sexta-feira, 14 de agosto de 2009

O homem de mãos tristes

O homem de mãos tristes há muitos anos que trabalhava na gruta: a arrancar pedras, a martelar nas paredes, a amontoar os quartzos, granitos e sílicas; por vezes, a talho de foice, um corte, um rasgo profundo nas veias; as mãos doíam: trabalhavam arduamente. Os olhos, esses, habituados à escuridão e a ver os morcegos - cegam quando encontram a luz do dia. É quase um homem primitivo. Percorre como ninguém os labirínticos caminhos, por entre bifurcações, nessas curvas e meandros das cavernas; porém, quando sai desses lugares recônditos, tem dificuldade em regressar a casa: costuma perder-se.
Uma vez houve, em que debaixo de um sol abrasador, andou horas a fio, sem conseguir acertar direcção com a bússola. Os sapatos gastos, já quase rotos, ficaram na estrada de pó de tanto caminhar e, só os pés (em sangue) o arrastaram até a uma taberna ao pé de umas casas pintadas de cores pálidas.
O homem de mãos tristes tinha sede, muita sede. Sentou-se e agarrou no copo de vidro. As mãos pareciam um coração aos gritos, pedindo socorro e, a sofreguidão era tanta, que, não medindo a força, desfizeram o copo (ficando em estilhaços em cima da mesa de madeira) antes sequer, de a sede ser saciada. Ouviu-se, no silêncio atónito dos olhos dos aldeões agarrados aos copos do vinho, um velhote (habitualmente calado) dizer: «Arreda, demónio!»
O homem de mãos tristes, engoliu em seco e fixou os olhos na pele, nos dedos encardidos e nas unhas duras e sujas; essas mãos que, estiveram muitos anos debaixo de pó, não encontraram Deus e, dos dedos, nasceram apenas oliveiras bravias. No rosto enrugado, nasceu mais uma ruga de tristeza nesse momento. O velhote (habitualmente calado) reparou no suspiro, na golfada de ar que, por entre, os lábios ligeiramente separados, revelou uma boca sem dentes. Apesar de não ter muitas memórias, o homem de mãos tristes, sabia porque perdera os dentes - fora de tanto os ranger, quando as dores entravam pelos ossos das mãos-, esses vinte e sete ossos principais, já quase desfeitos.
Partira a mão direita em Maio dos anos oitenta, a rachar lenha, num inverno rigoroso. Passou toda a estação das chuvas, enfiado em casa. Acompanhava-o, sem ele saber, um grilo macho sentado ao pé da lareira - ficava quieto no seu lugar em silêncio; era um animal mas pressentia o perigo, e sabia, de alguma forma, que tinha de manter as asas quietas - para que não roçassem uma na outra e produzissem sons que denunciassem a sua presença. Tornou-se um grilo doméstico, não fugia, mantinha-se ali, mesmo quando pela fresta da janela, após a caída da chuva,o cheiro das fêmeas lhe seduzisse o canto.Algumas vezes, aventurou-se a seguir, nesse Inverno, esse homem. Viu-lhe as mãos - como eram dotadas de formas específicas de fazer as coisas: curavam as próprias feridas hasteadas em pus; enchiam as florestas de sons -quando, com um machado golpeava o casco de mais um tronco de uma árvore.As mãos sabiam o que faziam e, raramente o sorriso nelas se reflectia - estendiam-se fios de desassossego na corrente sanguínea; o miolo das sementes de algodão, embebido nesse sangue quando encontravam o fogo na lareira, ardiam de súbito, como se possuísem álcool etílico.
O homem de mãos tristes nunca morre. Não tem sombra. Quando se move, dizem que traz o sol pendurado atrás da cabeça, e, um menino quando o sente passar, sorri: «Olha, um pássaro vestido de homem!»
O homem não conhece as margens do rio, são as mãos tristes, que lutam, são o ar debaixo da montanha. Manejam o uso hábil de venenos- que fecundos, extraem a ferrugem dos corpos e inebriam mulheres desconsoladas com a vida. O homem das mãos tristes fez nascer uma escultura da árvore derrubada, ainda com os frutos de cores vivas nos ramos. Uma mulher atraída pelo espírito da morte, veio beber dos frutos o sumo fértil desse veneno doce. No útero, espécies férteis começaram a ser geradas. A barriga desatou a crescer, com o veneno a entupir as artérias,e os frutos verdes pesavam no pomar desse útero forrado de sombras. O homem com as mãos frias espancou-lhe com os olhos esse ninho,e, ela, fugiu para as florestas arrastando-se em sangue, que caía pela terra, em todos os lugares por por onde pés deixaram a marca.Nasceram, como que marcando um mapa, árvores de frutos venenosos.
Durante anos, meninos cheios de fome, vinham arrastados até encontrarem o odor sumarento dos néctares e, traídos pelas abelhas que zonzeavam por ali, morriam amontoados junto das silvas, do carreiro das formigas, que passavam por cima da carne em petrufação. Os frutos, tinham no interior o sangue venenoso, que fazia parar o coração de quem tinha fome. Quem se sentasse numa árvore, para saciar a dor da alma, grotescamente provava o sémen do homem de mãos tristes. Esse, alheio à morte, continua a trabalhar arduamente na gruta; redime-se pela dor que ataca estas mãos: é a única prova que tem de que ainda está vivo.
Antes de sair da taberna, lavou as mãos com sabão azul, sorriu no espelho fusco da casa de banho e, tirou das calças um saco com algumas moedas de ouro que abandonou junto do copo estilhaçado. Pediu umas botas. Uma rapariga virgem, limpou-lhe o sangue dos pés numa tina de água límpida - e o homem partiu na névoa da noite, como um vulto, que não voltará a regressar. Procura de novo, uma caverna onde se possa esconder da luz do sol e, trabalhar com as mãos que Deus lhe deu: até que a morte se lembre da sua existência.

1 comentário:

  1. Boa aventura pela prosa.

    Caminho a explorar (e trabalhar)

    Boas escritas

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