sábado, 11 de janeiro de 2014
“Perhaps I really regard myself as an intelligent man only because throughout my entire life I've never been able to start or finish anything.”
Fyodor Dostoevsky, Notes from Underground
domingo, 5 de janeiro de 2014
«sente-se a solidão, o peso,
minarem cada gesto; e antes
do gesto, a ideia de o fazer;»
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 173
minarem cada gesto; e antes
do gesto, a ideia de o fazer;»
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 173
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III
Para haver rio
tem de haver
árvores duríssimas; sabor
de metal nos ramos; equilíbrio
no fogo: antes, depois
das trocas primitivas;
redes coando
como filtros
a consistência a transferir-se
a seiva neutra
donde nasce o álamo
de pedra; e a noite,
pedra também, mas rarefeita
na sua lactescência.
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 157
tem de haver
árvores duríssimas; sabor
de metal nos ramos; equilíbrio
no fogo: antes, depois
das trocas primitivas;
redes coando
como filtros
a consistência a transferir-se
a seiva neutra
donde nasce o álamo
de pedra; e a noite,
pedra também, mas rarefeita
na sua lactescência.
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 157
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Sobre o lado esquerdo
«De vez em quando a insónia vibra com a nitidez dos sinos, dos cristais. E então, das duas uma: partem-se ou não se partem as cordas tensas da sua harpa insuportável.
No segundo caso, o homem que não dorme pensa: « o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim, deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo, esmagar o coração»
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 101
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Fruto
«Por um desvio semântico qualquer, que os filólogos ainda não estudaram, passámos a chamar manhã à infância das aves. De facto envelhecem quando a tarde cai e é por isso que ao anoitecer as árvores nos surgem tão carregadas de tempo.»
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 99
«Escrevo na madrugada as últimas palavras deste livro: e tenho o coração tranquilo, sei que a alegria se reconstrói e continua.»
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 72
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Sonetos de Shakespeare
reescritos em português
II
Como voltar feliz ao meu trabalho
se a noite me não deu nenhum sossego?
A noite, o dia, cartas dum baralho
sempre trocadas neste jogo cego.
Estes dois, inimigos de mãos dadas,
me torturam, envolvem no seu cerco
de fadiga, de dúbias madrugadas;
e tu, quanto mais sofro mais te perco.
Digo ao dia que brilhas para ele,
que desfazes as nuvens do seu rosto;
digo à noite sem estrelas que és o mel
na sua pele escura: o oiro, o gosto.
Mas dia a dia alonga-se a jornada
e cada noite a noite é mais fechada.
III
Foi tal e qual o inverno a minha ausência
de ti, prazer de um ano fugitivo:
dias nocturnos, gelos, inclemência;
que nudez de dezembro o frio vivo.
E esse tempo de exílio era o do verão;
era a excessiva gravidez do outono
com a volúpia de maio em cada grão:
um seio viúvo, sem senhor nem dono.
Essa posteridade em seu esplendor
uma esperança de órfãos me parecia:
contigo ausente, o verão teu servidor
emudeceu as aves todo o dia.
Ou tanto as deprimiu, que a folha arfava
e no temor do inverno desmaiava.
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 64/65
reescritos em português
II
Como voltar feliz ao meu trabalho
se a noite me não deu nenhum sossego?
A noite, o dia, cartas dum baralho
sempre trocadas neste jogo cego.
Estes dois, inimigos de mãos dadas,
me torturam, envolvem no seu cerco
de fadiga, de dúbias madrugadas;
e tu, quanto mais sofro mais te perco.
Digo ao dia que brilhas para ele,
que desfazes as nuvens do seu rosto;
digo à noite sem estrelas que és o mel
na sua pele escura: o oiro, o gosto.
Mas dia a dia alonga-se a jornada
e cada noite a noite é mais fechada.
III
Foi tal e qual o inverno a minha ausência
de ti, prazer de um ano fugitivo:
dias nocturnos, gelos, inclemência;
que nudez de dezembro o frio vivo.
E esse tempo de exílio era o do verão;
era a excessiva gravidez do outono
com a volúpia de maio em cada grão:
um seio viúvo, sem senhor nem dono.
Essa posteridade em seu esplendor
uma esperança de órfãos me parecia:
contigo ausente, o verão teu servidor
emudeceu as aves todo o dia.
Ou tanto as deprimiu, que a folha arfava
e no temor do inverno desmaiava.
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 64/65
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«Andam os mortos enfeitando-se ao frio,
servindo-se das árvores para ter cabelos;
deslizam ao fulgor das estrelas, loiros, amarelos,
e fitam-se no tempo, ou no espelho dum rio?»
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 40
servindo-se das árvores para ter cabelos;
deslizam ao fulgor das estrelas, loiros, amarelos,
e fitam-se no tempo, ou no espelho dum rio?»
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 40
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sexta-feira, 3 de janeiro de 2014
Quatro Poemas de Samuel Beckett
1. Dieppe
torna derradeira maré vaza
morto seixo
a volta logo os passos
rumo à vila sob a luz
2.
o meu curso é na areia fluida
entre seixo e duna
chuva de verão chove-me na vida
em mim vida que me segue me foge
até ao cabo até ao rabo
a minha paz ali está na névoa a recuar
onde eu possa não mais dar estes passos longos em limiares fugidios
e viva o espaço de tempo de uma porta
que se abre e se fecha
3.
que faria eu sem este mundo sem rosto sem curar de nada
onde ser não dura mais que um instante onde cada instante
verte no vazio a ignorância de ter sido
sem esta vaga onde por fim
corpo e sombra juntos se engolfam
que faria eu sem este silêncio onde murmúrios morrem
ofegando fremindo rumo ao auxílio rumo ao amor
sem este céu que se eleva
acima do pó da sua gravilha
que faria eu que fiz ontem e antes
espreitando da minha escotilha buscando outrem
vagando como eu na corrente alheio a toda a vida
num espaço convulso
por entre as vozes afásicas
que se aglomeram no meu covil
4.
Queria que o meu amor morresse
e chovesse sobre as campas e
sobre mim cruzando as ruas de
luto pelo primeiro o derradeiro amor
Four Poems by Samuel Beckett
1. Dieppe
again the last ebb
the dead shingle
the turning then the steps
toward the lighted town
2.
my way is in the sand flowing
between the shingle and the dune
the summer rain rains on my life
on me my life harrying fleeing
to its beginning to its end
my peace is there in the receding mist
when I may cease from treading these long shifting thresholds
and live the space of a door
that opens and shuts
3.
what would I do without this world faceless incurious
where to be lasts but an instant where every instant
spills in the void the ignorance of having been
without this wave where in the end
body and shadow together are engulfed
what would I do without this silence where the murmurs die
the pantings the frenzies toward succour towards love
without this sky that soars
above its ballast dust
what would I do what I did yesterday and the day before
peering out of my deadlight looking for another
wandering like me eddying far from all the living
in a convulsive space
among the voices voiceless
that throng my hiddenness
4.
I would like my love to die
and the rain to be falling on the graveyard
and on me walking the streets
mourning the first and last to love me
Four Poems by Samuel Beckett, translated from the French by the author Hugo Pinto Santos
torna derradeira maré vaza
morto seixo
a volta logo os passos
rumo à vila sob a luz
2.
o meu curso é na areia fluida
entre seixo e duna
chuva de verão chove-me na vida
em mim vida que me segue me foge
até ao cabo até ao rabo
a minha paz ali está na névoa a recuar
onde eu possa não mais dar estes passos longos em limiares fugidios
e viva o espaço de tempo de uma porta
que se abre e se fecha
3.
que faria eu sem este mundo sem rosto sem curar de nada
onde ser não dura mais que um instante onde cada instante
verte no vazio a ignorância de ter sido
sem esta vaga onde por fim
corpo e sombra juntos se engolfam
que faria eu sem este silêncio onde murmúrios morrem
ofegando fremindo rumo ao auxílio rumo ao amor
sem este céu que se eleva
acima do pó da sua gravilha
que faria eu que fiz ontem e antes
espreitando da minha escotilha buscando outrem
vagando como eu na corrente alheio a toda a vida
num espaço convulso
por entre as vozes afásicas
que se aglomeram no meu covil
4.
Queria que o meu amor morresse
e chovesse sobre as campas e
sobre mim cruzando as ruas de
luto pelo primeiro o derradeiro amor
Four Poems by Samuel Beckett
1. Dieppe
again the last ebb
the dead shingle
the turning then the steps
toward the lighted town
2.
my way is in the sand flowing
between the shingle and the dune
the summer rain rains on my life
on me my life harrying fleeing
to its beginning to its end
my peace is there in the receding mist
when I may cease from treading these long shifting thresholds
and live the space of a door
that opens and shuts
3.
what would I do without this world faceless incurious
where to be lasts but an instant where every instant
spills in the void the ignorance of having been
without this wave where in the end
body and shadow together are engulfed
what would I do without this silence where the murmurs die
the pantings the frenzies toward succour towards love
without this sky that soars
above its ballast dust
what would I do what I did yesterday and the day before
peering out of my deadlight looking for another
wandering like me eddying far from all the living
in a convulsive space
among the voices voiceless
that throng my hiddenness
4.
I would like my love to die
and the rain to be falling on the graveyard
and on me walking the streets
mourning the first and last to love me
Four Poems by Samuel Beckett, translated from the French by the author Hugo Pinto Santos
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quinta-feira, 2 de janeiro de 2014
Já escuro e denso o rio da memória
flui e me entristece,
se acaso lembro que chorei
o que nem lágrimas merece.
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 36
flui e me entristece,
se acaso lembro que chorei
o que nem lágrimas merece.
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 36
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«E quanto mais estendo as mãos urgentes,
mais um dúbio fulgor acende o vento:
podes descer silenciosamente
sobre os meus versos, luz do esquecimento.»
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 35
mais um dúbio fulgor acende o vento:
podes descer silenciosamente
sobre os meus versos, luz do esquecimento.»
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 35
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«Quando as pedras estalam a gritar
e os cardos sonham as margens de altos rios;
quando a sede põe a água num altar
e ajoelha como a um deus de lábios frios.»
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 34
e os cardos sonham as margens de altos rios;
quando a sede põe a água num altar
e ajoelha como a um deus de lábios frios.»
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 34
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Mais do que penso, sonho; donde vim?
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 33
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verso solto
Janine
«Janine será, até morrer, o tipo da mulher que sabe tudo, repete o que ouve só para parecer distinta, dá opiniões sobre todos os assuntos, sem compreender nenhum.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 39
«Então, começaram os anos de gestações, de acidentes, de partos, que me forneciam mais pretextos que os necessários para me afastar de ti. Afundei-me numa vida de desordens secretas. Muito secretas, porque começava a ser conhecido como advogado. «O negócio corria bem», como dizia minha mãe, e a mim interessava-me salvar as aparências. Adquiri os meus hábitos; tinha as minhas horas. O devasso, numa cidade da província, acaba por adquirir a astúcia e o instinto dos animais de caça. Descansa, Isa, evitarei tudo quanto te faça sofrer. Não tenhas receio que te descreva o inferno onde quase todos os dias eu descia. Foste tu que para lá me atiraste; tu, que dele me tinhas salvo.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 37
Às vezes, gemia na escuridão e tu não acordavas.
«A meio da noite, o meu sofrimento despertava-me. Estava preso a ti, como a raposa na armadilha. (...) Eu não era um monstro. A primeira rapariga que me conhecesse e me tivesse amado teria feito de mim tudo quanto quisesse.» Às vezes, gemia na escuridão e tu não acordavas.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 37
«Tu estavas à janela, de cabeça inclinada. Com uma das mãos seguravas o cabelo; com a outra, escovava-lo. Não me viste. Olhei-te um instante, possuído de um ódio cujo sabor amargo ainda hoje sinto na boca, passados tantos anos.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 36
Sucumbo sempre à facilidade do silêncio.
«O meu coração (choca-te, eu falar no meu coração?), pois o meu coração esteve prestes a estalar. Só me vieram aos lábios palavras hesitantes...Por onde começar? Sucumbo sempre à facilidade do silêncio.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 36
«O que eu pretendia ouvir da tua boca não o sabia já?»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 35
«Nem de longe pressentiste quão profunda era a minha dor, mas preocupou-te o meu silêncio.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 34
Não amava, deixava-se amar.
«Repetiste-me várias vezes que não estavas arrependida. Contendo a respiração, deixei-te falar. Garantiste-me que não terias sido feliz com esse Rodolfo. Era bonito de mais. Não amava, deixava-se amar. Qualquer outra mulher ter-to-ia roubado facilmente.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 33
terça-feira, 31 de dezembro de 2013
A pátria é a viagem
Rui Nunes e a viagem: “Ando de um lado para outro. É vital para mim. E muitas vezes ando de uns sítios para os outros cansado e com dificuldade, mas não consigo parar”
A pátria é a viagem de Rui Nunes
06.06.2012
Por: Maria da Conceição Caleiro
Por: Maria da Conceição Caleiro
É um escritor que se subtraiu sempre das luzes da ribalta. Por princípio e por pudor. Todavia é um imenso escritor, um dos melhores
Recebeu em 1992 o Prémio PEN Clube Português de ficção e em 1998 o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores. Sauromaquia (1976) é o seu primeiro livro. Barro, que acaba de sair, o último.
Quando perguntaram a Hélia Correia que medidas tomaria para uma maior divulgação das obras de Maria Gabriela Llansol, ela respondeu intempestivamente: "Nenhumas, quem sentir a falta que leia". E se a mesma pergunta fosse colocada a Rui Nunes sobre Rui Nunes?
Não calculo. Nada, possivelmente, como disse Hélia Correia. "Quem quiser que leia" é uma belíssima resposta. Não há muito a fazer. A publicidade destrói completamente aquilo que escrevo, é uma sombra que se projecta. Esse tipo de mostração torna pornográfico aquilo que o não é. Cada livro vai conseguindo os leitores que merece. Se, por publicidade, o livro chegar aos leitores que não são os leitores dele, eles não ficam, vão-se embora.
No seu novo livro, Barro, subtrai até ao osso a matéria ficcional que comummente se espera. Parte-se de referências autobiográficas - a infância, a exposição The Porn Identity na Kunsthalle de Viena em 2009, o desejo, a constelação de autores que o marcaram (Celan, Tolstói, Victor Hugo, O Conde de Monte Cristo...)
São elementos autobiográficos, mas o livro não é uma autobiografia. Tentei reunir os elementos da minha vida que contribuíram para a construção da minha escrita, que estão na génese dela. No seguimento de A Mão do Oleiro, há uma presença do texto bíblico. Logo no começo deste, o que Deus disse a Jeremias: "E Deus disse: faça-se / do lixo, um rosto". Em Barro, as primeiras duas palavras são as do Génesis: "No princípio". Não sou católico, nem crente propriamente, mas o texto bíblico está inscrito na minha matriz, sobretudo o Antigo Testamento. Tem uma força, uma violência, uma beleza que o Novo Testamento não tem, está mais perto de nós.
Falemos então de Deus, presença disseminada no livro.
Será que falamos de outra coisa? No fundo, Deus é esse nada que leva a falar. É todos os sentidos e não é sentido nenhum. Mas preenchemos essa falta com a malignidade das próprias palavras.
Em Barro repete-se várias vezes um poema: "Estão sempre a recomeçar/ as palavras de qualquer fome./ Anónimas. Tornam anónimas todas as bocas. Todas as mãos./ Todos os gestos./ As palavras só prolongam palavras./ Até ao tumulto. De um rosto". Quer comentar?
Isso diz o meu fascínio pela palavra. Ao mesmo tempo, a palavra só é verdadeira quando acaba num rosto. Que a pára. Não é que a elimina, mas que a recebe e cala.
E a última palavra é o nome de Deus?
A última palavra é um rosto imensamente esperado. Falta sempre uma palavra a qualquer livro.
A espera mantém-se?
É essa espera de um rosto que vai alimentando a escrita. Escrevendo, mantém-se a espera. E como a única coisa que interessa é essa espera, escreve-se unicamente para a manter.
E aí irrompe a questão do tempo?
Exacto.
No limite a interrupção é o rosto?
É o rosto. O rosto é que é. O rosto é. Aliás a importância do rosto está em Levinas.
É uma responsabilidade a que não se pode virar a cara?
Por isso, como diz Hölderlin, "no rosto está o dialogo". O Levinas é profundamente hölderliniano, na consciência de que é no rosto que está o dialogo e de que as palavras são um bem perigoso.
No que escreve há uma violência e uma beleza às vezes sufocante.
O elemento autobiográfico cria violência porque a relação com esse elemento - que quer entrar no texto - é uma relação violenta, e são os acontecimentos violentos que marcam. A felicidade não marca, a felicidade apaga o texto, só a violência o faz nascer. Na minha vida também, eu penso até que o Antigo Testamento seja uma presença inapagável em todas as vidas. Está lá, como está na origem do ser que nós somos, como origem, como olhar, como conceito.
Tem muitas pátrias?
Quanto mais tempo estou, mais estrangeiro me sinto porque vou perdendo a minha coesão, vou perdendo a minha identidade, vou-me dissolvendo, de modo que é melhor não estar muito tempo nos sítios.
Como a palavra que, repetida, se esvai completamente?
É isso, uma palavra repetida perde o sentido, chega a uma altura em que é unicamente um som. Tal como um país repetido vai perdendo todo o sentido. A viagem é exactamente o contrário, a viagem é a pátria, é a grande pátria. Porque é na viagem que eu ganho coesão, não é na paragem; na paragem eu perco. A vida devia ser um durante com muito poucas paragens.
Portanto, a chegada nunca.
A partida é sempre exaltante, a chegada é pobre. Acontece-me prolongar as viagens. Quer dizer, pequenas viagens que podia fazer nuns minutos, eu faço o possível para que elas durem duas, três horas. Posso apanhar um comboio directo de enorme velocidade entre Sankt Pölten e Viena, mas prefiro apanhar o comboio vagaroso que pára em todas as estações e apeadeiros. Portanto estou sempre a partir. E gosto muito de escrever durante a viagem, no comboio. Já a minha mãe era assim. Isso está nos genes.
Assim como noutras figuras da sua infância.
Eu só falo de um, mas os meus dois avós fugiram de casa antes dos dez anos. O meu avô materno, que nós chamávamos o avô do mar, nunca mais voltou. E o meu avô paterno voltou à terra dele à volta dos 20 anos. Isso marca a pessoa. O meu avô materno fez uma viagem do Algarve a Setúbal a pé, atravessou o Alentejo todo a pé, teve febres porque na altura havia malária na região do Sado. Eu tenho esse movimento inscrito nos genes, não consigo estar parado, não consigo estar em Lisboa, aliás não gosto da cidade. De Lisboa para o Algarve, do Algarve para a Beira.... Ando de um lado para outro. É vital para mim. E muitas vezes ando de uns sítios para os outros cansado e com dificuldade, mas não consigo parar. O problema é o regresso, qualquer regresso é uma tragédia. A vida devia ter sido feita de partidas.
São várias as casas de que fala...
Eu nunca tive uma casa minha, minha. Vivi sempre na casa dos outros. Aos nove meses fui para casa da minha tia Amélia, dos meus avós da Beira, depois estive fora, a casa de minha mãe, depois a casa de amigos. A ideia de casa também não está inscrita em mim, a casa é sempre precária...
Infamiliar?
Infamiliar, ou familiar no pior sentido. São a expressão do poder, de uma ordem à qual eu sou sempre estranho.
A viagem desordena tudo isso?
Exacto, a viagem é uma espécie de sintaxe. Liga, mas é a única - e eu digo isso muito - que não tem a dimensão do poder, pelo contrário, é a única que dissolve o poder, que o destrói. Todas as outras constroem, mantêm-no, reproduzem-no.
Retomemos O Barro. Várias são as figuras que se desenham e insistem. O pai, sobretudo os avós.
Os meus avós deram-me todas as palavras do mundo. Um deu-me as palavras do mar, outro deu-me as palavras da terra,
Os barcos e as sementes...
Exacto, eu recebi todos os nomes como uma espécie de dádiva, fiquei com todos os nomes. O meu avô do mar tentou dar-me a história, mas ele sabia que a história não deve acabar. Eu pedia-lhe para contar O Conde de Monte Cristo e ele todas as noites inventava uma história diferente do Conde de Monte Cristo. Ainda hoje não sei como é que aquilo acaba, não quero saber.
Acaba por ser tudo uma espécie de emblema do viajar, anda-se à volta disso sempre?
Os meus avós eram viajantes, mas é estranho, o meu pai não. Via-se que tinha um prazer espantoso na História, nessa fixação do tempo, das coisas, das personagens, e a ele devo muitas das leituras que fiz em criança. O ter lido o Guerra e Paz, que foi para mim um livro matricial, Ele deu-me a fixidez da história, os meus avós deram-me a errância dos nomes.
Mas o nome fixa.
O nome amarra, mas de uma maneira diferente da frase. Amarra uma coisa a um solo e nunca mais o larga, como uma carraça se agarra a um cão e nunca mais o larga, desloca-se com ele. Por isso é que as palavras são impressionantes, as palavras têm essa ambiguidade de se moverem, de frase em frase, de texto em texto, mas carregando um sentido, um significado do qual não se conseguem libertar, às vezes ganhando novos significados, mas nunca perdendo os outros; acumulando significados.
Há palavras que insistem: barro é uma delas, Celan outra; ou Schnee (neve, em alemão)... Porquê?
Aquilo que me impressiona no Celan é um profundo e inultrapassável contencioso com todas as línguas, as que dominava, onde vivia, por onde andava. Não é só o alemão que é a palavra do carrasco, são todas as línguas. O português é, e vê-se o medo que as pessoas têm quando falam da língua, vêem-na como qualquer coisa de sagrado. Não entendo, o respeito por ela é precisamente o afastamento dela. Uma língua precisa de ser macerada, precisa de ser cortada, destruída, para libertar.
E é isso que faz?
Só assim eu a entendo, só assim consigo usá-la. Porque se não não sou eu quem a está a mostrar, é a língua, com o seu poder denunciante, a mostrar-me, e eu tornei-me numa vítima. Eu só não me torno numa vitima quando a consigo macerar. Se não, cada vez que falo digo que sou culpado não sei bem de quê.
De uma teia?
É, de uma teia. Uma mosca, o insecto que cai na teia, cai numa lógica da aranha.
Porque escreve barro em português e neve em alemão?
Eu só posso escrever assim porque é a neve do Celan, é aquela neve. O barro é um termo brutal e lindíssimo que eu estou a ver, e só pode ser aquele, aquela bola que o oleiro põe na roda e começa a moldar. A maior parte das pessoas nunca viu aparecer um cântaro, e realmente, se se pode imaginar a criação, é isso. E a água que se tem de pôr, amniótica... É um parto..
A luz é uma presença subliminar no que escreve. As coisas que a luz recorta e que, ao fazê-lo, traz para a morte. Gostava que falasse do fenómeno.
A luz é a morte, a luz conduz. Há um momento em que a luz não se vê, vêem-se as coisas. Esse tal momento da madrugada em que tudo está nítido e não há sombra é o momento não maligno da luz; depois, quando o tempo passa, a luz maligniza-se e o processo de malignização da luz vê-se na sombra que vai saindo dos objectos. A primeira sombra é imensa e pouco concentrada, com o tempo a sombra reduz-se e concentra-se, e assim dá espaço ao clarão. Portanto a luz vai-se tornando mortal, não se consegue ver nada: é quando o sol está no zénite. O mundo mostra-se pacificado nesse momento em que as coisas não produzem sombra, porque são vistas limpamente.
É o momento da coincidência.
É isso. Aquela nostalgia que eu penso que existe em todas as pessoas da coincidência do nome e da coisa realiza-se nesse momento: ‘Olha, aquilo não é uma árvore, é um sobreiro, é uma azinheira, é uma oliveira'. As coisas ganham não um nome abstracto, mas o seu nome. E, realmente, quando Deus disse ‘faça-se a luz', não foi o grande clarão, foi com certeza esse momento único em que é possível nomear.
E foi bom!
E foi bom (risos)!
E o livro próximo?
Um título que dê a ideia de um cântaro partido. La Potière Jalouse seria um grande título, mas já existe no Lévi-Strauss.
Recebeu em 1992 o Prémio PEN Clube Português de ficção e em 1998 o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores. Sauromaquia (1976) é o seu primeiro livro. Barro, que acaba de sair, o último.
Quando perguntaram a Hélia Correia que medidas tomaria para uma maior divulgação das obras de Maria Gabriela Llansol, ela respondeu intempestivamente: "Nenhumas, quem sentir a falta que leia". E se a mesma pergunta fosse colocada a Rui Nunes sobre Rui Nunes?
Não calculo. Nada, possivelmente, como disse Hélia Correia. "Quem quiser que leia" é uma belíssima resposta. Não há muito a fazer. A publicidade destrói completamente aquilo que escrevo, é uma sombra que se projecta. Esse tipo de mostração torna pornográfico aquilo que o não é. Cada livro vai conseguindo os leitores que merece. Se, por publicidade, o livro chegar aos leitores que não são os leitores dele, eles não ficam, vão-se embora.
No seu novo livro, Barro, subtrai até ao osso a matéria ficcional que comummente se espera. Parte-se de referências autobiográficas - a infância, a exposição The Porn Identity na Kunsthalle de Viena em 2009, o desejo, a constelação de autores que o marcaram (Celan, Tolstói, Victor Hugo, O Conde de Monte Cristo...)
São elementos autobiográficos, mas o livro não é uma autobiografia. Tentei reunir os elementos da minha vida que contribuíram para a construção da minha escrita, que estão na génese dela. No seguimento de A Mão do Oleiro, há uma presença do texto bíblico. Logo no começo deste, o que Deus disse a Jeremias: "E Deus disse: faça-se / do lixo, um rosto". Em Barro, as primeiras duas palavras são as do Génesis: "No princípio". Não sou católico, nem crente propriamente, mas o texto bíblico está inscrito na minha matriz, sobretudo o Antigo Testamento. Tem uma força, uma violência, uma beleza que o Novo Testamento não tem, está mais perto de nós.
Falemos então de Deus, presença disseminada no livro.
Será que falamos de outra coisa? No fundo, Deus é esse nada que leva a falar. É todos os sentidos e não é sentido nenhum. Mas preenchemos essa falta com a malignidade das próprias palavras.
Em Barro repete-se várias vezes um poema: "Estão sempre a recomeçar/ as palavras de qualquer fome./ Anónimas. Tornam anónimas todas as bocas. Todas as mãos./ Todos os gestos./ As palavras só prolongam palavras./ Até ao tumulto. De um rosto". Quer comentar?
Isso diz o meu fascínio pela palavra. Ao mesmo tempo, a palavra só é verdadeira quando acaba num rosto. Que a pára. Não é que a elimina, mas que a recebe e cala.
E a última palavra é o nome de Deus?
A última palavra é um rosto imensamente esperado. Falta sempre uma palavra a qualquer livro.
A espera mantém-se?
É essa espera de um rosto que vai alimentando a escrita. Escrevendo, mantém-se a espera. E como a única coisa que interessa é essa espera, escreve-se unicamente para a manter.
E aí irrompe a questão do tempo?
Exacto.
No limite a interrupção é o rosto?
É o rosto. O rosto é que é. O rosto é. Aliás a importância do rosto está em Levinas.
É uma responsabilidade a que não se pode virar a cara?
Por isso, como diz Hölderlin, "no rosto está o dialogo". O Levinas é profundamente hölderliniano, na consciência de que é no rosto que está o dialogo e de que as palavras são um bem perigoso.
No que escreve há uma violência e uma beleza às vezes sufocante.
O elemento autobiográfico cria violência porque a relação com esse elemento - que quer entrar no texto - é uma relação violenta, e são os acontecimentos violentos que marcam. A felicidade não marca, a felicidade apaga o texto, só a violência o faz nascer. Na minha vida também, eu penso até que o Antigo Testamento seja uma presença inapagável em todas as vidas. Está lá, como está na origem do ser que nós somos, como origem, como olhar, como conceito.
Tem muitas pátrias?
Quanto mais tempo estou, mais estrangeiro me sinto porque vou perdendo a minha coesão, vou perdendo a minha identidade, vou-me dissolvendo, de modo que é melhor não estar muito tempo nos sítios.
Como a palavra que, repetida, se esvai completamente?
É isso, uma palavra repetida perde o sentido, chega a uma altura em que é unicamente um som. Tal como um país repetido vai perdendo todo o sentido. A viagem é exactamente o contrário, a viagem é a pátria, é a grande pátria. Porque é na viagem que eu ganho coesão, não é na paragem; na paragem eu perco. A vida devia ser um durante com muito poucas paragens.
Portanto, a chegada nunca.
A partida é sempre exaltante, a chegada é pobre. Acontece-me prolongar as viagens. Quer dizer, pequenas viagens que podia fazer nuns minutos, eu faço o possível para que elas durem duas, três horas. Posso apanhar um comboio directo de enorme velocidade entre Sankt Pölten e Viena, mas prefiro apanhar o comboio vagaroso que pára em todas as estações e apeadeiros. Portanto estou sempre a partir. E gosto muito de escrever durante a viagem, no comboio. Já a minha mãe era assim. Isso está nos genes.
Assim como noutras figuras da sua infância.
Eu só falo de um, mas os meus dois avós fugiram de casa antes dos dez anos. O meu avô materno, que nós chamávamos o avô do mar, nunca mais voltou. E o meu avô paterno voltou à terra dele à volta dos 20 anos. Isso marca a pessoa. O meu avô materno fez uma viagem do Algarve a Setúbal a pé, atravessou o Alentejo todo a pé, teve febres porque na altura havia malária na região do Sado. Eu tenho esse movimento inscrito nos genes, não consigo estar parado, não consigo estar em Lisboa, aliás não gosto da cidade. De Lisboa para o Algarve, do Algarve para a Beira.... Ando de um lado para outro. É vital para mim. E muitas vezes ando de uns sítios para os outros cansado e com dificuldade, mas não consigo parar. O problema é o regresso, qualquer regresso é uma tragédia. A vida devia ter sido feita de partidas.
São várias as casas de que fala...
Eu nunca tive uma casa minha, minha. Vivi sempre na casa dos outros. Aos nove meses fui para casa da minha tia Amélia, dos meus avós da Beira, depois estive fora, a casa de minha mãe, depois a casa de amigos. A ideia de casa também não está inscrita em mim, a casa é sempre precária...
Infamiliar?
Infamiliar, ou familiar no pior sentido. São a expressão do poder, de uma ordem à qual eu sou sempre estranho.
A viagem desordena tudo isso?
Exacto, a viagem é uma espécie de sintaxe. Liga, mas é a única - e eu digo isso muito - que não tem a dimensão do poder, pelo contrário, é a única que dissolve o poder, que o destrói. Todas as outras constroem, mantêm-no, reproduzem-no.
Retomemos O Barro. Várias são as figuras que se desenham e insistem. O pai, sobretudo os avós.
Os meus avós deram-me todas as palavras do mundo. Um deu-me as palavras do mar, outro deu-me as palavras da terra,
Os barcos e as sementes...
Exacto, eu recebi todos os nomes como uma espécie de dádiva, fiquei com todos os nomes. O meu avô do mar tentou dar-me a história, mas ele sabia que a história não deve acabar. Eu pedia-lhe para contar O Conde de Monte Cristo e ele todas as noites inventava uma história diferente do Conde de Monte Cristo. Ainda hoje não sei como é que aquilo acaba, não quero saber.
Acaba por ser tudo uma espécie de emblema do viajar, anda-se à volta disso sempre?
Os meus avós eram viajantes, mas é estranho, o meu pai não. Via-se que tinha um prazer espantoso na História, nessa fixação do tempo, das coisas, das personagens, e a ele devo muitas das leituras que fiz em criança. O ter lido o Guerra e Paz, que foi para mim um livro matricial, Ele deu-me a fixidez da história, os meus avós deram-me a errância dos nomes.
Mas o nome fixa.
O nome amarra, mas de uma maneira diferente da frase. Amarra uma coisa a um solo e nunca mais o larga, como uma carraça se agarra a um cão e nunca mais o larga, desloca-se com ele. Por isso é que as palavras são impressionantes, as palavras têm essa ambiguidade de se moverem, de frase em frase, de texto em texto, mas carregando um sentido, um significado do qual não se conseguem libertar, às vezes ganhando novos significados, mas nunca perdendo os outros; acumulando significados.
Há palavras que insistem: barro é uma delas, Celan outra; ou Schnee (neve, em alemão)... Porquê?
Aquilo que me impressiona no Celan é um profundo e inultrapassável contencioso com todas as línguas, as que dominava, onde vivia, por onde andava. Não é só o alemão que é a palavra do carrasco, são todas as línguas. O português é, e vê-se o medo que as pessoas têm quando falam da língua, vêem-na como qualquer coisa de sagrado. Não entendo, o respeito por ela é precisamente o afastamento dela. Uma língua precisa de ser macerada, precisa de ser cortada, destruída, para libertar.
E é isso que faz?
Só assim eu a entendo, só assim consigo usá-la. Porque se não não sou eu quem a está a mostrar, é a língua, com o seu poder denunciante, a mostrar-me, e eu tornei-me numa vítima. Eu só não me torno numa vitima quando a consigo macerar. Se não, cada vez que falo digo que sou culpado não sei bem de quê.
De uma teia?
É, de uma teia. Uma mosca, o insecto que cai na teia, cai numa lógica da aranha.
Porque escreve barro em português e neve em alemão?
Eu só posso escrever assim porque é a neve do Celan, é aquela neve. O barro é um termo brutal e lindíssimo que eu estou a ver, e só pode ser aquele, aquela bola que o oleiro põe na roda e começa a moldar. A maior parte das pessoas nunca viu aparecer um cântaro, e realmente, se se pode imaginar a criação, é isso. E a água que se tem de pôr, amniótica... É um parto..
A luz é uma presença subliminar no que escreve. As coisas que a luz recorta e que, ao fazê-lo, traz para a morte. Gostava que falasse do fenómeno.
A luz é a morte, a luz conduz. Há um momento em que a luz não se vê, vêem-se as coisas. Esse tal momento da madrugada em que tudo está nítido e não há sombra é o momento não maligno da luz; depois, quando o tempo passa, a luz maligniza-se e o processo de malignização da luz vê-se na sombra que vai saindo dos objectos. A primeira sombra é imensa e pouco concentrada, com o tempo a sombra reduz-se e concentra-se, e assim dá espaço ao clarão. Portanto a luz vai-se tornando mortal, não se consegue ver nada: é quando o sol está no zénite. O mundo mostra-se pacificado nesse momento em que as coisas não produzem sombra, porque são vistas limpamente.
É o momento da coincidência.
É isso. Aquela nostalgia que eu penso que existe em todas as pessoas da coincidência do nome e da coisa realiza-se nesse momento: ‘Olha, aquilo não é uma árvore, é um sobreiro, é uma azinheira, é uma oliveira'. As coisas ganham não um nome abstracto, mas o seu nome. E, realmente, quando Deus disse ‘faça-se a luz', não foi o grande clarão, foi com certeza esse momento único em que é possível nomear.
E foi bom!
E foi bom (risos)!
E o livro próximo?
Um título que dê a ideia de um cântaro partido. La Potière Jalouse seria um grande título, mas já existe no Lévi-Strauss.
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Tudo era silêncio.
«Fujo sempre à narração daquela noite. Estava tão quente que, apesar de detestares os morcegos, tínhamos as persianas abertas. Embora soubéssemos que era o agitar das folhas da tília no muro da casa, parecia-nos ouvir alguém respirar ao fundo do quarto. Às vezes, o vento imitava o barulho de um aguaceiro a cair sobre a folhagem. A Lua, quase a desaparecer, iluminava o chão e os pálidos fantasmas da nossa roupa espalhada pelo quarto. Já não se ouvia o murmúrio dos prados. Tudo era silêncio.
Tu dizias: «Vamos dormir...É preciso dormir...» Contudo, uma sombra rondava a nossa lassidão. Não vínhamos sozinhos do fundo do abismo. Logo que eu te apertava nos meus braços, acordava no teu coração esse Rodolfo desconhecido.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 31
«Nesse tempo vivias agarrada a preconceitos!»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 31
«Mas, porque nesta confissão pretendo mostrar-me tal como sou, não posso dissimular estes traços do meu carácter: a independência, a inflexibilidade. Não vergo diante de ninguém, sou fiel às minhas ideias.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 29/30
«No entanto, houve na verdade alguns indícios da realidade, mas que interpretei mal. Lembras-te de uma noite em que estávamos sentados num banco da alameda ziguezagueante que fica atrás das Termas? De súbito, sem motivo aparente, desataste a soluçar. Recordo o perfume das tuas faces molhadas, o perfume dessa tristeza incógnita. Julguei serem lágrimas de felicidade. Muito novo, e ainda inexperiente, desconhecia as subtilezas desses soluços e dessas opressões. Tu dizias-me : «Não é nada, é por estar ao pé de ti...»
E não mentias, mentirosa. Era, de facto, por estares ao pé de mim que choravas - ao pé de mim e não de outro cujo nome acabarias por me revelar alguns meses mais tarde, neste mesmo quarto onde hoje escrevo, velho, e quase a morrer, rodeado por um grupo de espiões que aguardam o momento propício para o assalto.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 23
«Mata a sede de uma vez para sempre, pois nunca mais beberás.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 23
«Como às vezes olhavas para mim de soslaio, a recordação dessas missas ficou ligada à maravilhosa descoberta que se apoderava de mim: ser capaz de interessar, de agradar, de impressionar. O amor que eu sentia confundia-se com o que eu inspirava, ou supunha inspirar. Os meus sentimentos nada tinham de real. O que contava era a minha fé no amor que sentias por mim. Reflectia-se noutro ser, e a minha imagem assim reflectida não era repelente. Expandia-me numa descontracção deliciosa. Nunca mais esqueci a felicidade de sentir o degelo de todo o meu ser sob o teu olhar, sob as emoções que brotavam das fontes libertadas. Os gestos de ternura mais vulgares, um aperto de mão, uma flor guardada num livro - tudo para mim era novo, tudo me encantava.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 22
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