domingo, 5 de janeiro de 2020

Tudo são hipóteses


É redonda a dor como as cobras
que desafiam a surdez das casas
onde os mortos dão as mãos
para congeminarem o regresso à vida.
Tudo são hipóteses. Dançam em roda
abocanhando as rosas, devorando
a placenta matinal dos partos, partindo.
Tudo se renova, até o mundo.
E há um poderio fatal que se ergue 
dos cânticos e dos espelhos, em espiral, 
das sarças queimadas e das preces,
e há um cavalo decapitado relinchado 
no terreiro dos medos ancestrais, fatais,
enquanto as carpideiras choram
o destino ultrajante dos meninos
que perderam a fé na cama da heroína,
misturando o pó e o sangue
sobre os mapas do desespero dos crentes.
Tudo são hipóteses. Até a vida.


José Jorge Letria. Os Mares Interiores. Editorial Teorema, Lisboa, 2001., p. 22

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