segunda-feira, 31 de agosto de 2009
O empecido
«A Isabel, fugindo-lhe, com aérea graça extraordinária, penetrou-lhe no íntimo do peito. O amor nasce da ausência. Um ser ausente fala-nos à imaginação, essa amante olímpica de Homero. E imaginar é já divinizar. O amor excede as nossas palavras, e jaz mergulhado, ao longe, no mistério. E eis o que salva os tocadores da orfaica lira.» (pp. 23)
Teixeira Pascoaes
in O empecido
Livraria Bertrand
Teixeira Pascoaes
in O empecido
Livraria Bertrand
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Teixeira Pascoaes
sábado, 29 de agosto de 2009
terça-feira, 25 de agosto de 2009
Hora Absurda
O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas...
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...
Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte...
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...
Minha ideia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e entanto
Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte...
Abre todas as portas e que o vento varra a ideia
Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões...
Minha alma é uma caverna enchida p'la maré cheia,
E a minha ideia de te sonhar uma caravana de histriões...
Chove ouro baço, mas não no lá-fora...É em mim...Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela...
Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma única estrela...
Hoje o céu é pesado como a ideia de nunca chegar a um porto...
A chuva miúda é vazia...A Hora sabe a ter sido...
Não haver qualquer coisa como leitos para as naus!...Absorto
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...
Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro,
Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não há,
Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,
E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...
Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos caminhos...
Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas...
Puseram in-fólios úteis entre as pedras das barricadas...
E a erva cresceu nas vias férreas com viços daninhos...
Ah, como esta hora é velha!... E todas as naus partiram!
Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam
De longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram
Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...
O palácio está em ruínas... Dói ver no parque o abandono
Da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada
E sente saudade de si ante aquele lugar-outono...
Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada...
A doida partiu todos os candelabros glabros,
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas...
E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos candelabros...
E que querem ao lago aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?...
Por que me aflijo e me enfermo?...Deitam-se nuas ao luar
Todas as ninfas... Veio o sol e já tinham partido...
O teu silêncio que me embala é a ideia de naufragar,
E a ideia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido...
Já não há caudas de pavões todas olhos nos jardins de outrora...
As próprias sombras estão mais tristes...Ainda
Há rastros de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora
Um como que eco de passos pela alameda que eis finda...
Todos os ocasos fundiram-se na minha alma...
As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios...
Secou em teu olhar a ideia de te julgares calma,
E eu ver isso em ti é um porto sem navios...
Ergueram-se a um tempo todos os remos...pelo ouro das searas
Passou uma saudade de não serem o mar...Em frente
Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras...
Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...
Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol!
Todas as princesas sentiram o seio oprimido...
Da última janela do castelo só um girassol
Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido...
Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na jaula!...
Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?...
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula...
Por que não há de ser o Norte e Sul?... O que está descoberto?...
E eu deliro... De repente pauso no que penso...Fito-te...
E o teu silêncio é uma cegueira minha...Fito-te e sonho...
Há coisas rubras e cobras no modo como medito-te,
E a tua ideia sabe à lembrança de um sabor de medonho...
Para que não ter por ti desprezo? Por que não perdê-lo?...
Ah, deixa que eu te ignore...O teu silêncio é um leque ---
Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...
Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os peitos....
Murcharam mais flores do que as que havia no jardim...
O meu amar-te é uma catedral de silêncio eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...
Alguém vai entrar pela porta...Sente-se o ar sorrir...
Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem...
Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há de vir,
O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...
É preciso destruir o propósito de todas as pontes,
Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras,
Endireitar à força a curva dos horizontes,
E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...
Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã --- como
nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...
Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce...
Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito...
A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,
E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a meu peito...
Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!...
Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!...
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia batismal,
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro este lema --- Vitória!
O que é que me tortura?... Se até a tua face calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...
Não sei...Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...
Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...
Lisboa, 4 de Julho de 1913
Fernando Pessoa
in Ficções do Interlúdio 1914-1935
Assírio & Alvim, 1998
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...
Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte...
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...
Minha ideia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e entanto
Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte...
Abre todas as portas e que o vento varra a ideia
Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões...
Minha alma é uma caverna enchida p'la maré cheia,
E a minha ideia de te sonhar uma caravana de histriões...
Chove ouro baço, mas não no lá-fora...É em mim...Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela...
Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma única estrela...
Hoje o céu é pesado como a ideia de nunca chegar a um porto...
A chuva miúda é vazia...A Hora sabe a ter sido...
Não haver qualquer coisa como leitos para as naus!...Absorto
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...
Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro,
Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não há,
Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,
E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...
Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos caminhos...
Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas...
Puseram in-fólios úteis entre as pedras das barricadas...
E a erva cresceu nas vias férreas com viços daninhos...
Ah, como esta hora é velha!... E todas as naus partiram!
Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam
De longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram
Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...
O palácio está em ruínas... Dói ver no parque o abandono
Da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada
E sente saudade de si ante aquele lugar-outono...
Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada...
A doida partiu todos os candelabros glabros,
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas...
E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos candelabros...
E que querem ao lago aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?...
Por que me aflijo e me enfermo?...Deitam-se nuas ao luar
Todas as ninfas... Veio o sol e já tinham partido...
O teu silêncio que me embala é a ideia de naufragar,
E a ideia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido...
Já não há caudas de pavões todas olhos nos jardins de outrora...
As próprias sombras estão mais tristes...Ainda
Há rastros de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora
Um como que eco de passos pela alameda que eis finda...
Todos os ocasos fundiram-se na minha alma...
As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios...
Secou em teu olhar a ideia de te julgares calma,
E eu ver isso em ti é um porto sem navios...
Ergueram-se a um tempo todos os remos...pelo ouro das searas
Passou uma saudade de não serem o mar...Em frente
Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras...
Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...
Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol!
Todas as princesas sentiram o seio oprimido...
Da última janela do castelo só um girassol
Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido...
Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na jaula!...
Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?...
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula...
Por que não há de ser o Norte e Sul?... O que está descoberto?...
E eu deliro... De repente pauso no que penso...Fito-te...
E o teu silêncio é uma cegueira minha...Fito-te e sonho...
Há coisas rubras e cobras no modo como medito-te,
E a tua ideia sabe à lembrança de um sabor de medonho...
Para que não ter por ti desprezo? Por que não perdê-lo?...
Ah, deixa que eu te ignore...O teu silêncio é um leque ---
Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...
Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os peitos....
Murcharam mais flores do que as que havia no jardim...
O meu amar-te é uma catedral de silêncio eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...
Alguém vai entrar pela porta...Sente-se o ar sorrir...
Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem...
Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há de vir,
O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...
É preciso destruir o propósito de todas as pontes,
Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras,
Endireitar à força a curva dos horizontes,
E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...
Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã --- como
nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...
Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce...
Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito...
A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,
E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a meu peito...
Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!...
Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!...
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia batismal,
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro este lema --- Vitória!
O que é que me tortura?... Se até a tua face calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...
Não sei...Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...
Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...
Lisboa, 4 de Julho de 1913
Fernando Pessoa
in Ficções do Interlúdio 1914-1935
Assírio & Alvim, 1998
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segunda-feira, 24 de agosto de 2009
Exortação ao Meu Anjo
Quando eu me deixar cair
No sonho de adoecer para poder dormir,
Fere-me com a tua lança!
Reaviva em mim a dor, fonte de esperança.
Quando a verdade, que é nua,
Me cegar como um sol, e eu me voltar para onde há lua,
E procurar jardins convencionais e plácidos,
Queima-me com os teus olhos ácidos!
Quando me for mais fácil a verdade do que ter
Um papel de actor qualquer,
Como aos que assim se recreiam,
Faz-me exibir-me bobo ante os que aplaudem ou pateiam.
Quando eu julgar, falando, dizer tudo,
Faz ante mim sorrir teu lábio mudo!
Quando eu me poupe a falar,
Aperta-me a garganta e obriga-me a gritar!
Quando eu tiver medo do Medo
E acender fósforos nos cantos rumorosos de segredo,
Arrasta-me pelos cabelos
Para entre os pesadelos!
Quando, a meio da noite e da ansiedade,
Eu me rojar por terra e te pedir piedade
Não me apareças nem me fales!
Deixa-me só com o meu cálix.
Quando eu te falsificar,
E alugar anjos de serrim em seus braços me embalar,
Derrete o chumbo das casas:
Leva-me no tufão das tuas asas!
Quando eu, enfim, não puder mais
Por tuas próprias mãos belíssimas e leais,
E sem caixões nem mortalhas,
Enterra-me na terra das batalhas.
Quando, depois de morto, a glória
Me levantar o seu jazigo e celebrar minha vitória,
Desvenda os alçapões dos meus escritos
E arranca à terra que me esconde os mais secretos dos meus
gritos!
José Régio
Antologia Poética
Edições Quasi, 2001
No sonho de adoecer para poder dormir,
Fere-me com a tua lança!
Reaviva em mim a dor, fonte de esperança.
Quando a verdade, que é nua,
Me cegar como um sol, e eu me voltar para onde há lua,
E procurar jardins convencionais e plácidos,
Queima-me com os teus olhos ácidos!
Quando me for mais fácil a verdade do que ter
Um papel de actor qualquer,
Como aos que assim se recreiam,
Faz-me exibir-me bobo ante os que aplaudem ou pateiam.
Quando eu julgar, falando, dizer tudo,
Faz ante mim sorrir teu lábio mudo!
Quando eu me poupe a falar,
Aperta-me a garganta e obriga-me a gritar!
Quando eu tiver medo do Medo
E acender fósforos nos cantos rumorosos de segredo,
Arrasta-me pelos cabelos
Para entre os pesadelos!
Quando, a meio da noite e da ansiedade,
Eu me rojar por terra e te pedir piedade
Não me apareças nem me fales!
Deixa-me só com o meu cálix.
Quando eu te falsificar,
E alugar anjos de serrim em seus braços me embalar,
Derrete o chumbo das casas:
Leva-me no tufão das tuas asas!
Quando eu, enfim, não puder mais
Por tuas próprias mãos belíssimas e leais,
E sem caixões nem mortalhas,
Enterra-me na terra das batalhas.
Quando, depois de morto, a glória
Me levantar o seu jazigo e celebrar minha vitória,
Desvenda os alçapões dos meus escritos
E arranca à terra que me esconde os mais secretos dos meus
gritos!
José Régio
Antologia Poética
Edições Quasi, 2001
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poetas portugueses
«Escrevendo, cedo apenas a
uma necessidade espiritual de
revelação ou confissão. Cumpro
uma lei da vida.»
Teixeira de Pascoaes
in S. Jerónimo
uma necessidade espiritual de
revelação ou confissão. Cumpro
uma lei da vida.»
Teixeira de Pascoaes
in S. Jerónimo
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domingo, 23 de agosto de 2009
En el onceno aniversario de la muerte de mi madre
Perdóname el haberte retenido en la tierra.
Perdóname el no haber roto las raíces
que en mí hundió tu recuerdo.
Perdóname el haber conservado tus trenzas,
tus negras trenzas que en el fondo del baúl familiar
continuaron creciendo.
Perdóname los sueños en que agoté tu ternura.
Perdóname tus gestos, tu voz,
que prolongaron mis noches de insomnio.
Perdóname las voces con que te he llamado.
Perdóname las fiebres que al borde de mi lecho
te han reclamado.
Y por haberte envejecido, perdóname, madre.
Once años han pasado sobre el rostro
que conservo en mi memoria.
Cada pena le ha abierto una arruga,
le ha arrancado una lágrima.
Once años te he hecho vivir en mí
con dolorosa y cotidiana hondura.
Once años arrancados al silencio absoluto,
a las aguas definitivamente niveladas.
Once años que he retrasado tu amorosa
entrega a la muerte,
que te he condenado a velar mi sueño.
Hoy, que ya regreso de la vida,
que una helada quietud me va alejando
de todo lo que he sido,
vengo a decirte con once años de retraso: descansa en paz,
yo también voy a rendirme al silencio que tu invocaste.
Tristán Solarte
Perdóname el no haber roto las raíces
que en mí hundió tu recuerdo.
Perdóname el haber conservado tus trenzas,
tus negras trenzas que en el fondo del baúl familiar
continuaron creciendo.
Perdóname los sueños en que agoté tu ternura.
Perdóname tus gestos, tu voz,
que prolongaron mis noches de insomnio.
Perdóname las voces con que te he llamado.
Perdóname las fiebres que al borde de mi lecho
te han reclamado.
Y por haberte envejecido, perdóname, madre.
Once años han pasado sobre el rostro
que conservo en mi memoria.
Cada pena le ha abierto una arruga,
le ha arrancado una lágrima.
Once años te he hecho vivir en mí
con dolorosa y cotidiana hondura.
Once años arrancados al silencio absoluto,
a las aguas definitivamente niveladas.
Once años que he retrasado tu amorosa
entrega a la muerte,
que te he condenado a velar mi sueño.
Hoy, que ya regreso de la vida,
que una helada quietud me va alejando
de todo lo que he sido,
vengo a decirte con once años de retraso: descansa en paz,
yo también voy a rendirme al silencio que tu invocaste.
Tristán Solarte
sábado, 22 de agosto de 2009
sexta-feira, 21 de agosto de 2009
A tempestade (parte)
(...)
O céu mudou-se - e que transformação! Oh noite,
tempestades, trevas, sois surpreendentemente fortes,
embora sedutoras no vosso poderio, como o brilho
dos olhos sombrios duma mulher! Ao longe,
de monte em monte, entre os ecos dos rochedos
o trovão vibra. Não é duma única nuvem que vem,
mas cada montanha encontrou agora a sua linguagem,
e o Jura responde, com o seu manto de neblina
aos jubilosos Alpes, cujo apelo ressoa vivamente.
Tudo chegou contigo - noite tão gloriosa,
a que não se destina o nosso sono; deixa-me partilhar
do teu violento, longínquo encantamento
uma parte da tempestade e de ti mesma, noite!
Ah, como resplandece o lago, o fosfórico mar,
e a chuva abate-se a dançar sobre a terra!
Mais uma vez tudo é escuridão - e, agora, a alegria
das colinas sonoras freme com todo o seu excesso
como se sentissem prazer com o surto dum novo cataclismo.
(...)
Byron
in Poesia Romântica Inglesa (Byron, Shelley, Keats)
Relógio D'Água, 1992
Trad: Fernando Guimarães
O céu mudou-se - e que transformação! Oh noite,
tempestades, trevas, sois surpreendentemente fortes,
embora sedutoras no vosso poderio, como o brilho
dos olhos sombrios duma mulher! Ao longe,
de monte em monte, entre os ecos dos rochedos
o trovão vibra. Não é duma única nuvem que vem,
mas cada montanha encontrou agora a sua linguagem,
e o Jura responde, com o seu manto de neblina
aos jubilosos Alpes, cujo apelo ressoa vivamente.
Tudo chegou contigo - noite tão gloriosa,
a que não se destina o nosso sono; deixa-me partilhar
do teu violento, longínquo encantamento
uma parte da tempestade e de ti mesma, noite!
Ah, como resplandece o lago, o fosfórico mar,
e a chuva abate-se a dançar sobre a terra!
Mais uma vez tudo é escuridão - e, agora, a alegria
das colinas sonoras freme com todo o seu excesso
como se sentissem prazer com o surto dum novo cataclismo.
(...)
Byron
in Poesia Romântica Inglesa (Byron, Shelley, Keats)
Relógio D'Água, 1992
Trad: Fernando Guimarães
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quarta-feira, 19 de agosto de 2009
terça-feira, 18 de agosto de 2009
A primeira Elegia
Quem, se eu gritasse, me ouviria dentre as ordens
dos anjos? e mesmo que um me apertasse
de repente contra o coração: eu morreria da sua
existência mais forte. Pois o belo não é senão
o começo do terrível, que nós mal podemos ainda
suportar,
e admiramo-lo tanto porque, impassível, desdenha
destruir-nos. Todo o anjo é terrível.
E assim eu me reprimo e engulo o chamamento
dum soluçar escuro. Ai! de quem poderíamos
nós então valer-nos? Nem de anjos, nem de homens,
e os bichos perspicazes repararam já
que nós não estamos muito confiados em casa
neste mundo explicado. Resta-nos talvez
qualquer árvore na encosta, que de novo a vejamos
diariamente; resta-nos a estrada de ontem
e a fidelidade amimada dum costume,
que gostou de estar connosco, e por isso ficou e se não
foi.
Oh! e a Noite, a Noite, quando o vento cheio de espaço
dos mundos
nos desgasta a face - , a quem não restaria ela, a
ansiada
a das desilusões suaves, que a cada coração solitário
espera penosa. É mais leve aos amantes?
Ai! eles apenas se tapam um com o outro a sua sorte.
Pois não o sabes ainda? Arroja dos braços o vácuo
para os espaços que respiramos; talvez as aves
sintam o ar alargado com um voo mais íntimo.
Sim, as primaveras precisavam de ti. Muitas estrelas
esperavam de ti que as sentisses. Levantava-se
uma onda no passado e aproximava-se, ou,
ao passares pela janela aberta,
um violino entregava-se. Tudo isto era missão.
Mas cumpriste-a tu? Não estavas tu sempre
distraído ainda de expectativa, como se tudo te anun-
ciasse
uma Amada? (Onde queres tu abrigá-la,
se os grandes pensamentos estranhos em ti
entram e saem e muitas vezes pernoitam.)
Se, porém, a saudade te assalta, canta as Amantes;
longe
ainda de ser imortal bastante o seu sentimento célebre.
Canta aquelas - quase as invejas! - abandonadas
que tu
achavas tanto mais amorosas que as satisfeitas. Reco-
meça
sempre de novo o inacessível louvor;
pensa: o herói dura, mesmo a queda lhe foi
só um pretexto para ser: seu supremo nascer.
Mas as amantes recolhe-as a Natureza cansada
de novo em si, como se não houvesse duas vezes as
forças
para cumprir tal obra. Celebraste já bastante
a Gaspara Stampa, para que qualquer donzela
a quem fugiu o amado, ao exemplo sublimado
desta amante, sinta: Oh fosse eu como ela?
Pois não hão-de finalmente estas antiquíssimas dores
tornar-se-nos mais férteis? Não é tempo, vençamos a
prova?:
como a seta vence a corda, para, concentrada ao saltar,
se superar a si própria. Pois nenhures há parar.
Vozes, vozes. Ouve, meu coração, como somente
outrora
santos ouviam, de tal forma que o apelo imenso
os erguia do solo; eles, porém, impossíveis,
continuavam de joelhos e nem o atendiam:
de tal maneira ouviam. Não que tu, nem de longe,
suportasses
a voz de Deus. Mas ouve o hálito,
a mensagem ininterrupta, que se forma de silêncio.
Um rumor rola agora daqueles mortos jovens para ti.
Onde quer que entrasses, nas igrejas de Roma e Nápoles,
não ouviste o seu fado dirigir-se-te, tranquilo?
Ou era uma inscrição que se te impunha, sublime,
como há pouco a lápide de Santa Maria Formosa.
Que querem eles de mim?Que afaste baixinho
o véu da injustiça que, por vezes, impede um pouco
o movimento puro de seus espíritos.
É estranho, de certo, não morar mais a Terra,
não mais praticar actos apenas adquiridos,
às rosas, e a outras coisas tão prometedoras,
não mais dar o sentido dum futuro humano;
aquilo que fomos em mãos infinitamente tímidas
não mais ser, e abandonar até o próprio nome
como um brinquedo partido.
Estranho, não continuar a desejar os desejos. Estranho,
ver voar solto pelo espaço o que estava
em relação. E o estar-morto é custoso,
e há tanto a recuperar, até gradualmente se sentir
um pouco de Eternidade. - Mas os vivos cometem
todos o erro de distinguir demais.
Os anjos (diz-se) não sabem muitas vezes se andam
entre vivos ou entre mortos. A corrente eterna
arrasta pelos dois reinos todas as idades
sempre consigo, e em ambos as domina com a sua voz
potente.
Afinal já nos não precisam, os de morte precoce;
suavemente nos vamos desacostumando do que é
terreno, como nos alheamos
brandamente dos seios maternos. Mas nós, que preci-
samos
tão grandes mistérios, para quem do luto tantas vezes
nasce progresso feliz - : poderíamos nós ser sem eles?
Será vã a lenda de que outrora repassou o torpor árido?,
de tal forma que só no espaço assustado, de que de
repente partiu
um jovem quase divino, é que o vácuo entrou nessa
vibração
que agora nos arrasta e consola e ajuda.
Rainer Maria Rilke
in As Elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu
Editorial Inova Limitada
Versão Portuguesa de Paulo Quintela
dos anjos? e mesmo que um me apertasse
de repente contra o coração: eu morreria da sua
existência mais forte. Pois o belo não é senão
o começo do terrível, que nós mal podemos ainda
suportar,
e admiramo-lo tanto porque, impassível, desdenha
destruir-nos. Todo o anjo é terrível.
E assim eu me reprimo e engulo o chamamento
dum soluçar escuro. Ai! de quem poderíamos
nós então valer-nos? Nem de anjos, nem de homens,
e os bichos perspicazes repararam já
que nós não estamos muito confiados em casa
neste mundo explicado. Resta-nos talvez
qualquer árvore na encosta, que de novo a vejamos
diariamente; resta-nos a estrada de ontem
e a fidelidade amimada dum costume,
que gostou de estar connosco, e por isso ficou e se não
foi.
Oh! e a Noite, a Noite, quando o vento cheio de espaço
dos mundos
nos desgasta a face - , a quem não restaria ela, a
ansiada
a das desilusões suaves, que a cada coração solitário
espera penosa. É mais leve aos amantes?
Ai! eles apenas se tapam um com o outro a sua sorte.
Pois não o sabes ainda? Arroja dos braços o vácuo
para os espaços que respiramos; talvez as aves
sintam o ar alargado com um voo mais íntimo.
Sim, as primaveras precisavam de ti. Muitas estrelas
esperavam de ti que as sentisses. Levantava-se
uma onda no passado e aproximava-se, ou,
ao passares pela janela aberta,
um violino entregava-se. Tudo isto era missão.
Mas cumpriste-a tu? Não estavas tu sempre
distraído ainda de expectativa, como se tudo te anun-
ciasse
uma Amada? (Onde queres tu abrigá-la,
se os grandes pensamentos estranhos em ti
entram e saem e muitas vezes pernoitam.)
Se, porém, a saudade te assalta, canta as Amantes;
longe
ainda de ser imortal bastante o seu sentimento célebre.
Canta aquelas - quase as invejas! - abandonadas
que tu
achavas tanto mais amorosas que as satisfeitas. Reco-
meça
sempre de novo o inacessível louvor;
pensa: o herói dura, mesmo a queda lhe foi
só um pretexto para ser: seu supremo nascer.
Mas as amantes recolhe-as a Natureza cansada
de novo em si, como se não houvesse duas vezes as
forças
para cumprir tal obra. Celebraste já bastante
a Gaspara Stampa, para que qualquer donzela
a quem fugiu o amado, ao exemplo sublimado
desta amante, sinta: Oh fosse eu como ela?
Pois não hão-de finalmente estas antiquíssimas dores
tornar-se-nos mais férteis? Não é tempo, vençamos a
prova?:
como a seta vence a corda, para, concentrada ao saltar,
se superar a si própria. Pois nenhures há parar.
Vozes, vozes. Ouve, meu coração, como somente
outrora
santos ouviam, de tal forma que o apelo imenso
os erguia do solo; eles, porém, impossíveis,
continuavam de joelhos e nem o atendiam:
de tal maneira ouviam. Não que tu, nem de longe,
suportasses
a voz de Deus. Mas ouve o hálito,
a mensagem ininterrupta, que se forma de silêncio.
Um rumor rola agora daqueles mortos jovens para ti.
Onde quer que entrasses, nas igrejas de Roma e Nápoles,
não ouviste o seu fado dirigir-se-te, tranquilo?
Ou era uma inscrição que se te impunha, sublime,
como há pouco a lápide de Santa Maria Formosa.
Que querem eles de mim?Que afaste baixinho
o véu da injustiça que, por vezes, impede um pouco
o movimento puro de seus espíritos.
É estranho, de certo, não morar mais a Terra,
não mais praticar actos apenas adquiridos,
às rosas, e a outras coisas tão prometedoras,
não mais dar o sentido dum futuro humano;
aquilo que fomos em mãos infinitamente tímidas
não mais ser, e abandonar até o próprio nome
como um brinquedo partido.
Estranho, não continuar a desejar os desejos. Estranho,
ver voar solto pelo espaço o que estava
em relação. E o estar-morto é custoso,
e há tanto a recuperar, até gradualmente se sentir
um pouco de Eternidade. - Mas os vivos cometem
todos o erro de distinguir demais.
Os anjos (diz-se) não sabem muitas vezes se andam
entre vivos ou entre mortos. A corrente eterna
arrasta pelos dois reinos todas as idades
sempre consigo, e em ambos as domina com a sua voz
potente.
Afinal já nos não precisam, os de morte precoce;
suavemente nos vamos desacostumando do que é
terreno, como nos alheamos
brandamente dos seios maternos. Mas nós, que preci-
samos
tão grandes mistérios, para quem do luto tantas vezes
nasce progresso feliz - : poderíamos nós ser sem eles?
Será vã a lenda de que outrora repassou o torpor árido?,
de tal forma que só no espaço assustado, de que de
repente partiu
um jovem quase divino, é que o vácuo entrou nessa
vibração
que agora nos arrasta e consola e ajuda.
Rainer Maria Rilke
in As Elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu
Editorial Inova Limitada
Versão Portuguesa de Paulo Quintela
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sexta-feira, 14 de agosto de 2009
O homem de mãos tristes
O homem de mãos tristes há muitos anos que trabalhava na gruta: a arrancar pedras, a martelar nas paredes, a amontoar os quartzos, granitos e sílicas; por vezes, a talho de foice, um corte, um rasgo profundo nas veias; as mãos doíam: trabalhavam arduamente. Os olhos, esses, habituados à escuridão e a ver os morcegos - cegam quando encontram a luz do dia. É quase um homem primitivo. Percorre como ninguém os labirínticos caminhos, por entre bifurcações, nessas curvas e meandros das cavernas; porém, quando sai desses lugares recônditos, tem dificuldade em regressar a casa: costuma perder-se.
Uma vez houve, em que debaixo de um sol abrasador, andou horas a fio, sem conseguir acertar direcção com a bússola. Os sapatos gastos, já quase rotos, ficaram na estrada de pó de tanto caminhar e, só os pés (em sangue) o arrastaram até a uma taberna ao pé de umas casas pintadas de cores pálidas.
O homem de mãos tristes tinha sede, muita sede. Sentou-se e agarrou no copo de vidro. As mãos pareciam um coração aos gritos, pedindo socorro e, a sofreguidão era tanta, que, não medindo a força, desfizeram o copo (ficando em estilhaços em cima da mesa de madeira) antes sequer, de a sede ser saciada. Ouviu-se, no silêncio atónito dos olhos dos aldeões agarrados aos copos do vinho, um velhote (habitualmente calado) dizer: «Arreda, demónio!»
O homem de mãos tristes, engoliu em seco e fixou os olhos na pele, nos dedos encardidos e nas unhas duras e sujas; essas mãos que, estiveram muitos anos debaixo de pó, não encontraram Deus e, dos dedos, nasceram apenas oliveiras bravias. No rosto enrugado, nasceu mais uma ruga de tristeza nesse momento. O velhote (habitualmente calado) reparou no suspiro, na golfada de ar que, por entre, os lábios ligeiramente separados, revelou uma boca sem dentes. Apesar de não ter muitas memórias, o homem de mãos tristes, sabia porque perdera os dentes - fora de tanto os ranger, quando as dores entravam pelos ossos das mãos-, esses vinte e sete ossos principais, já quase desfeitos.
Partira a mão direita em Maio dos anos oitenta, a rachar lenha, num inverno rigoroso. Passou toda a estação das chuvas, enfiado em casa. Acompanhava-o, sem ele saber, um grilo macho sentado ao pé da lareira - ficava quieto no seu lugar em silêncio; era um animal mas pressentia o perigo, e sabia, de alguma forma, que tinha de manter as asas quietas - para que não roçassem uma na outra e produzissem sons que denunciassem a sua presença. Tornou-se um grilo doméstico, não fugia, mantinha-se ali, mesmo quando pela fresta da janela, após a caída da chuva,o cheiro das fêmeas lhe seduzisse o canto.Algumas vezes, aventurou-se a seguir, nesse Inverno, esse homem. Viu-lhe as mãos - como eram dotadas de formas específicas de fazer as coisas: curavam as próprias feridas hasteadas em pus; enchiam as florestas de sons -quando, com um machado golpeava o casco de mais um tronco de uma árvore.As mãos sabiam o que faziam e, raramente o sorriso nelas se reflectia - estendiam-se fios de desassossego na corrente sanguínea; o miolo das sementes de algodão, embebido nesse sangue quando encontravam o fogo na lareira, ardiam de súbito, como se possuísem álcool etílico.
O homem de mãos tristes nunca morre. Não tem sombra. Quando se move, dizem que traz o sol pendurado atrás da cabeça, e, um menino quando o sente passar, sorri: «Olha, um pássaro vestido de homem!»
O homem não conhece as margens do rio, são as mãos tristes, que lutam, são o ar debaixo da montanha. Manejam o uso hábil de venenos- que fecundos, extraem a ferrugem dos corpos e inebriam mulheres desconsoladas com a vida. O homem das mãos tristes fez nascer uma escultura da árvore derrubada, ainda com os frutos de cores vivas nos ramos. Uma mulher atraída pelo espírito da morte, veio beber dos frutos o sumo fértil desse veneno doce. No útero, espécies férteis começaram a ser geradas. A barriga desatou a crescer, com o veneno a entupir as artérias,e os frutos verdes pesavam no pomar desse útero forrado de sombras. O homem com as mãos frias espancou-lhe com os olhos esse ninho,e, ela, fugiu para as florestas arrastando-se em sangue, que caía pela terra, em todos os lugares por por onde pés deixaram a marca.Nasceram, como que marcando um mapa, árvores de frutos venenosos.
Durante anos, meninos cheios de fome, vinham arrastados até encontrarem o odor sumarento dos néctares e, traídos pelas abelhas que zonzeavam por ali, morriam amontoados junto das silvas, do carreiro das formigas, que passavam por cima da carne em petrufação. Os frutos, tinham no interior o sangue venenoso, que fazia parar o coração de quem tinha fome. Quem se sentasse numa árvore, para saciar a dor da alma, grotescamente provava o sémen do homem de mãos tristes. Esse, alheio à morte, continua a trabalhar arduamente na gruta; redime-se pela dor que ataca estas mãos: é a única prova que tem de que ainda está vivo.
Antes de sair da taberna, lavou as mãos com sabão azul, sorriu no espelho fusco da casa de banho e, tirou das calças um saco com algumas moedas de ouro que abandonou junto do copo estilhaçado. Pediu umas botas. Uma rapariga virgem, limpou-lhe o sangue dos pés numa tina de água límpida - e o homem partiu na névoa da noite, como um vulto, que não voltará a regressar. Procura de novo, uma caverna onde se possa esconder da luz do sol e, trabalhar com as mãos que Deus lhe deu: até que a morte se lembre da sua existência.
Uma vez houve, em que debaixo de um sol abrasador, andou horas a fio, sem conseguir acertar direcção com a bússola. Os sapatos gastos, já quase rotos, ficaram na estrada de pó de tanto caminhar e, só os pés (em sangue) o arrastaram até a uma taberna ao pé de umas casas pintadas de cores pálidas.
O homem de mãos tristes tinha sede, muita sede. Sentou-se e agarrou no copo de vidro. As mãos pareciam um coração aos gritos, pedindo socorro e, a sofreguidão era tanta, que, não medindo a força, desfizeram o copo (ficando em estilhaços em cima da mesa de madeira) antes sequer, de a sede ser saciada. Ouviu-se, no silêncio atónito dos olhos dos aldeões agarrados aos copos do vinho, um velhote (habitualmente calado) dizer: «Arreda, demónio!»
O homem de mãos tristes, engoliu em seco e fixou os olhos na pele, nos dedos encardidos e nas unhas duras e sujas; essas mãos que, estiveram muitos anos debaixo de pó, não encontraram Deus e, dos dedos, nasceram apenas oliveiras bravias. No rosto enrugado, nasceu mais uma ruga de tristeza nesse momento. O velhote (habitualmente calado) reparou no suspiro, na golfada de ar que, por entre, os lábios ligeiramente separados, revelou uma boca sem dentes. Apesar de não ter muitas memórias, o homem de mãos tristes, sabia porque perdera os dentes - fora de tanto os ranger, quando as dores entravam pelos ossos das mãos-, esses vinte e sete ossos principais, já quase desfeitos.
Partira a mão direita em Maio dos anos oitenta, a rachar lenha, num inverno rigoroso. Passou toda a estação das chuvas, enfiado em casa. Acompanhava-o, sem ele saber, um grilo macho sentado ao pé da lareira - ficava quieto no seu lugar em silêncio; era um animal mas pressentia o perigo, e sabia, de alguma forma, que tinha de manter as asas quietas - para que não roçassem uma na outra e produzissem sons que denunciassem a sua presença. Tornou-se um grilo doméstico, não fugia, mantinha-se ali, mesmo quando pela fresta da janela, após a caída da chuva,o cheiro das fêmeas lhe seduzisse o canto.Algumas vezes, aventurou-se a seguir, nesse Inverno, esse homem. Viu-lhe as mãos - como eram dotadas de formas específicas de fazer as coisas: curavam as próprias feridas hasteadas em pus; enchiam as florestas de sons -quando, com um machado golpeava o casco de mais um tronco de uma árvore.As mãos sabiam o que faziam e, raramente o sorriso nelas se reflectia - estendiam-se fios de desassossego na corrente sanguínea; o miolo das sementes de algodão, embebido nesse sangue quando encontravam o fogo na lareira, ardiam de súbito, como se possuísem álcool etílico.
O homem de mãos tristes nunca morre. Não tem sombra. Quando se move, dizem que traz o sol pendurado atrás da cabeça, e, um menino quando o sente passar, sorri: «Olha, um pássaro vestido de homem!»
O homem não conhece as margens do rio, são as mãos tristes, que lutam, são o ar debaixo da montanha. Manejam o uso hábil de venenos- que fecundos, extraem a ferrugem dos corpos e inebriam mulheres desconsoladas com a vida. O homem das mãos tristes fez nascer uma escultura da árvore derrubada, ainda com os frutos de cores vivas nos ramos. Uma mulher atraída pelo espírito da morte, veio beber dos frutos o sumo fértil desse veneno doce. No útero, espécies férteis começaram a ser geradas. A barriga desatou a crescer, com o veneno a entupir as artérias,e os frutos verdes pesavam no pomar desse útero forrado de sombras. O homem com as mãos frias espancou-lhe com os olhos esse ninho,e, ela, fugiu para as florestas arrastando-se em sangue, que caía pela terra, em todos os lugares por por onde pés deixaram a marca.Nasceram, como que marcando um mapa, árvores de frutos venenosos.
Durante anos, meninos cheios de fome, vinham arrastados até encontrarem o odor sumarento dos néctares e, traídos pelas abelhas que zonzeavam por ali, morriam amontoados junto das silvas, do carreiro das formigas, que passavam por cima da carne em petrufação. Os frutos, tinham no interior o sangue venenoso, que fazia parar o coração de quem tinha fome. Quem se sentasse numa árvore, para saciar a dor da alma, grotescamente provava o sémen do homem de mãos tristes. Esse, alheio à morte, continua a trabalhar arduamente na gruta; redime-se pela dor que ataca estas mãos: é a única prova que tem de que ainda está vivo.
Antes de sair da taberna, lavou as mãos com sabão azul, sorriu no espelho fusco da casa de banho e, tirou das calças um saco com algumas moedas de ouro que abandonou junto do copo estilhaçado. Pediu umas botas. Uma rapariga virgem, limpou-lhe o sangue dos pés numa tina de água límpida - e o homem partiu na névoa da noite, como um vulto, que não voltará a regressar. Procura de novo, uma caverna onde se possa esconder da luz do sol e, trabalhar com as mãos que Deus lhe deu: até que a morte se lembre da sua existência.
XX
Quem vem lá, ansioso, rude, místico, nu?
Como retiro forças da carne que me alimenta?
Em todo o caso, o que é um homem? Quem sou eu? Quem és tu?
Tudo o que assinalo meu chamarás teu,
Ou então perderias tempo a escutar-me.
Não lamento o que o mundo lamenta,
Que os meses são vazios e a terra apenas lodoçal e imundície.
O queixume e a humilhação juntam-se aos remédios para os inválidos, o
conformismo vai até à quarta geração,
Eu uso o chapéu como me apetece, dentro ou fora de casa.
Porque é que devia rezar? E venerar e ser cerimonioso?
Tendo examinado os estratos, analisando-os ao pormenor, consultando os
mestres, calculando com rigor,
Não encontro gordura mais agradável do que a que tenho agarrada aos meus
próprios ossos.
Em toda a gente vejo-me a mim mesmo, ninguém é mais do que eu, nem um
grão de cereal menos,
E o bem e o mal que digo de mim digo deles.
Sei que sou sólido e são,
Os objectos do universo convergem eternamente para mim,
Tudo foi escrito para mim e devo decifrar o seu sentido.
Sei que sou imortal,
Sei que esta minha órbita não pode ser traçada pelo compasso de um
carpinteiro,
Sei que não me apagarei como o fogo do archote que uma criança leva pela noite.
Sei que sou majestoso,
Não atormento o espírito para quem se defenda ou explique,
Sei que as leis elementares nunca se desculpam,
(No fim de contas, reconheço que o meu orgulho não é mais alto que o nível
onde edifico a minha casa).
Existo como sou, e isso basta,
Se mais ninguém no mundo o sabe fico satisfeito,
E se todos e cada um o sabem fico satisfeito.
Há um mundo que o sabe e é sem dúvida o mais vasto para mim, e esse sou
eu próprio,
E se o reconheço hoje ou dentro de dez mil ou dez milhões de anos,
Alegremente o posso aceitar agora, ou alegremente posso esperar.
O apoio do meu pé é entalhado em granito,
Rio-me daquilo que chamas dissolução,
E conheço a amplitude do tempo.
Walt Whitman
in Canto de Mim Mesmo
Assírio & Alvim, 1999
Como retiro forças da carne que me alimenta?
Em todo o caso, o que é um homem? Quem sou eu? Quem és tu?
Tudo o que assinalo meu chamarás teu,
Ou então perderias tempo a escutar-me.
Não lamento o que o mundo lamenta,
Que os meses são vazios e a terra apenas lodoçal e imundície.
O queixume e a humilhação juntam-se aos remédios para os inválidos, o
conformismo vai até à quarta geração,
Eu uso o chapéu como me apetece, dentro ou fora de casa.
Porque é que devia rezar? E venerar e ser cerimonioso?
Tendo examinado os estratos, analisando-os ao pormenor, consultando os
mestres, calculando com rigor,
Não encontro gordura mais agradável do que a que tenho agarrada aos meus
próprios ossos.
Em toda a gente vejo-me a mim mesmo, ninguém é mais do que eu, nem um
grão de cereal menos,
E o bem e o mal que digo de mim digo deles.
Sei que sou sólido e são,
Os objectos do universo convergem eternamente para mim,
Tudo foi escrito para mim e devo decifrar o seu sentido.
Sei que sou imortal,
Sei que esta minha órbita não pode ser traçada pelo compasso de um
carpinteiro,
Sei que não me apagarei como o fogo do archote que uma criança leva pela noite.
Sei que sou majestoso,
Não atormento o espírito para quem se defenda ou explique,
Sei que as leis elementares nunca se desculpam,
(No fim de contas, reconheço que o meu orgulho não é mais alto que o nível
onde edifico a minha casa).
Existo como sou, e isso basta,
Se mais ninguém no mundo o sabe fico satisfeito,
E se todos e cada um o sabem fico satisfeito.
Há um mundo que o sabe e é sem dúvida o mais vasto para mim, e esse sou
eu próprio,
E se o reconheço hoje ou dentro de dez mil ou dez milhões de anos,
Alegremente o posso aceitar agora, ou alegremente posso esperar.
O apoio do meu pé é entalhado em granito,
Rio-me daquilo que chamas dissolução,
E conheço a amplitude do tempo.
Walt Whitman
in Canto de Mim Mesmo
Assírio & Alvim, 1999
quinta-feira, 13 de agosto de 2009
Ode à indolência
Eles não trabalham,
nem fiam.
S. Mateus, VI, 28
Surgiram, numa manhã, diante de mim três formas
de perfil, com cabeças inclinadas e as mãos juntas.
Uma atrás das outras, serenamente, elas passavam
com silenciosas sandálias, ornadas apenas dos seus vestidos
brancos;
assim caminhavam como as figuras inscritas numa urna de
mármore
enquanto a voltamos, para que nos mostre a sua outra face.
E, de novo, apareceram: como se principiássemos a deslocar
mais uma vez a urna e, depois, olhássemos as mesmas
imagens.
Eram para mim desconhecidas; também para os que não
ignoram
a arte de Fídias, por vezes são misteriosas as figuras de cada
vaso.
Sombras, porque me foi impossível reconhecer-vos?
Porque surgistes ocultas por essa máscara de silêncio?
Foi, acaso, graças a um acordo secreto e furtivo
que vos esquivastes, deixando que sem destino se percam
os meus dias inúteis? Amadurecida estava a hora que se
desprendeu;
o ditoso nevoeiro que nasce da indolência estival
afogou-me os olhos; o meu pulso ficou ainda mais lento;
a dor já não me feria e a grinalda do prazer perdeu as suas flores.
Oh, porque não vos desvanecestes, deixando a minha
consciência
vazia de qualquer desígnio, a não ser o do nada.
Porque viestes de novo, tão lentas, ao meu encontro?
O meu sono fora tecido com imagens obscuras;
era a minha alma semelhante a uma planície aspergida
de flores, sombras agitadas e indistintas luzes;
as nuvens permaneciam sobre a manhã, mas a chuva não
caiu
apesar de se verem nas suas pálpebras as suaves lágrimas de
Maio;
pela janela aberta, junto de uma vinha cheia de novas folhas,
entrava a canção de uma ave, o calor das flores que nasciam.
Sombras! Foi este o momento em que vos despedistes
e, sobre a orla dos vossos vestidos, não desceu o meu
pranto
Vieram ainda uma terceira vez e, passando, cada uma
voltou para mim, durante um instante, a sua face.
Depois desapareceram; para persegui-las, sentia arder o
desejo
de ter asas, porque reconheci cheio de dor aquelas três
sombras.
A primeira era uma formosa donzela, e chamava-se Amor;
a segunda era a Ambição, de rosto pálido,
cujos olhos fatigados permaneciam sempre em vigília;
e a última, aquela que eu amei tão veementemente
apesar de todas as condenações, era a virgem indócil
em que reconheci a Poesia, meu demónio.
Assim desapareceram e, naquele momento, como queria ter
asas.
Ó loucura! Que significa o Amor, e onde encontrá-lo?
E a Ambição, que nasce apenas dum acesso de febre
e atravessa, sem se demorar, o coração estreito do homem.
Nem sequer te desejo, Poesia: a mim, nunca vieste mostrar
a alegria, tão suave como os meios-dias sonolentos
ou o anoitecer molhado pelo mel da indolência.
Ah! como gostaria de viver protegido de todos os desgostos
até esquecer qual é o movimento das luas
ou deixar de ouvir as vozes dos outros, sensatas e diligentes.
Adeus, três sombras, adeus! Não podereis fazer com que
levante
a minha cabeça, apoiada sobre a erva florida e tão fresca,
porque não quero ser, como numa parábola, o cordeiro que
todos vêm acariciar,
ou que se transformem os elogios no meu alimento.
Desaparecerei suavemente diante dos meus olhos, e mais
uma vez
transformai-vos em personagens obscuras sobre a urna do
sonho.
Adeus! Para a noite existem dentro de mim outras visões
e, para o dia, guardo ainda indistintas imagens.
Sombras, dissipai-vos agora. Longe da indolência do meu
espírito
caminhai para as nuvens, e nunca mais regresseis...
Keats
in Poesia Romântica Inglesa (Byron, Shelley, Keats)
Relógio D'Água, 1992
Trad: Fernando Guimarães
nem fiam.
S. Mateus, VI, 28
Surgiram, numa manhã, diante de mim três formas
de perfil, com cabeças inclinadas e as mãos juntas.
Uma atrás das outras, serenamente, elas passavam
com silenciosas sandálias, ornadas apenas dos seus vestidos
brancos;
assim caminhavam como as figuras inscritas numa urna de
mármore
enquanto a voltamos, para que nos mostre a sua outra face.
E, de novo, apareceram: como se principiássemos a deslocar
mais uma vez a urna e, depois, olhássemos as mesmas
imagens.
Eram para mim desconhecidas; também para os que não
ignoram
a arte de Fídias, por vezes são misteriosas as figuras de cada
vaso.
Sombras, porque me foi impossível reconhecer-vos?
Porque surgistes ocultas por essa máscara de silêncio?
Foi, acaso, graças a um acordo secreto e furtivo
que vos esquivastes, deixando que sem destino se percam
os meus dias inúteis? Amadurecida estava a hora que se
desprendeu;
o ditoso nevoeiro que nasce da indolência estival
afogou-me os olhos; o meu pulso ficou ainda mais lento;
a dor já não me feria e a grinalda do prazer perdeu as suas flores.
Oh, porque não vos desvanecestes, deixando a minha
consciência
vazia de qualquer desígnio, a não ser o do nada.
Porque viestes de novo, tão lentas, ao meu encontro?
O meu sono fora tecido com imagens obscuras;
era a minha alma semelhante a uma planície aspergida
de flores, sombras agitadas e indistintas luzes;
as nuvens permaneciam sobre a manhã, mas a chuva não
caiu
apesar de se verem nas suas pálpebras as suaves lágrimas de
Maio;
pela janela aberta, junto de uma vinha cheia de novas folhas,
entrava a canção de uma ave, o calor das flores que nasciam.
Sombras! Foi este o momento em que vos despedistes
e, sobre a orla dos vossos vestidos, não desceu o meu
pranto
Vieram ainda uma terceira vez e, passando, cada uma
voltou para mim, durante um instante, a sua face.
Depois desapareceram; para persegui-las, sentia arder o
desejo
de ter asas, porque reconheci cheio de dor aquelas três
sombras.
A primeira era uma formosa donzela, e chamava-se Amor;
a segunda era a Ambição, de rosto pálido,
cujos olhos fatigados permaneciam sempre em vigília;
e a última, aquela que eu amei tão veementemente
apesar de todas as condenações, era a virgem indócil
em que reconheci a Poesia, meu demónio.
Assim desapareceram e, naquele momento, como queria ter
asas.
Ó loucura! Que significa o Amor, e onde encontrá-lo?
E a Ambição, que nasce apenas dum acesso de febre
e atravessa, sem se demorar, o coração estreito do homem.
Nem sequer te desejo, Poesia: a mim, nunca vieste mostrar
a alegria, tão suave como os meios-dias sonolentos
ou o anoitecer molhado pelo mel da indolência.
Ah! como gostaria de viver protegido de todos os desgostos
até esquecer qual é o movimento das luas
ou deixar de ouvir as vozes dos outros, sensatas e diligentes.
Adeus, três sombras, adeus! Não podereis fazer com que
levante
a minha cabeça, apoiada sobre a erva florida e tão fresca,
porque não quero ser, como numa parábola, o cordeiro que
todos vêm acariciar,
ou que se transformem os elogios no meu alimento.
Desaparecerei suavemente diante dos meus olhos, e mais
uma vez
transformai-vos em personagens obscuras sobre a urna do
sonho.
Adeus! Para a noite existem dentro de mim outras visões
e, para o dia, guardo ainda indistintas imagens.
Sombras, dissipai-vos agora. Longe da indolência do meu
espírito
caminhai para as nuvens, e nunca mais regresseis...
Keats
in Poesia Romântica Inglesa (Byron, Shelley, Keats)
Relógio D'Água, 1992
Trad: Fernando Guimarães
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quarta-feira, 12 de agosto de 2009
XVII
Quanto mais claro
Vejo em mim, mais escuro é o que vejo.
Quanto mais compreendo
Menos me sinto compreendido. Ó horror
[…]paradoxal deste pensar...
Fernando Pessoa
in Poemas Dramáticos
Edições Ática,
Vejo em mim, mais escuro é o que vejo.
Quanto mais compreendo
Menos me sinto compreendido. Ó horror
[…]paradoxal deste pensar...
Fernando Pessoa
in Poemas Dramáticos
Edições Ática,
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segunda-feira, 10 de agosto de 2009
XXVI
Agora só me resta ouvir,
Para juntar o que oiço a este canto, para deixar que os sons contribuam para
ele.
Oiço bravuras de pássaros, o rumor do trigo que cresce, o crepitar das
chamas, o crepitar da lenha com que cozinho,
Oiço o som que amo, o som da voz humana,
Oiço todos os sons, juntos, combinados, fundidos ou seguindo-se,
Sons da cidade e sons fora da cidade, sons do dia e da noite,
Jovens conversando com quem gostam, o alto risco dos trabalhadores quando
almoçam,
Os irados sons da amizade quebrada, a voz débil dos doentes,
O juiz com as mãos agarradas à secretária, com os lábios pálidos ditando uma
sentença de morte,
As elevadas vozes dos estivadores descarregando os navios junto ao molhe,
o refrão dos que levantam a âncora,
As sirenes de alarme que tocam, o grito de fogo, o zumbido imediato dos
motores de dos carros dos bombeiros com as sirenes e as luzes de
cores,
O silvo do vapor, o sólido rodar da caravana de carroças que se aproximam,
A marcha lenta tocada à cabeça do grupo que avança aos pares,
(Vão a algum funeral, as bandeiras estão cobertas de musselina negra).
Oiço o violoncelo, (é o lamento de um coração jovem),
Oiço a corneta de chaves penetrando velozmente nos meus ouvidos,
Fazendo estremecer o meu ventre e o meu peito num doce espasmo.
Oiço o coro da ópera,
Ah, isto sim, é música - isto está em harmonia comigo.
Grandiosa e fresca como a criação enche-me a voz do tenor,
A órbita flexível da sua boca derrama-se e sacia-me.
Oiço a perfeita soprano (que vale o meu canto comparado com o seu?)
A orquestra conduz-me em círculos mais largos que os de Urano,
Desperta-me ardores de que nunca suspeitara,
Faz-me navegar, tocar águas com os pés nus, as ondas que os lambem
indolentemente,
O granizo bate-me com toda a fúria, perco o ânimo,
Mergulho na doce morfina, estrangulam-me os falsos sinais da morte,
Por fim, de novo me ergo para sentir o enigma dos enigmas,
Isso a que chamamos Ser.
Walt Whitman
in Canto de Mim Mesmo
Assírio & Alvim, 1999
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poesia,
Walt Whitman
I
Celebro-me e canto-me,
E aquilo que assumo tu deves assumir,
Pois cada átomo que a mim pertence a ti pertence também.
Vagueio e convido a minha alma,
À vontade vagueio e inclino-me a observar a erva do Verão.
A minha língua, cada átomo do meu sangue, composto deste solo, deste ar,
Aqui nascido de pais aqui nascido de outros pais aqui nascido, e dos seus
pais também
Eu, aos trinta e sete anos, de perfeita saúde começo,
Esperando que só a morte me faça parar.
Suspensos os credos e as escolas,
Retiro-me por certo tempo, deles saturado mas não esquecido,
Sou o porto do bem e do mal, e seja como for falo,
Natureza sem obstáculos com a sua energia original.
Walt Whitman
in Canto de Mim Mesmo
Assírio & Alvim, 1999
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Fotografia Beatriz Agulha,
poesia,
Walt Whitman
domingo, 9 de agosto de 2009
recebe-me, coração espesso de sangue,
papel, com quem (medido e franco, como era seu costume:
«a alma dilacero», pensou, e retomou a pena:)
até ao fim, terei as mãos pousadas
não em ti, mas no ar puro que o vento
leva à leve corola do teu corpo,
meu filho. Recebe-me
folha que o tempo dobra ao fim da tarde, («como se a frase
trouxesse, fria e dócil, uma esperança de trazer por casa;
deste cigarro a outro, alguma coisa se perdeu»)
tu, terra negra, húmida de arbustos,
coisa desmazelada para servir, de casa em casa, quando
o cântaro se quebra,
terra minha, feita de sangue e ossos e
o vácuo chão da carne,
meus olhos até ao fim abertos, esses que nada esperam
nada viram senão
o simples sopro, a folha - recebe-me, alegria sem
idade de razão,
inteira vida a cada instante eterno, (pousava dor e mágoa,
a luz dos instrumentos na espessura;
e retomava a pena:)
nos hoje sentados, em cadeiras errantes, nós que não merecemos a tua
[alegria nem
o choro sobre um cartão, desenhado a lápis,
nós que cerrámos os ombros e as portas e ficámos a ver passar
águas sem barcos,
um dia ou outro em Madagáscar, gente pequena, no Sodré sem cais
recebe-nos
não pelo mérito das bocas lavadas e das camisas brancas
e do rojão que cabe a cada um, não pela virtude
não pela viagem, em muitos mundos partida nunca chegada
não pelo vício menor do sofrimento, não pela sede que grita água! quando
todas as folhas ardem, não pelo fogo pois
só vemos o fumo e não vemos, só cegos, só o
sangue que passa, uma vez mais, no coração («virás no teu sangue»,
lembrou - casa, colina, árvore, céu, sempre - não,
«viverás no teu sangue»:)
(...)
António Franco Alexandre
in Poemas
Assírio & Alvim, 1996
papel, com quem (medido e franco, como era seu costume:
«a alma dilacero», pensou, e retomou a pena:)
até ao fim, terei as mãos pousadas
não em ti, mas no ar puro que o vento
leva à leve corola do teu corpo,
meu filho. Recebe-me
folha que o tempo dobra ao fim da tarde, («como se a frase
trouxesse, fria e dócil, uma esperança de trazer por casa;
deste cigarro a outro, alguma coisa se perdeu»)
tu, terra negra, húmida de arbustos,
coisa desmazelada para servir, de casa em casa, quando
o cântaro se quebra,
terra minha, feita de sangue e ossos e
o vácuo chão da carne,
meus olhos até ao fim abertos, esses que nada esperam
nada viram senão
o simples sopro, a folha - recebe-me, alegria sem
idade de razão,
inteira vida a cada instante eterno, (pousava dor e mágoa,
a luz dos instrumentos na espessura;
e retomava a pena:)
nos hoje sentados, em cadeiras errantes, nós que não merecemos a tua
[alegria nem
o choro sobre um cartão, desenhado a lápis,
nós que cerrámos os ombros e as portas e ficámos a ver passar
águas sem barcos,
um dia ou outro em Madagáscar, gente pequena, no Sodré sem cais
recebe-nos
não pelo mérito das bocas lavadas e das camisas brancas
e do rojão que cabe a cada um, não pela virtude
não pela viagem, em muitos mundos partida nunca chegada
não pelo vício menor do sofrimento, não pela sede que grita água! quando
todas as folhas ardem, não pelo fogo pois
só vemos o fumo e não vemos, só cegos, só o
sangue que passa, uma vez mais, no coração («virás no teu sangue»,
lembrou - casa, colina, árvore, céu, sempre - não,
«viverás no teu sangue»:)
(...)
António Franco Alexandre
in Poemas
Assírio & Alvim, 1996
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poetas portugueses
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