«Ao fim da tarde de...abateu-se sobre o Cinema Apolo em...caindo de um céu radiante, uma fadiga catastrófica, por lá adentro. Vitimou um jovem casal, até ali em vibrante harmonia, que pelo impulso da onda da fadiga foi arremessado, um para cada lado; e no final do filme que, diga-se de passagem, tinha o título de Acerca do Amor, sem um olhar mais, ou sequer uma palavra de um para o outro, seguiram caminhos para sempre divididos.» Sim, tais fadigas desavindas, ao atacar, eram sempre acompanhadas de incapacidade para olhar e mutez; eu, não poderia, não teria podido dizer-lhe: «Estou farto de ti», nem sequer simplesmente «Farto!» (o que, como grito comum, nos teria, talvez, libertado dos infernos de solidão): tais fadigas calcinavam a nossa aptidão para falar, a alma. Assim estivéssemos nós, efectivamente, em condições para seguir caminhos diversos! Não, tais fadigas tinham como efeito que os intimamente cindidos, exteriormente, como corpos , tivessem de permanecer juntos. Sucedia então que ambos, possuídos pelo demónio da fadiga, passavam eles mesmos a ser temíveis.
Temíveis para quem?
Sempre para o outro. Aquele género de fadiga, em mutismo, como tinha de permanecer, impelia à violência, que talvez se manifestasse apenas por um olhar que desfigurava o outro, não só como pessoa em si, mas também como sexo oposto: asquerosa e ridícula esta geração de mulheres ou de homens, com este andar carnal feminino, com estas incorrigíveis poses masculinas. Ou então, a violência manifestava-se dissimuladamente, em um outro ser, no como que fortuito matar de uma mosca, no como que distraído arrancar de uma flor. Sucedia também a pessoa ferir-se a si própria, quando um deles trincava a ponta dos dedos, quando o outro se queimava numa chama; quando ele se socava no rosto, quando ela, como uma criança pequena. apenas sem as almofadas protectoras, se atirava para o chão. Por vezes, contudo, um tal padecente de fadiga agredia também fisicamente quem junto com ele fora tomado de aprisionamento, ao inimigo ou à inimiga, pretendia fustigá-lo arredando-o do seu caminho, procurava, ao lançar injúrias balbuciadas, libertar-se dela aos gritos. Esta violência da fadiga-casal, em todo o caso, era a única saída possível; porquanto, usualmente, se tornava então efectivo o afastamento um do outro. Ou, em outro caso, a fadiga dava lugar a um extenuamento pelo qual, enfim, se podia respirar fundo e reflectir. Sucedia, talvez, acabarem por retornar um para junto do outro, e os dois olhavam-se estupefactos, ainda abalados pelo justamente, ocorrido, sem capacidade para compreendê-lo. Podia advir então uma contemplação do parceiro, embora com uns olhos inteiramente outros: « Que foi isso que nos sucedeu no cinema, na rua, sobre a ponte?»
Peter Handke. Para uma Abordagem da Fadiga. Tradução de Isabel de Almeida e Sousa. Difel, Lisboa, 1989., p. 16-18
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