segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

«(...) aquelas fadigas dos casais tinham o perigo de instalar-se como fadiga de vida e, expandindo-se para fora do indivíduo, igualmente do universo, das folhas murchas nas árvores, do rio fluindo dolente como de lama, do desbotado céu. - Mas como tais coisas sucediam sempre apenas quando o homem e a mulher se encontravam a sós, com o rodar dos anos fui evitando todas as situações alongadas «a dois» ( o que tão-pouco era solução ou, se sim, seria cobarde).»


Peter Handke. Para uma Abordagem da Fadiga. Tradução de Isabel de Almeida e Sousa. Difel, Lisboa, 1989., p. 20

«Ao fim da tarde de...abateu-se sobre o Cinema Apolo em...caindo de um céu radiante, uma fadiga catastrófica, por lá adentro. Vitimou um jovem casal, até ali em vibrante harmonia, que pelo impulso da onda da fadiga foi arremessado, um para cada lado; e no final do filme que, diga-se de passagem, tinha o título de Acerca do Amor, sem um olhar mais, ou sequer uma palavra de um para o outro, seguiram caminhos para sempre divididos.» Sim, tais fadigas desavindas, ao atacar, eram sempre acompanhadas de incapacidade para olhar e mutez; eu, não poderia, não teria podido dizer-lhe: «Estou farto de ti», nem sequer simplesmente «Farto!» (o que, como grito comum, nos teria, talvez, libertado dos infernos de solidão): tais fadigas calcinavam a nossa aptidão para falar, a alma. Assim estivéssemos nós, efectivamente, em condições para seguir caminhos diversos! Não, tais fadigas tinham como efeito que os intimamente cindidos, exteriormente, como corpos , tivessem de permanecer juntos. Sucedia então que ambos, possuídos pelo demónio da fadiga, passavam eles mesmos a ser temíveis.

Temíveis para quem?

Sempre para o outro. Aquele género de fadiga, em mutismo, como tinha de permanecer, impelia à violência, que talvez se manifestasse apenas por um olhar que desfigurava o outro, não só como pessoa em si, mas também como sexo oposto: asquerosa e ridícula esta geração de mulheres ou de homens, com este andar carnal feminino, com estas incorrigíveis poses masculinas. Ou então, a violência manifestava-se dissimuladamente, em um outro ser, no como que fortuito matar de uma mosca, no como que distraído arrancar de uma flor. Sucedia também a pessoa ferir-se a si própria, quando um deles trincava a ponta dos dedos, quando o outro se queimava numa chama; quando ele se socava no rosto, quando ela, como uma criança pequena. apenas sem as almofadas protectoras, se atirava para o chão. Por vezes, contudo, um tal padecente de fadiga agredia também fisicamente quem junto com ele fora tomado de aprisionamento, ao inimigo ou à inimiga, pretendia fustigá-lo arredando-o do seu caminho, procurava, ao lançar injúrias balbuciadas, libertar-se dela aos gritos. Esta violência da fadiga-casal, em todo o caso, era a única saída possível; porquanto, usualmente, se tornava então efectivo o afastamento um do outro. Ou, em outro caso, a fadiga dava lugar a um extenuamento pelo qual, enfim, se podia respirar fundo e reflectir. Sucedia, talvez, acabarem por retornar um para junto do outro, e os dois olhavam-se estupefactos, ainda abalados pelo justamente, ocorrido, sem capacidade para compreendê-lo. Podia advir então uma contemplação do parceiro, embora com uns olhos inteiramente outros: « Que foi isso que nos sucedeu no cinema, na rua, sobre a ponte?»


Peter Handke. Para uma Abordagem da Fadiga. Tradução de Isabel de Almeida e Sousa. Difel, Lisboa, 1989., p. 16-18

a fotografia ou a combinação texto-imagem

Fernando Calhau, Materialização de um quadro imaginário, 1975


Esta capacidade de saber ver Arte


em Artes, Crónicas

''Apreciar obras de arte, saber admirá-las como testemunhos e como presença na senda dos seus saberes estéticos e afectivos, é não só um privilégio do nosso mundo de viventes, como um imperativo de todas as pessoas, sejam governantes, tutelas, comunidades ou públicos em geral. E quando falamos em arte falamos em arquitectura e urbanismo, escultura e pintura, ourivesaria e têxteis, fotografia e gravura, mobiliário e artes de decoração, em poesia e demais literatura, em música e teatro e outras artes do espectáculo, em graffiti e na BD, em muitos outros géneros e subgéneros em que se manifesta essa sua capacidade de gerar fascínios, seja por via erudita ou ingénua, rica ou pobre, de vanguarda ou de conformismo.
Foi sempre assim, pelo menos desde o século XV, o tempo do Renascimento, quando as qualidades auráticas das artes, além de libertarem os seus autores das velhas teias gremiais e do anonimato servil, criaram uma verdadeira consciência de defesa de um Património comum que urgia (e urge) ser preservado e valorizado. Todavia, se foi e é sempre imenso esse poder de fascínio das obras de arte (todas elas, melhores ou piores que sejam), também o seu grau de fragilidade não é menor, dada a frequência com que tantos monumentos e obras foram alvo de atentados iconoclásticos, de maus restauros, de processos de destruição pura e simples, ou de um silencioso abandono que os condena à desmemória.
É por isso que a História da Arte é cada vez mais uma disciplina importante, com forte impressão digital na vida das sociedades e com empregabilidade crescente nos nossos dias. O facto de saber estudar e valorizar as obras vivas, prevenindo ao mesmo tempo os péssimos efeitos da negligência e abandono, da especulação e esquecimento, torna-a cada vez mais necessária. Apesar das inerentes dificuldades, os historiadores de arte de hoje tentam cumprir esse objectivo através do estudo integrado e comparativo, do inventário de espécimes, dos processos de conservação, musealização e salvaguarda e da maior consciencialização junto das comunidades para com o seu património.
É possível e necessário repensar a prática actual dos nossos estudos de História-Crítica das Artes sob novas luzes.
Em primeiro lugar, defender uma prática micro-artística consequente, porque o conjunto de artistas e obras que esta disciplina visa estudar não se resume mais a certos nomes e peças previamente determinados por um olhar de preconceito (tal como o que durante tantas décadas dominou em Portugal sobre o nosso património). Recordo como o património artístico do Distrito de Santarém durante muitos anos se resumia ao Gótico escalabitano ou ao foco de Tomar, esquecendo-se as especificidades de tantas obras de arte renascentistas, maneiristas ou barrocas que, depois de estudadas e valorizadas, brilham hoje nas salas do belíssimo Museu Diocesano de Santarém (e em outros espaços visitáveis do Ribatejo).
Depois, há que destacar sempre a condição trans-contemporânea de todas as obras de arte (tenham elas sido criadas em tempos pré-históricos, medievais, modernos, ou dos nossos dias) já que, na sua dinâmica inesgotável, única e irrepetível, a arte é sempre um exercício de engenho que se situa algures entre o desafio, o testemunho e a inquietação, e é por isso que, de per si, se assume terreno de contemporaneidade, na medida em que (disse-o Arthur C. Danto), seja no ontem ou no amanhã, põe sempre à prova a nossa sensibilidade de interlocutores.
Em terceiro lugar, e porque muitas das obras de arte que a humanidade conserva são actos sublimes pois atingem o estádio aurático da invocação permanente e o renovado convite ao deleite, impõem na sua abordagem crítica uma dimensão antropológica. Tenho aprofundado esta vertente com Aurélio Lopes, certo de que a arte tem sempre uma dimensão espiritual: «toda a arte é sacra ou não é arte», disse Ernesto de Sousa (tal como eu um incréu…) no contexto da famosa exposição Alternativa Zero (1974).
Em quarto lugar, as obras de arte têm a imensa capacidade de se abrir às novas circunstâncias que se sucedem no seu tempo de vida, acumulando contextos e memórias, mesmo que os tempos e gostos sucedâneos se mostrem esquecidos, senão hostis, face à sua presença, como tantas vezes sucede. Descobrir os escuros e luzes destes percursos faz parte da chamada Fortuna Crítica, etapa madura da nossa investigação. Ai daquela História da Arte que se conforme com o estudo do contexto histórico em que a obra em apreço foi realizada, julgando que basta essa circunstância, por mais fértil de resultados que seja, para perceber as qualidades da peça que estuda!
Enfim, temos de ter em conta o poder de encantação permanente das obras de arte, que por isso mesmo têm uma imensa dimensão social, capaz de (à revelia das crenças ideológicas, credos religiosos, ou condição étnica e civilizacional) definir um terreno comum de afectividade. Sim, as obras de arte têm mais poder do que a violência dos homens: mostram o poder do pensamento, imaginação e engenho humanos através do acto de criar, esbatem as diferenças, e podem tornar-nos pessoas melhores e mais solidárias. Este poder interage no tempo, quando existe sensibilidade capaz de dialogar com a sua transcendência: a scintilla divina de que falava León Battista Alberti no século XV, a ideia suprema capaz de enfrentar os males do mundo exposta por Benito Arias Montano no século XVI, a prisca pictura de sentido neoplatónico de Francisco de Holanda no Portugal do tempo de D. João III, ou essa indefinida mas contagiante aura descrita por Walter Benjamin no século passado… Para um homem de fé como Frei Bento Domingues, «o poder da arte resulta da capacidade enigmática de certas obras provocarem a ruptura com as evidências convencionais da realidade e de criarem um novo e inconfundível mundo de experiências de fruição estética pela densidade das emoções que desperta». Segundo diz em entrevista recente, não existe outra produção humana tão elevada de espiritualidade e força anímica como a arte, tão frágil na (i)materialidade quanto poderosa na essência e na capacidade permanentemente renovada de gerar afectos…
A nós, eternos mortais sem remédio visível, apenas cabem as tentações interpretativas e o prazer de fruir os discursos da arte. E, já agora, as possibilidades de lhe conferir ‘mais vida’, aduzida tanto pelos meios da Conservação e Restauro, como os da Museologia, e os da História da Arte, com a sua investigação integrada. Destaco, por isso, as palavras do grande historiador de arte José-Augusto França que, em síntese, nos diz tudo: «A minha ligação à arte é quase respiratória», confessa numa entrevista; isto porque: «tenho de olhar para as obras e saber o que estão a dizer-me». Sim, a arte convoca-nos sempre para a nossa capacidade de escutar
(artigo saído no CORREIO DO RIBATEJO de 3 de Janeiro de 2020)''
Para aceder ao link da fonte, clique aqui.

INFAUSTO

Will Not Make Any More Boring Art (1971)

odisseia kafkiana

obra baldessariana

land art, a pop, o minimalismo, o happening


URETROTOMIA INTERNA

«o não insone crónico»


Peter Handke. Para uma Abordagem da Fadiga. Tradução de Isabel de Almeida e Sousa. Difel, Lisboa, 1989., p. 14

«mais-u-ma-noi-te-sem-dor-mir»


Peter Handke. Para uma Abordagem da Fadiga. Tradução de Isabel de Almeida e Sousa. Difel, Lisboa, 1989., p. 14
« O dormir como meio de fuga estava fora de causa: já que aquela espécie de fadiga dava origem a um entorpecimento que, usualmente, não permitia sequer o mais leve movimento do dedo mínimo, sim, nem um pestanejar; até mesmo a respiração parecia bloqueada, de forma que se fixava a ideia de estar paralisado até ao mais íntimo, ficando transformado numa estátua de fadiga; e se, efectivamente, era conseguido o passo para a cama, após rápido adormecer mais semelhante ao desmaio - nem a menor sensação de sono - e logo depois da primeira volta na cama, dava-se um lento despertar, até à insónia, as mais das vezes noites inteiras, pois a fadiga no quarto soía irromper sempre à tardinha, ou ao cair da noite, com o escurecer.»

Peter Handke. Para uma Abordagem da Fadiga. Tradução de Isabel de Almeida e Sousa. Difel, Lisboa, 1989., p. 13

domingo, 5 de janeiro de 2020


A lista dos melhores do ano para a revista Uncut.

75. Sessa – Grandeza
74. Better Oblivion Community Center – Better Oblivion Community Center
73. Ex Hex – It’s Real
72. Sandro Perri – Soft Landing
71. The Who – Who
70. Van Morrisson – Three Chords And The Truth
69. Sampa The Great – Return
68. Rustin Man – Drift Code
67. Deerhunter – Why Hasn’t Everything Already Disappeared?
66. Snapped Ankles – Stunning Luxury
65. The Delines – Imperial
64. Pye Corner Audio – Hollow Earth
63. Altin Gün – Gece
62. Gruff Rhys – Pang
61. The Black Keys – Let’s Rock

60. Solange – When I Get Home
59. Sunn 0))) – Life Metal
58. Ezra Furman – Twelve Nudes
57. Jake Xerxes Fussell – Out Of Sight
56. Sacred Paws – Run Around The Sun
55. The Waterboys – Where The Action Is
54. Little Simz – Grey Area
53. Black Peaches – Fire In My Hole
52. Drugdealer – Raw Honey
51. Steve Gunn – The Unseen In Between

50. Shana Cleveland – Night Of The Worm Moon
49. Stephen Malkmus – Groove Denied
48. Lizzo : Cuz I Love You
47. Nérija – Blume
46. Lambchop – This Is What I Wanted To Tell You
45. Sleaford Mods – Eton Alive
44. Robert Foster – Inferno
43. W.H. Lung – Incidental Music
42. Fat White Family – Serf’s Up!
41. Billie Eilish – When We All Fall Asleep Where Do We Go?

40. Vampire Weekend – Father Of The Bride
39. Bonnie Prince Billy – I Made A Place
38. 75 Dollar Bill – I Was Real
37. The Murder Capital – When I Have Fears
36. Dave – Psychodrama
35. Sturgill Simpson – Sound &Amp; Fury
34. Fontaines D.C. – Dogrel
33. The Raconteurs – Help Us Stranger
32. Kim Gordon – No Home Record
31. Michael Kiwanuka – Kiwanuka

30. Jessica Pratt – Quiet Signs
29. Trash Kit – Horizon
28. Jenny Hval – The Practice Of Love
27. The National – I Am Easy To Find
26. Angel Olsen – All Mirrors
25. Neil Young With Crazy Horse – Colorado
24. The Specials – Encore
23. Aldous Harding – Designer
22. Leonard Cohen – Thanks For The Dance
21. Rhiannon Giddens – There Is No Other

20. Brittany Howard – Jaime
19. Peter Perrett – Humanworld
18. Jenny Lewis – On The Line
17. Modern Nature – How To Live
16. Sharon Van Etten – Remind Me Tomorrow
15. Bon Iver – I,I
14. Richard Dawson – 2020
13. Oh Sees – Face Stabbler
12. Julia Jacklin – Crushing
11. Cate Le Bon – Reward

10. Wilco – Ode To Joy
09. Big Thief – Ufof
08. Bill Callahan – Shepherd In A Sheepskin Vest
07. Bruce Springsteen – Western Stars
06. Joan Shelley – Like The Rivers Loves The Sea
05. Lana Del Rey – Norman Fucking Rockwell
04. The Comet Is Coming – Trust In The Lifeforce Of The Deep Mistery
03. Purple Mountains – Purple Mountains
02. Nick Cave &Amp; The Bad Seeds : Ghosteen
01. Weyes Blood – Titanic Rising

Nights That Won't Happen: On Purple Mountains, David Berman's Final Album

The dead know what they're doing when they leave this world behind
When the here and the hereafter momentarily align
See the need to speed into the lead suddenly declined
The dead know what they're doing when they leave this world behind
And as much as we might like to seize the reel and hit rewind
Or quicken our pursuit of what we're guaranteed to find
When the dying's finally done and the suffering subsides
All the suffering gets done by the ones we leave behind
All the suffering gets done by the ones we leave behind
Nights that won't happen
Time we won't spend
Time we won't spend
With each other again
With each other again
Ghosts are just old houses dreaming people in the night
Have no doubt about it, hon, the dead will do alright
Go contemplate the evidence and I guarantee you'll find
The dead know what they're doing when they leave this world behind
Nights that won't happen
Time we won't spend
Nights that won't happen
Never ever again
Nights that won't happen
Never reaching the end
Nights that won't happen
Never even begin
Never even begin
This world is like a roadside inn and we're the guests inside
And death is a black camel that kneels down so we can ride
And when the dying's finally done and the suffering subsides
All the suffering gets done by the ones we leave behind
All the suffering gets done by the ones we leave behind
On nights that won't happen
Time we won't spend
Time we won't spend
With each other again
Nights that won't happen
Never reaching the end
Nights that won't happen
We can't even begin
We can't even begin

Compositores: David Berman



[Verse 1]
The light of my life is going out tonight
As the sun sinks in the west
The light of my life is going out tonight
With someone she just met
She kept it burning longer than I had right to expect
The light of my life is going out tonight
Without a flicker of regret

[Chorus 1]
Darkness and cold, darkness and cold
(Darkness and cold, darkness and cold)
Rolled in through the holes in the stories I told
Conditions I'm wishing weren't taking control
Darkness and cold, darkness and cold

[Verse 2]
The light of my life is going out tonight
And she don't look too depressed
The light of my life is going out tonight
In a pink champagne Corvette
I sleep three feet above the street
In a Band-Aid pink Chevette

The light of my life is going out tonight
Without a flicker of regret


[Chorus 1]
Darkness and cold, darkness and cold
(Darkness and cold, darkness and cold)
Rolled in through the holes in the stories I told
Conditions I'm wishing weren't taking control
Darkness and cold, darkness and cold

[Chorus 2]
Darkness and cold, darkness and cold
(Darkness and cold, darkness and cold)
Patiently encroaching on the animal
The weather of forever retaking control

Darkness and cold, darkness and cold

[Chorus 1]
Darkness and cold, darkness and cold
(Darkness and cold, darkness and cold)
Rolled in through the holes in the stories I told
Conditions I'm wishing weren’t taking control
Darkness and cold, darkness and cold

[Outro]
Darkness and cold, darkness and cold

A dádiva de outra paixão

A ferida tem o seu tempo, a sua febre,
a existência líquida e ardente do que é excessivo,
do que cresce com a carne, martirizando-a.
Há feridas comovidas como esta, que se abrem
e se fecham com a dor lá dentro
para que ninguém possa devassá-las.
Há as feridas da melancolia
e as do músculo seccionado pelo gume
de uma raiva mitigada e ancestral.
Nem só os animais lambem as chagas
para as pôr ao abrigo do pó e do vento.
Também os cavaleiros de coisa nenhuma
lambem o coração retalhado na peleja
à espera que o afago da brisa
lhes traga a dádiva de outra paixão.


José Jorge Letria. Os Mares Interiores. Editorial Teorema, Lisboa, 2001., p. 33

''Tudo me sabe a coisa nenhuma''


José Jorge Letria. Os Mares Interiores. Editorial Teorema, Lisboa, 2001., p. 28

''com o anúncio de uma morte tangencial às águas''


José Jorge Letria. Os Mares Interiores. Editorial Teorema, Lisboa, 2001., p. 26

''Coroa de orvalho sobre os olhos''


José Jorge Letria. Os Mares Interiores. Editorial Teorema, Lisboa, 2001., p. 26

Tudo são hipóteses


É redonda a dor como as cobras
que desafiam a surdez das casas
onde os mortos dão as mãos
para congeminarem o regresso à vida.
Tudo são hipóteses. Dançam em roda
abocanhando as rosas, devorando
a placenta matinal dos partos, partindo.
Tudo se renova, até o mundo.
E há um poderio fatal que se ergue 
dos cânticos e dos espelhos, em espiral, 
das sarças queimadas e das preces,
e há um cavalo decapitado relinchado 
no terreiro dos medos ancestrais, fatais,
enquanto as carpideiras choram
o destino ultrajante dos meninos
que perderam a fé na cama da heroína,
misturando o pó e o sangue
sobre os mapas do desespero dos crentes.
Tudo são hipóteses. Até a vida.


José Jorge Letria. Os Mares Interiores. Editorial Teorema, Lisboa, 2001., p. 22

''Mariposas exaustas com a violência da luz.''


José Jorge Letria. Os Mares Interiores. Editorial Teorema, Lisboa, 2001., p. 21

''ramos embalados pela brisa''


José Jorge Letria. Os Mares Interiores. Editorial Teorema, Lisboa, 2001., p. 20
«As mulheres oferecem-se ao tacto
em bandejas de lua, sem alento.»

José Jorge Letria. Os Mares Interiores. Editorial Teorema, Lisboa, 2001., p. 19

flores industrializadas

patos-reais

"Onde te querem muito, não vás amiúde."


sábado, 4 de janeiro de 2020

«Perde um anzol na boca das cores
e um fio de horizonte no cansaço dos olhos.»

José Jorge Letria. Os Mares Interiores. Editorial Teorema, Lisboa, 2001., p. 13

Sem nunca avisar que chego

Poiso na tua casa como as gaivotas brancas,
com restos de comida e farrapos de sonho,
sem nunca avisar que chego, intruso quase,
sem nunca anunciar que parto, herege sempre,
sem nunca te dizer quanto te quero, imperfeito.
Doem-me as feridas onde me dói a alma,
no mesmo círculo de pele calcinada
por soporíferos, querelas e adagas. Tanta dor.
Fica um aroma de jasmim nas roupas,
um hálito de espuma nos lábios
que soletram as canções antigas. Lembras-te?
Cruzámos o destino das casas na esquina
sem sol de uma mesma rua, nómadas,
mangas arregaçadas para descobrir ouro
nas caves, no cimento das fundações.
O ouro do amor perdido, entenda-se.
Passa-se tanto tempo à espera
que um poema resuma um projecto,
uma existência sonegada à feira dos olhares.
Toco-te à porta e sei que estás, afortunado,
como a pedra altaneira que amansa e acolhe
a fúria passageira do mar. Vou amarelecendo 
com a idade nos retratos e nas histórias.
Tu bem sabes que o tempo, sempre o tempo,
só é inclemente e severo se nós deixarmos.


José Jorge Letria.
Os Mares Interiores. Editorial Teorema, Lisboa, 2001., p. 11
«Acorrerei sem dor ao teu chamamento,
quando a última lua iluminar, ao crepúsculo,
o cesto dos alperces no terreiro da casa.»

José Jorge Letria. Os Mares Interiores. Editorial Teorema, Lisboa, 2001., p. 11

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020


soer

so.er
verbo intransitivo


[pouco usado] ter por costume

- a «fadiga-solidão»


Peter Handke. Para uma Abordagem da Fadiga. Tradução de Isabel de Almeida e Sousa. Difel, Lisboa, 1989., p. 12

«(...) até que a fadiga do ouvinte se transmutava em irritação, a irritação em malevolência.»

Peter Handke. Para uma Abordagem da Fadiga. Tradução de Isabel de Almeida e Sousa. Difel, Lisboa, 1989., p. 12
andar de charola

andar aos ombros de alguém

Zapping de estética

''O som sem imagem, a imagem sem música como um filme sem sincronismo.''
'' a vítima mortal do crime terrorista e a vítima da pena capital''

« Na infância, no assim denominado tempo de estudante; sim, ainda nos anos dos amores precoces: muito especialmente então. Durante uma Missa do Galo, a criança encontrava-se assentada entre os seus, na igreja da sua terra apinhada de gente, ofuscante luz, ressoando com os bem conhecidos cantos de Natal, envolta em oradores de panos e de cera, e foi acometida pela fadiga, com o ímpeto de uma moléstia.»


Peter Handke. Para uma Abordagem da Fadiga. Tradução de Isabel de Almeida e Sousa. Difel, Lisboa, 1989., p. 9

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

«E erguendo-se após a oração, ao aproximar-
-se dos discípulos, encontrou-os adormecidos,
de fadiga.»

Lc.22, 45

crível

Jackie Kennedy loved Ireland and her old Irish priest


Grão Da Mesma Mó


Não sei se estão a ver aqueles dias em que não
acontece nada, a não ser o que o que aconteceu e não aconteceu
E do nada há uma luz que se acende.
Não se sabe se vem de fora ou se de dentro, apareceu
E dentro da porção da tua vida, é a ti
que cabe o não trocar nenhum futuro pelo presente
O fazer face à face que se teve até ali
Ausente presente
Vê lá o que fazes, há
tanto a fazer
Fazes que fazes
Ou pões sementes a crescer?
Precisas de água, a
Terra também
Ventos cruzados
E o sol e a chuva que os detém
Vivida a planta
Refeita a casa
É espaço em branco
Tempo de o escrever
E abrir asa
E a linha funda, na
palma da mão
Desenha o tempo então
Mas há linhas de água que cruzas sem sequer notares, e
oh, estás no deserto e talvez no oásis, se o olhares
E não há mal e não há bem que não te venha incomodar
Vale esse valor? É para vender ou comprar?
Mas hoje, questões éticas? Agora? Por favor...
Que te iam prescrever a tal receita para a dor
Vais ter que reciclar o muito frio e o muito quente
Ausente presente
Vê lá o que fazes, há
tanto a fazer
Fazes que fazes
Ou pões sementes a crescer?
E a linha funda, na
palma da mão
Desenha o tempo então
'Um curto espaço de tempo'
Vais preenchê-lo com o frio da morte morrida
Ou o calor da vida vivida?
Não queiras ser nem um exemplo, nem um mau exemplo, por si só
Há dias em que é grão da mesma mó
E a senha já tirada, já tardia do doente
Dez lugares atrás, e pouco a pouco, à frente
E cada um falar-te das histórias da sua vida
Feliz, dorida
Vê lá o que fazes, há
tanto a fazer
Fazes que fazes
Ou pões sementes a crescer?
Precisas de água, a
Terra também
Ventos cruzados
E o sol e a chuva que os detém
Vivida a planta
Refeita a casa
É espaço em branco
Tempo de o escrever
E abrir asa
E a linha funda, na
palma da mão
Desenha o tempo então
E explicaram-te em botânica, uma espécie que não muda
a flor do fatalismo, está feito
E se até dá jeito alterar só por hoje o amanhã
Melhor é transfigurar
o amanhã com todo o hoje
E as palavras tornam-se esparsas
Assumes
Fazes que disfarças
Escolhes paixões, ciúmes
Tragédias e farsas
E faças o que faças
Por vales e cumes
Encontras-te a sós, só
Grão a grão acompanhado e só
Grão da mesma mó
Grão da mesma mó

Compositores: Sergio de Barros Godinho / David Fonseca
Letras de Grão Da Mesma Mó © Emi Music Publishing Portugal Edicoes Musicai

Tess Parks & Anton Newcombe - Cocaine Cat




So sit back and relax
Enjoy your cocaine Kate
Takes some time to get used to
But I know you'll be
Alright

Send some sensitivity
Gettin' you are you're feelin' me
Jump out the window
If it's the last thing
I do

You can have my piggy bank when I die
For you

Put a match to a tree
Watch the leaves burn high
They're all sensitive like you, babe
But I know you'll be alright
You'll be alright
You'll be alright
You'll be alright
(...)

«                                       Escreve-se
para o desprezo dos que amam outra escrita
e se enredam nela como as prostitutas
nas camas baixas do lucro garantido.
Escreve-se para não se ser lido, para a morte,»
...

José Jorge Letria. Os Mares Interiores. Editora Teorema. Lisboa, 2001., p. 9

credulamente

certezas cinzentas

fola

nome feminino
agitação das ondas do mar; marulhada, marulho

Os Mares Interiores

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