêncio.

Isso serena-o ou liberta-o para pensar?
Permite-me ficar mais próximo de mim. É o silêncio dos ruídos naturais. Tudo é natural, é evidente, mas eu gosto do ruído do vento, da chuva, da neve a bater. Gosto das gralhas, gosto de ouvir esses ruídos. É um lugar-comum, mas são esses ruídos o grande silêncio. Isso aqui não tenho. E depois há pouca sobriedade nas palavras, as pessoas falam desesperadamente.

Há a sensação de que o estado de solidão é um estado dramático em que uma pessoa cai quando fracassa e então esse desespero pode surgir por as pessoas sentirem que devem falar, que se uma pessoa estiver bem é comunicadora?
Exacto, é isso. E não interessa o que a pessoa diz, é preciso é dizer. É a fala contínua. E quem não diz continuamente é suspeito. Quantas vezes se ouve: "Porque é que estás calado?" Eu não preciso de justificar-me por estar a falar, mas preciso de justificar porque estou calado. "Estás tão calado!" E eu digo sempre: "E tu, porque é que estás a falar tanto?" Aquilo que se pretende é que o discurso da pessoa seja uma confissão contínua. "Fala porque ao falar mostras-te. Porque ao falar tornas-te claro. Não sejas obscuro."
Há um poeta que reclama isso na sua obra. "Meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro." Herberto Hélder reclama essa condição, mas se nele ela surge algo deslumbrada ou fascinada, o Rui, se primeiro reclama a obscuridade, também avisa o leitor: "Cuidado com esta ciência e com este poder que eu exerço." Ou seja, não parece entrar de livre vontade no canto. Nunca pretende cantar...
Está a tocar num ponto absolutamente essencial da minha escrita. Gosto muito da escrita do Herberto Hélder. Mas no Herberto existe o fascínio da linguagem, em mim não existe. A linguagem não me fascina. Tudo aquilo que eu sou está de certo modo aí, e eu estou condenado a ela [à linguagem], mas ela não exerce nenhum tipo de fascínio sobre mim.

Num verso, Sá de Bandeira diz: "m'espanto às vezes, outras m'avergonho." Parece que na relação das pessoas com a poesia herbertiana há sobretudo o espanto, enquanto na sua a vergonha é o sentimento mais forte. Até porque a obra do Rui é muitas vezes dimensionada por uma reflexão sobre aquilo que foi a violência exercida sobre o homem no século xx, como o Holocausto. Num período em que parece ser muito fácil descartar o passado, e em que se pensa que um passado longínquo é algo que sucedeu há 50 anos, ao passo que antigamente uma coisa de há 50 anos era ontem... Acredita que a vergonha se tornou hoje a grande lição que um homem humilde pode dar a si neste tempo?
A vergonha é a expressão da própria consciência. Algum passado está a desaparecer. Como o passado se aproximou muito do presente, parece que é dominado pelo presente ainda, e que eu no presente, de certo modo, consigo controlar esse passado, porque nós verificamos que o passado, por exemplo para os políticos, é um passado próximo, está ali mesmo na fronteira do presente. E esquecem que o passado que os move está bem mais longe. O Holocausto, o inominável da situação, ainda hoje nos move sem nós sabermos. Desde miúdo que convivi com pessoas que viveram essa situação. Algumas já morreram, mas durante 30 e tal anos, quase 40, convivi com pessoas que estiveram num campo de concentração, cujos irmãos e pais tinham morrido num campo de concentração. E vi como isso opera e como é que cala. A linguagem não chega para dizer as coisas.

A sua obra parece trilhar um caminho de confrontação, a diferença entre um silêncio que ainda vive e um silêncio que já morreu. O que é a morte?
Não é nada. Eu vi morrer a minha família quase toda. Às vezes chego a dizer que desde que nasci a minha família não fez outra coisa. A morte é banal. Só houve uma morte realmente perturbadora, a primeira morte. Para mim, a primeira foi perturbadora. Depois é a banalidade, no sentido em que a Hannah Arendt classificava o mal do Eichmann. Para já, a morte são as coisas mortas. E é impressionante a semelhança que existe para mim entre um homem morto e um bicho morto. Não consigo estabelecer a dignidade da morte do homem. É a mesma que na morte de um melro. Um ser morto é isso, e não há muito mais a dizer sobre ele. Mas isso também está ligado à minha ausência de crença. Eu bem gostaria de ser crente. A minha morte não vai ser diferente das mortes dos bichos todos, que morrem porque é essa a pobreza que nos espera. Não há, para mim, nenhum Deus que nos absolva, que redima, que me dê o que quer que seja.

A forma como as pessoas se entregam à crença - às tantas elevada quase a uma ciência, e debatida - com tantas a quererem enquadrar uma mesma crença... Pensa que isso as desresponsabiliza?
Desresponsabiliza, completamente. Eu sinto que no meu caso específico a ausência de crença, a impossibilidade que existe em mim de aderir ao ritual gera uma responsabilidade imensa em relação ao outro. Porque não há mais nada senão eu em relação ao outro e ele em relação a mim. Não há outra esperança, e isto é uma banalidade mas é uma belíssima banalidade: não há uma esperança senão no outro.

Acredita que pode haver uma transposição deste fenómeno mais pessoal ou convivencial para uma regra de âmbito político?
A política, no sentido mais amplo, entrou muito cedo na minha vida. E para mim nunca foi nem um drama nem um problema, como nunca houve uma opção. Eu estava lá, e sei porque é que estava lá. Por aquilo que lhe disse anteriormente: uma sensação de que todos nós somos responsáveis por todos os outros. E por um sentimento muito forte da fragilidade e da pobreza. Aquilo que lhe vou dizer é certamente uma vulgaridade, mas é assim mesmo e em política é isso que interessa. Às vezes perguntam-me: "Porque é que votas no Partido Comunista?" Eu sou do PCP, sou militante. E depois vêm-me com uma quantidade enorme de teorias... Eu conheço-as, quer dizer, estudei-as, mas não é isso. O que me interessa é a acção. No plano político, para mim, é tudo de uma simplicidade muito grande. É evidente que existe um discurso que o suporta. E como não gosto de fronteiras, é de certo modo o internacionalismo que funciona para mim, é a condição das próprias pessoas, e esta não tem fronteiras. A condição do trabalhador africano não é muito diferente da condição do trabalhador grego ou norte--americano. É a condição que me perturba. Depois posso discutir as teorias, mas não é isso que me move. Isso apenas justifica a posteriori as nossas próprias opções. E as opções políticas são sempre opções biológicas, no fundo.

Acompanha aquilo que os novos autores portugueses vão publicando?
Quando gosto deles, leio tudo. Ou lia. Sente-se pela forma como a linguagem se organiza se estamos perante uma escrita livre, uma escrita genuína, ou não. E quando encontro a genuinidade sinto- -me fascinado.
E ao longo dos anos sentiu algum tipo de evolução nos autores portugueses?
Na poesia, sim. É difícil falar em evolução, mas senti que apareceram belíssimos poetas. Na prosa não. A poesia sempre foi, e felizmente que foi, a parente pobre. É essa pobreza que lhe dá a dignidade toda.

Debate-se hoje o problema da ficção portuguesa actual não se dimensionar a si mesma, mas ser pré-embalada com o selo do circuito internacional de distribuição. Os autores identificam-se menos e exercem menos a cultura do lugar a partir do qual escrevem?
Aquilo que me perturba é ler textos e perceber que, desde a escolha das palavras, há autores que revelam ignorância da realidade. Há ali uma falsidade total, porque as palavras nomeiam coisas, mas essas coisas não se presentificam por nos referirmos a elas. São abstracções. O exemplo do tipo que descreve como ouviu as cigarras à noite só diz que nunca foi ao campo. E disso há muito na literatura portuguesa. Há coisas assim, espantosas. A verdadeira escrita começa sempre por algo de esplendoroso. A verdade começa sempre por algo de muito pessoal, e a verdadeira escrita conta aquilo que sabe, que viu e viveu. Esse é o princípio.

E esta nova ficção...
Nasceu velha, continua velha e vai morrer velha. Reduz-se à historieta. Mas esta literatura sempre existiu. Era chamada literatura de cordel, os folhetins dos jornais. Só que não se confundia com a outra literatura. O que acontece é que lhe foi dada uma dignidade que não tem.
A crítica perdeu a capacidade de perceber a diferença entre literatura e entretenimento?
É a ideia de tempo e de trabalho. Para ler um livro, não uma coisa qualquer, é preciso tempo, e dá trabalho. O leitor tem de entrar num mundo que não conhece. O que acontece é que muitos dos críticos impõem àquilo que lêem um esquema prévio e não buscam o que há ali de novo. Aquilo que não está de acordo com o esquema que já trazem não serve. Não têm a inocência da abordagem, e é preciso essa inocência. Nós vivemos confrontados com uma linguagem que esqueceu uma quantidade enorme de nomes. Lembro-me que antes de ter deixado de dar aulas [de Filosofia] deixou de se falar em bibliotecas e começou a ouvir-se falar em centros de recursos. Agora já não há cegos, há deficientes visuais. Já não há surdos, há deficientes auditivos.

Essa forma de suavizar a linguagem, de lhe fazer perder propriedades, surge porque se entende que há um certa violência em chamar a alguém cego ou surdo?
Mas porquê? Onde é que está a violência? Cego não acarreta nenhuma deficiência, é um estado. Eu sou cego do mesmo modo que tenho um metro e setenta e cinco. Mas se sou deficiente visual falta-me alguma coisa. Isso é que é agressivo.
O que é que a suspeita introduz que lhe parece que a tornou tão estruturante na forma como vivemos em comunidade?
A suspeita introduz no outro o medo de ser. E ao mesmo tempo introduz uma espécie de claridade maligna sobre o outro. Voltamos à expressão "deficiente visual" contra "cego". Quando se afasta o cego e se coloca o deficiente visual, ilumina-se de uma maneira impiedosa o outro. É uma espécie de maldade. E se eu disser: sou cego (ainda não sou, mas para lá caminho), qual é o problema? Mas se disser que sou deficiente há uma menorização do meu próprio estatuto como pessoa. As palavras, mais uma vez, estão carregadas de malignidade.

Na sua escrita há um exercício muito hábil de traduzir pela linguagem uma relação física com o mundo.
Aquilo que me fascina na linguagem é a possibilidade que há de a tornar física, é a fisicalidade que é possível retirar da linguagem. Nos nomes que temos esquecido encontra-se muitas vezes essa capacidade de fisicalizar a linguagem. Isto está muito ligado ao olhar. Se vejo um animal morto, aquilo que vejo é uma transparência - vêem-se os ossos debaixo da pele como se fosse o desenho do próprio ser, e como se fosse o futuro desse ser. É essa transparência que só o olhar encontra. É interessante porque eu vejo muito mal e sempre vi mal, e no entanto olhar é para mim a coisa mais fascinante, porque o mundo só pelos olhos é que me entra. A minha escrita nasce de uma percepção. Posso dar exemplo do livro sobre os anões, "A Boca na Cinza". Uma vez estava em Aveiro, entre amigos, a jantar, e vi um casal na mesa do lado (na altura ainda via alguma coisa), reparei que a rapariga afastou o cigarro da boca e senti que havia qualquer coisa de estranho. Eram dois anões, os donos do restaurante, estavam ali a jantar e tinham uma quantidade de listas telefónicas sobre as cadeiras. Ela e o irmão, pensei. Muito bonita, ela: um cabelo lindíssimo. Quando acabaram de jantar vieram dois empregados e carregaram-nos ao colo para fora do restaurante. Foi desse episódio que depois nasceu o livro. Vivo fascinado pela realidade.

Como é que se relaciona com os seus livros depois de os publicar?
Geralmente não lhes volto a pegar.

O Rui está longe de ser um dos autores portugueses mais divulgados ou traduzidos.
Nunca fui traduzido. Aliás, só para croata. E um conto na Alemanha.
Aquilo a que se chama literatura parece andar atrás do que deixa as pessoas entusiasmadas...
As pessoas querem um passatempo. Esse tipo de passatempo a minha escrita não fornece. Qualquer escrita que resista a essa apropriação imediata está condenada a viver à margem.
Causa-lhe alguma perplexidade isto?
Ela até poderia ser traduzida e depois não a lerem, que é o mais natural. Só me causa perplexidade que nem sequer exista essa tentativa. Mas não é coisa que me preocupe muito.

Considera-se um dos nossos escritores mais portugueses?
Sim. Eu que não sou nacionalista, digo- -lhe que sim. Não é que a minha pátria seja a língua portuguesa, mas é este enraizamento (infelizmente, para mim) aqui. E é isso que está sempre a emergir.

A sua escrita surge porque o Rui se incomoda, o mundo incomoda-o, a linguagem incomoda-o. Imagino que não pense no seu leitor, mas para si não faz sequer sentido vir para a literatura se não se põe como princípio incomodar-se?
Acho que a pessoa que não se incomoda não escreve, não pinta, não faz nada.

Mas pode ler e apreciar uma obra de arte?
Pode, se deixar que a incomodidade o apanhe. Se não se quiser incomodar não vai tirar um gosto disso. Penso que um dos grandes problemas foi que não se acrescentou a participação à compreensão que se faz do mundo. Não basta compreender o terror, é preciso participar dele. É preciso ter medo, não basta compreender o medo. O peso da modernidade ainda é tão forte que o acto de participação está excluído. E então constroem--se teorias e teorias, mas a essas teorias falta uma coisa que é participar. É essa dimensão biológica que falta à compreensão.

ver aqui

segunda-feira, 28 de abril de 2014

RAIN FALLING



"Então vem, vamos juntos os dois,
A noite cai e já se estende pelo céu,
Parece um doente adormecido a éter sobre a mesa;
Vem comigo por certas ruas semi-desertas
Que são refúgio de vozes murmuradas
De noites sem repouso em hóteis baratos de uma noite
E restaurantes com serradura e conchas de ostra:
Ruas que se prolongam como argumento enfadonho
De insidiosa intenção
Que te arrasta àquela questão inevitável...
Oh, não perguntes «Qual será?»
Vem lá comigo fazer a tal visita."

"A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock"
T. S. Eliot 

Vasco Graça Moura, o escritor que não acreditava na inspiração


Vasco Graça Moura fotografado no seu gabinete, no CCB, em 2012
Vasco Graça Moura fotografado no seu gabinete, no CCB, em 2012
Tiago Miranda

"Não acredito na inspiração e vejo na escrita poética, basicamente, um exercício técnico, uma aplicação de capacidades oficinais"
Óscar Lopes viu-o como o caso típico do poeta de larga informação cultural. Ao longo de cinco décadas de labor literário, que serão assinaladas no próximo dia 31 com um colóquio na Universidade Fernando Pessoa, no Porto, VGM, como também gosta de se anunciar, não se cansou de fazer a demonstração prática desse saber raro, esparramado numa longa obra poética, algumas passagens pelo romance, um corpus feito de risco na área da tradução e uma vocação ensaística cultivada com a paixão de quem não teme a polémica. Uma deslocação do poeta à Madeira, associada à greve dos controladores aéreos, obrigou a que a entrevista tivesse de se efetuar com recurso ao correio eletrónico.
Muito antes de atingir estes 50 anos de vida literária, escreveu um "Testamento VGM". O que é que pretendeu?
Eu tinha traduzido havia pouco os "Testamentos" de François Villon, com toda a sua carga lúdica e irónica. Villon começa a falar dos seus trinta anos ("en l'an trentième de mon âge"). Eu tinha acabado de fazer sessenta e isso deu-me o começo, falando "no ano em que sou duplo trintão". Pretendi uma espécie de divertimento sério...
Quais são os cinco momentos mais marcantes desta sua carreira de cinquenta anos?
A publicação do primeiro livro, "Modo Mudando" (1963); depois, "A Sombra das Figuras" (1985); "Uma Carta no Inverno" (1997); a do primeiro romance, "Quatro Últimas Canções" (1987) e a de "Por Detrás da Magnólia" (2004). Pondo as coisas noutros termos: o prémio Pessoa (1995), o grande prémio de poesia da APE (1998); o prémio internacional de Struga (2004); o grande prémio de romance da APE (2204); o Prix Max Jacob étranger (2007).
Carlos Fuentes dizia que nunca teve medos literários. Acompanha-o?
Medo literário, só o de as coisas saírem mal quando as escrevemos. Mas é um medo superável pelo exercício da autocrítica.
Nunca o angustiou o poder atemorizador da folha em branco?
Não tenho medo nenhum da folha em branco. Nunca me angustiou que ela, eventualmente, tivesse de permanecer nesse estado.
Memoriza poemas, seus ou alheios?
Não. Mas houve tempos em que sabia de cor fragmentos mais ou menos longos de Dante, Lorca, Shakespeare...
Quando é que começou a escrever?
Comecei pelos seis anos, sem nenhuma razão especial que não fosse a de gostar de o fazer.
Porque é que cursou direito em vez de Belas Artes?
Direito correspondia a uma tradição familiar (que hoje leva mais de um século). Belas Artes implicava um certo tipo de risco, para que eu me sentia preparado, mas achando que não tinha qualidades que fizessem de mim um artista plástico mesmo bom. Na hesitação, ganhou a hipótese de ter uma vida mais ou menos burguesa e confortável.
Tinha algum herói? Pretendia imitar alguém?
A princípio, os meus heróis eram personagens de ficção: Gonçalo Mendes Ramires e Julien Sorel muito mais do que Fradique Mendes. Mais tarde, o meu herói na aventura intelectual, interdisciplinar e criadora passou a ser Jorge de Sena.
A ficção nunca ocupou um lugar muito proeminente na sua obra, Ainda um dia teremos a sua "Montanha Mágica"?
A ficção começou mais tarde, numa fase da vida em que eu tinha menos tempo para ela e já me dispersava por outras preocupações. Não tenciono escrever a minha "Montanha Mágica". Ainda se eu conseguisse, como stendhaliano impenitente, escrever o meu "Le Rouge et le Noir"... Mas, além de ser precisa a capacidade de o fazer, acontece que eu nunca elaboro programas nem projectos com antecedência.
Qual o lugar da inspiração no seu trabalho poético?
Não acredito na inspiração. Vejo na escrita poética fundamentalmente um exercício técnico, uma aplicação de capacidades oficinais.
Há um intenso pendor metafórico em muita da sua poesia, contrabalançado, como já assinalou, por um lado cada vez mais prosaico. Navega bem nessa aparente contradição?
A dimensão prosaica e a propensão metafórica são usadas segundo aquilo que pretendo dizer e combinam-se sem problema. O Montale falava de uma poesia que tende para a prosa e se detém no limite, antes de lá chegar. Isso acontece-me com alguma frequência, muito embora o lado aparentemente prosaico seja susceptível de uma dicção e de acentuações rítmicas que fazem toda a diferença. Convivo muito bem com essa dualidade, porque ela não implica qualquer espécie de cisão do eu poético. É antes instrumental e criticamente controlada.
O que o atrai no ensaio?
O ensaio é uma maneira de abordar um determinado objecto numa flutuação entre certezas e incertezas, hipóteses, contradições e derivas, obscuridades, intuições e clarificações. O seu encontro está em ser sempre uma forma de problematização e nunca se propor como aquisição definitiva do conhecimento.
Gosta de viajar ao seu próprio passado literário, relendo-se?
Nem por isso. Só me releio em tempos de revisão de provas.
Corrige muito?
Não costumo embevecer-me na contemplação daquilo que escrevi. Não tenho narcisismos de autor. Uma vez escrito, é raro voltar a pegar num texto, a não ser quando se trata de reeditá-lo e não posso baldar-me à correcção das provas. Enquanto escrevo, sim, corrijo muito, mas disso não ficam propriamente vestígios porque o faço quase sempre em computador.
Costuma ler o que escrevem sobre si?
Se se trata de textos críticos que me chegam à mão, claro que sim. Acho importante conhecer a opinião alheia.
Como é que escreve?
Escrevo tudo, mas mesmo tudo, no computador, poesia, ficção, ensaio, traduções, artigos. À mão, na prática, já só sei assinar omeu nome...
Convive bem com as novas tecnologias?
Sinto-me mais ou menos analfabeto. Mas o computador é uma espécie de máquina de escrever qualificada que proporciona uma rapidez e uma eficácia inestimáveis no que respeita às correcções e às montagens.
Tem algum ritual de escrita?
Nenhuma espécie de ritual. Escrevo quando me apetece fazê-lo, em qualquer sítio e a qualquer hora, sem que o que se passa à minha volta me perturbe.
Tiago MirandaVasco Graça Moura fotografado no CCB, em 2012
Sente-se um traidor na sua qualidade de impenitente tradutor?
'Traidor', não é propriamente o termo. Sinto-me um fotógrafo a preto e branco de uma realidade que tem algumas cores. A falta dessas cores não deve prejudicar a reconhecibilidade, nem a manutenção de, pelo menos, algumas das qualidades do original.
Qual foi a mais difícil das suas traduções?
As duas mais difíceis, no plano da poesia, terão sido a "Divina Comédia" e os "Sonetos" de Walter Benjamin; no tocante ao teatro, sem dúvida que foi o "Cyrano de Bergerac", de Edmond Rostand. Mas qualquer das outras traduções que fiz foi bastante difícil. O desafio torna-se estimulante por isso mesmo.
Qual foi o livro traduzido do qual muito lamentou não ser o autor?
Essa é uma pergunta terrível e capciosa, porque eu gostava de ter sido autor em primeira mão de todos os livros que traduzi...
Já traduziu do espanhol, francês, inglês, alemão, latim, italiano. Porque é que ainda não se interessou pelo grego?
Infelizmente não sei grego. Quem me dera! E mesmo no que toca ao latim, sei muito pouco. Traduzi umas 18 odes de Horácio, mas com recurso a muitas ajudas interpretativas.
Hoje, mais do que nunca, faz sentido voltar aos gregos?
Para nós, europeus, os gregos são o princípio de tudo! O problema é que eles agora, no plano político, ameaçam acarretar o fim do mundo em que vivemos.
Fez um grande investimento pessoal na tradução dos grandes clássicos...
Os clássicos são quem melhor nos explica. Os grandes, e os que eu consegui traduzir incluem-se nesse grupo, são marcos da civilização e da cultura europeias. Implicam-nos e explicam-nos, como diria a Sophia.
Tem uma relação de posse em relação à língua?
Não sou dono da língua, mas um entre muitos milhões de possuidores dela.
Porque é que tanto batalha contra o novo Acordo Ortográfico?
O Acordo é uma barbaridade, feita inconsiderada e precipitadamente, mantida por obstinação e teimosia, e conducente a um resultado exactamente oposto ao pretendido.
Não lhe encontra nenhuma virtude?
Encontro duas: a de não estar em vigor e a de não poder ser aplicado, nem sequer tecnicamente.
Não é um exagero afirmar que o AO é "um crime contra a língua portuguesa"?
Para mim, não há exagero nenhum nisso. É um crime e uma torpeza.
Houve escassa reflexão sobre o novo AO por parte dos decisores políticos?
Tão pouca que nenhum desses decisores se atreveu ainda a rebater o fundo dos argumentos que foram apresentados contra ele. Todos se circunscrevem à afirmação de que o AO deve ser aplicado "porque sim" e não passam disso. E hoje não têm coragem de reconhecer o beco sem saída em que se meteram.
Sairemos derrotados com a entrada em vigor do novo AO?
A derrota será a da própria língua portuguesa, na Europa, em África, na América Latina, nas outras partes do mundo.
A seu pedido, não será aplicado o AO nas suas respostas. É uma querela para a eternidade?
É natural que eu pretenda não ver brutalmente desfiguradas as minhas respostas e por isso insisto na ortografia vigente (não a do AO, porque ele não está em vigor). A querela não será para a eternidade, porque a posição tomada em Luanda, na conferência deministros da Educação, há cerca de um mês, vai levar forçosamente à revisão do acordo no sentido que tem sido defendido por todos os que se lhe opõem.
Lê em português do Brasil?
Aprecio desmedidamente um grande número de autores brasileiros. Nunca tive qualquer problema com o português do Brasil. Ninguém tem. É uma variante que enriquece a língua em geral. E não é a questão ortográfica que resolve diferenças importantes que, além da pronúncia, são lexicais e sintácticas.
O que mais gosta de ler?
Actualmente, privilegio textos de história e ensaios sobre temas artísticos e literários.
Lê vários livros ao mesmo tempo?
Tenho sempre uma série deles. Vou lendo, mais ao sabor dos impulsos de momento do que das obrigações. Por exemplo, coisas tão diferentes como "The Age of Anxiety", de W. H. Auden, um estudo sobre a poesia de Nabokov ou a "Correspondência" entre António José Saraiva e Luísa da Costa.
Quem foi o último escritor ou poeta a deixá-lo abismado?
Depois de Dante e Petrarca, acho que o Wordsworth de "The Prelude" me deixará sempre abismado.
Há, na sua vida de leitor, um livro que o marque de forma absoluta?
As "Rimas" de Camões e "O Livro de Cesário Verde" aproximam-se desse resultado.
Quem são os criadores, em qualquer domínio, que mais admira?
Bach e Mozart, Piero della Francesca e Picasso, Homero e Dante, Visconti e William Wyler... tantos outros...
Tiago MirandaVasco Graça Moura era presidente do CCB
Há em si alguma componente religiosa?
Praticamente nenhuma, embora eu tenha tido uma educação católica. Mas há em mim uma sensibilidade a elementos que marcam a nossa maneira de ser e que são de matriz religiosa naquilo em que o mais fundo do ser humano é implicado. Posso arrepiar--me com uma "Paixão" de Bach. Na música e na pintura, pelo menos, é impossível ignorá-los. E na literatura, quando se pensa nas redondilhas camonianas "Sôbolos rios que vão"...
Encontra alguma especial simbologia no facto de estar agora a presidir ao CCB?
É um sítio dos mais belos de Lisboa, pela monumentalidade, pela simbologia, pela paisagem a rasgar-se sobre o rio e pela luminosidade muito especial, a jogar-se entre o manuelino dos Jerónimos e a poderosa austeridade geométrica do Centro Cultural de Belém.Mas omeu imaginário sente-se à vontade em muitos outros territórios.
Consigo teremos um CCB com outras prioridades?
Comigo, espero que tenhamos o CCB possível num período de crise como o actual.
O poeta não se sente constrangido por ver um VGM militantemente apoiante de um Governo tão agarrado à ideia de empobrecimento do país?
Não foi este Governo que inventou o empobrecimento do país. A situação é terrível e Portugal foi empurrado para ela há já alguns anos. Não me considero um militante, mas alguém que tem de reconhecer os factos e a situação catastrófica a que eles levaram e que, por isso, tem de apoiar quem tem a coragem de enfrentá-la, custe o que custar.
O que o fascina em Cavaco Silva para tão continuadamente o apoiar?
Cavaco Silva é um político rigoroso e competente. Não é, nem quis nunca ser, um caudilho arrebatador das massas. É alguém que conhece profundamente a realidade política, económica e social e tem ideias assentes no saber, na experiência e na sensatez.
Foi 10 anos deputado europeu, quando parecia não haver limites para o otimismo europeu. Tudo se esfumou?
Esse optimismo ainda se vivia na altura do meu primeiro mandato (1999-2004), quando ainda estávamos na Europa dos 15. Depois, tem vindo a esvair-se, na Europa intergovernamentalizada dos 27, com o esquecimento do método comunitário, o progressivo esbatimento do papel da Comissão imposto pelos Estados-membros mais fortes a partir do Conselho e com o gigantismo inoperante do Parlamento Europeu.
A Europa perdeu o sentido da solidariedade?
Esse sentido parece estar cada vez mais distante de uma tradução prática que justifique a construção europeia, tal como ela era concebida até há pouco tempo. Oxalá eu me engane.
Foi Prémio Pessoa em 1995. Um prémio desta natureza leva a reequacionar alguma coisa.
Resolve problemas imediatos, dá-nos um prestígio assinalável, incute-nos um sentido de responsabilidade cultural, contribui para um aumento da auto-exigência a partir da sua atribuição.
Nasceu no Porto, onde regressa amiúde. Como vê agora a cidade?
O Porto ainda mantém uma aura poética em que a memória funciona paredes meias com a realidade, sem perda da sua carga mítica e afectiva. As pessoas mudaram pouco. Alguns lugares mudaram bastante. Mas, visto da margem sul do rio Douro, acho que ainda está lá tudo, na cor, no recorte do casario, na volumetria, na luz, na relação entre o granito e a água - tudo o que eu gosto de encontrar na minha cidade...
Qual é a memória mais longínqua da sua infância?
A existência de senhas de racionamento para certos géneros alimentícios.
Qual foi o dia mais importante da sua vida?
Dado o contexto em que estamos a falar, foi o dia 14 de Fevereiro de 1963, data em que me desloquei à Tipografia do Carvalhido para recolher a edição do meu primeiro livro, "Modo Mudando".
Está com 70 anos. A idade tornou-o mais sábio?
Sem dúvida. Com a idade aprende-se a simular melhor a juventude.
Gostaria de terminar com Camões. É, para si, o expoente máximo da nossa criação literária?
É. Tanto o Camões lírico, como o Camões épico. Nestes tempos em que as grandes obras do espírito humano vão sendo esquecidas, convém ter presente um poeta em cuja lírica a razão e a emoção vão sendo vividas e se exprimem num angustiado sentido das contradições do ser humano, e cujo canto épico não se limita ao feito histórico dos descobrimentos: é-o também do desvendamento e do conhecimento do mundo pelo Homem.

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domingo, 27 de abril de 2014


« perdoai-me ou castigai-me se vos aprouver; eu não posso baixar-me mais porque já estou de joelhos.»

William Shakespeare. Péricles, Príncipe de Tiro. Lello&Irmão, Editores Porto, 1976., p. 23
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