domingo, 27 de abril de 2025

| 𝘀𝗲𝗺𝗽𝗿𝗲! |



"(25 de Abril de 1974)

Manhãzinha cedo, senti acordar-me o sopro da voz ciciada de minha mulher:
- O Fafe telefonou de Cascais, ... Lisboa está cercada por tropas...
Refilo, rabugento:
- Hã?
E enrolo-me mais nos lençóis:
- É algum golpe militar reaccionário dos «ultras»... Deixa-me dormir.
Mas qualquer coisa começou a magoar-me a pele com dentes frios, para me dissuadir de adormecer.
E daí a instantes a minha mulher insistiu, baixinho, muito baixinho, com medo de não haver realidade:
-Só funciona o Rádio Clube que pede às pessoas que se conservem em casa.
Golpe militar? Reaccionário, evidentemente. Como se poderia conceber outra coisa?
Levanto-me preparado para o pesadelo de ouvir tombar pedras sobre cadáveres. Espreito através da janela. Pouca gente na rua. Apressada. Tento sintonizar a estação da Emissora Nacional. Nem, um som. Em compensação o telefone vinga-se desesperadamente. Um polvo de pânico desdobra-se pelos fios. A campainha toca cada vez mais forte.
Agora é o Carlos de Oliveira.
-Está lá? Está lá? É você, Carlos? Que se passa?
Responde-me com uma pergunta qualquer do avesso.
Às oito da manhã o Rádio Clube emite um comunicado ainda pouco claro:
- Aqui, Posto de Comando das forças Armadas. Não queremos derramar a mínima gota de sangue.
De novo o silêncio. Opressivo. De bocejo. Inútil. A olhar para o aparelho.
Custa-me a compreender que se trate de revolução. Falta-lhe o ruído, (onde acontecerá o espectáculo?), o drama, o grito. Que chatice!
A Rosália chama-me, nervosa:
- Outro comunicado na Rádio. Vem, depressa.
Corro e ouço:
-Aqui o Movimento das Forças Armadas que resolveu libertar a Nação das forças que há muito a dominavam. Viva Portugal!
Também pede à policia que não resista. Mas Senhor dos Abismos!, trata-se de um golpe contra o fascismo (isto é: salazarismo-caetanismo).
São dez e meia e não acredito que os «ultras» não se mexam, não contra-ataquem!
Ou tudo ruirá de podre, sem o brandir de uma bandeira qualquer de, heroísmo, um berro, um suicídio, um brado? Nas ruas (avisto da janela da sala de jantar) as mulheres, correm com sacos de alimentos. A poetisa Maria Amélia Neto telefona-me: «Não resisti e vim para o escritório».
Os revoltosos estão a conferenciar com o ministro do Exército. Na Rádio a canção do Zeca Afonso: Grândola, vila morena ... Terra da fraternidade... O povo é quem mais ordena...
Sinto os olhos a desfazerem-se em lágrimas. Ainda assisti, ainda assisti à morte deste maldito meio século de opressão imbecil. Ao mesmo tempo nunca vivi horas mais aborrecidas de espera, de frigorífico, ao som de baladas, medíocres, sem lances dramáticos. E não serão assim sempre as verdadeiras revoluções?... interrogo-me. Em silêncio. Sem teatro por fora. Em segredo. Com pantufas.
De súbito, aliás, a Rádio abre-se em notícias. O Marcelo está preso no Quartel do Carmo. A polícia e a Guarda Republicana renderam-se. O Tomás está cercado noutro quartel qualquer. E, pela primeira vez, aparece o nome do General Spínola. Novo comunicado das Forças Armadas. O Marcelo ter-se-á rendido ao ex-governador da Guiné. (Lembro-me do Salazar: «o poder não pode cair na rua»).
Abro a janela e apetece-me berrar: acabou-se! acabou-se finalmente este tenebroso e ridículo regime de sinistros Conselheiros Acácios de fumo que nos sufocou durante anos e anos de mordaças. Acabou-se. Vai recomeçar tudo.
A Maria Keil telefonou. O Chico, está doente e sozinho em casa. Chora. (Nesta revolução as lágrimas são as nossas balas. Mas eu vi, eu vi, eu vi! ... )
Antes de morrer, a televisão mostrou-me um dos mais belos momentos humanos da História deste povo, onde os militares fazem revoluções para lhes restituir a liberdade: a saída dos prisioneiros políticos de Caxias.
Espectáculo de viril doçura cívica em que os presos... alguns torturados durante dias e noites sem fim.... não pronunciaram uma palavra de ódio ou de paixões de vingança.
E o telefone toca, toca, toca... Juntámos as vozes na mesma alegria. (Só é pena que os mortos não nos possam também telefonar da Morte: o Bento de Jesus Caraça, o Manuel Mendes, o Casais Monteiro, o Redol, o Edmundo de Bettencourt, o Zé Bacelar, a Ofélia e o Bernardo Marques, o Pavia, o Soeiro Pereira Gomes e outros, muitos, tantos... Tenho de me contentar com os vivos. Porque felizmente dos vivos poucos traíram ou desanimaram. Resistimos quase todos de unhas, cravadas, nas palmas das mãos...
De repente, estremeço, aterrado.
Mas isto de transformar o mundo só com vivos não será difícil?
Saio de casa. E uma rapariga que não conheço, que nunca vi na vida, agarra-se a mim aos beijos.
Revolução."

José Gomes Ferreira
Poeta Militante III - Viagem do Século Vinte em mim
Círculo de Poesia
Moraes Editores
Lisboa, 1983

Nobuyoshi Araki Cat


 

rescender

''Não se não é artista, quando se é.''

 Pedro Cabrita Reis

''Quem é artista nunca poderá deixará de o ser.''

 Pedro Cabrita Reis

«I feel safe when the birds sing» (2025)

exposição pop-up desenvolvida por Karen Francesca

terça-feira, 22 de abril de 2025

Slowdive - Spanish Air

'' O complexo de Frankenstein''

´´vida artificial''

pólvora


 

''Fui terra, fui ventre, fui vela rasgada''

«Poemas aos homens do nosso tempo»

 Amada vida, minha morte demora.

Dizer que coisa ao homem,
Propor que viagem? Reis, ministros
E todos vós, políticos,
Que palavra
além de ouro e treva
Fica em vossos ouvidos?
Além de vossa RAPACIDADE
O que sabeis
Da alma dos homens?
Ouro, conquista, lucro, logro
E os nossos ossos
E o sangue das gentes
E a vida dos homens
Entre os vossos dentes.


 Hilda Hilst, excerto de «Poemas aos homens dos nossos tempos», in Júbilo, memória, noviciado da paixão, 1974

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Heroin - Lana Del Rey

 


 ''(...) Na solidão, onde todos se veem limitados aos seus próprios recursos, o indivíduo enxerga o que tem em si mesmo.

Arthur Schopenhauer, no livro “Aforismos Para Sabedoria de Vida. (Editora Martins Fontes; 3.ª edição [2009]).

Língua-de-sogra


azedo como rabo-de-gato
muito azedo

autorretrato

Today, I met who I’m gonna be from now on / And he’s a piece of shit.

“Heavy Metal”, álbum a solo de Cameron Winter


Sad Lovers And Giants - Lost In A Moment (1982) Post Punk, Dream Pop

“O desejo selvagem, esse é fácil — nasce do instinto. Mas desejar alguém com ternura, com alma, com cuidado… isso exige tempo. É preciso atravessar todas as estações do amor, suportar os invernos da dúvida e os verões do encantamento, até que, no centro do afeto, acenda-se a chama rara do desejo que respeita, que acolhe, que permanece.”

Albert Camus

 “Há ferrugem na minha boca, a mancha de um beijo antigo.”

Anne Sexton

Quem Fabrica Um Peixe Fabrica Duas Ondas


De Herberto Helder

Quem fabrica um peixe fabrica duas ondas,
uma que rebenta floralmente branca à direita
outra à esquerda só com ar lá dentro,
e o ouro Íngreme puxando o começo da noite
e o fim do enorme dia onde todos morreremos
como filhos escorraçados ou disso a que chamam demónio da analogia
quem fabrica um poema curto morrerá muito mais tarde,
só depois de estar maduro,
quem baixa a mão para quebrar um selo há-de baixá-la
para quebrar os outros, e há-de fechar os olhos,
e de tanto ter visto não poderá nunca mais abri-los:
e como pão e bebo água de olhos fechados como se fosse para sempre,
e assim, adeus a quem vê, que eu morro inteiro para dentro,
e vejo tudo só de entendê-lo.
**
Herberto Helder, in Servidões

 "Nunca desejaria usar inteligência artificial no meu trabalho. É um insulto à própria vida", assumia o realizador japonês Hayao Miyazaki, co-fundador do Studio Ghibli, em 2017.


Fonte: Comunidade Cultura e Arte

Que se foda alcançar

"(...) Que se foda a alegria
Que se foda o sucesso
Que se foda o progresso
Que se foda a morte
Que se foda chegar
Que se foda alcançar"

OIOAI

Crime Scene Queen

Sexting

sarilhos grandes

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Barbara, c. 1954

 


''Ainda bem que não falo com pessoas e hoje em dia só falo com o meu cão.''

Escritor Pedro Paixão, entrevista Jornal Observador, 2017


25 livros em 25 anos. Porque escreve tanto?

''Escrevo para mim, só para mim, para me tentar salvar. Quando escrevo, as coisas parecem ganhar um plano superior, mais verdadeiro. Contra a passagem do tempo, o desvanecimento, a escrita dá-nos a ilusão de que a nossa vida é mais durável. Dá-nos a ilusão de que continuaremos vivos naquilo que escrevemos. Ser-me-ia impossível viver sem escrever.''


Escritor Pedro Paixão, entrevista Jornal Observador, 2017

Nick Drake - River Man

Eu só não me deixei esmagar porque não tenho valor algum em particular, nunca tendo chegado a ser o que queria (…)

«O meu país é um país que não reconhece o verdadeiro valor, não gratifica a excelência, e mal suspeita de alguma coisa original, logo, estranha, esmaga-a. Camões morreu pobre e desolado. Provavelmente sem ter tido sequer a sorte de ter tido um único amigo, como eu tive. O Pessoa, que viveu de quarto em quarto, foi morrer com o fígado trespassado a um hospital com nome de santo francês que está no Bairro Alto e, ao que se diz, a última frase que lhe se ouviu foi em inglês que a disse I do not know what tomorrow will bring, para tirar as dúvidas a quem as tivesse. O Ruy Belo, um magnífico poeta, foi um herói desprezado primeiro pela academia fascista e, depois, pela academia democrática. O Ruy Cinatti, um poeta entre os maiores, enlouqueceu com a revolução dos medíocres e presumidos cravos, que entretanto desapareceram como espécie. Eu só não me deixei esmagar porque não tenho valor algum em particular, nunca tendo chegado a ser o que queria (…) »

Pedro Paixão. [“Espécie de Amor”, 2014]
"Já não conheço as novas gerações… não os leio… eles também não me leem a mim… portanto estamos bem. Mas eu também escrevo sempre a mesma coisa. Sou eu e eu. Só escrevo sobre mim. Porque não teria sobrevivido se não escrevesse. Só assim é que vou sabendo quem sou."

Escritor Pedro Paixão, entrevista Jornal Observador

Deborah at Tante Esther's, 1947


 

Father John Misty - The Ideal Husband




Julian, he's gonna take my files
Every woman that I've slept with
Every friendship I've neglected
Didn't call when grandma died
I spend my money getting drunk and high
I've done things unprotected
Proceeded to drive home wasted
Bought things to win over siblings
I've said awful things, such awful things
And now, now it's out
And now, now it's out
Julian, he's gonna take my files
Telling people jokes to shut them up
Resenting people that I love
Sleep in 'til two then doin' shit
Just stay in bed and later lie 'bout it
Obsessing over graying hair
Knowing just what people wanna hear
Binging on unearned attention
I've said awful things, such awful things
And now, now it's out
And now, now it's out
I came by at seven in the morning
Seven in the morning, seven in the morning
I came by at seven in the morning
I said, "Baby, I'm finally succumbing!"
Said something dumb like, "I'm tired of running
Tired of running, tired of running!"
Let's put a baby in the oven
Wouldn't I make the ideal husband?

''Só escreve de verdade quem tem mãos verdadeiras.''

''Escrever é uma forma de poder.''

''Uma pessoa pode salvar-te. Uma multidão esmaga-te, deixa-te morrer. E eu percebi isso.''

Escritor Pedro Paixão, entrevista Jornal Observador

«atrás da cortina de nenúfares, eu não saberia resistir-te»


LI PO (também LI BAI) com Um Copo de Vinho no Exílio
(em colaboração com a livraria Livros Tintos, de Fundão). Versões de Manuel Silva-Terra.

''Houve o doce veneno da fama que nos conduz à maior solidão. A última coisa que queria era ser outra vez famoso como fui. Perdi bastante. Porque a fama dá-nos um poder irreal feito de fumos, espelhos, que é perigoso. Há uma aparência de que conhecemos muitas pessoas, que as pessoas gostam muito de nós. Tudo falso. Graças a Deus, descobri isso antes de ter feito muitas asneiras, sem ter ficado viciado em drogas, álcool, poder.''

Escritor Pedro Paixão, entrevista Jornal Observador

“escritor coqueluche”

descasar

segunda-feira, 31 de março de 2025


A CARÊNCIA

 Eu não sei de pássaros,
não conheço a história do fogo.
Mas creio que a minha solidão deveria ter asas.

Alejandra Pizarnik

''relações corrosivas''

''verdades ditas com amor''

 “Só me apercebi de que estava no início de uma depressão quando alguém me disse que já não ria. Fiz todo um caminho, precisava de ajuda” - SIC Notícias

Lana Del Rey - I Talk To Jesus




 Self portrait

1928 - 35
foto
Renata Bracksieck-Rohde



''Nos olhos certos, você sempre será uma obra de arte.''

 ''A noite morre, o inverno foge; agora a luz,
Nos campos, na floresta, é o primeiro em todo o lado.
Estou esperando ansiosamente pela primavera.''

Victor Hugo, ''Depois do Inverno''. Toda a Lira, 1888

''Nada há mais triste do que a morte de uma ilusão.''

Arthur Koestler

 ''Cada um alcança a verdade que é capaz de suportar.''

Lacan

resmonear

Father John Misty - She Cleans Up


I had a vision that Mary of Magdalene
Saw the future that awaits us just before Good Friday eve
Figured the wages of salvation were a little too steep
Said no one's fucking with my baby
Lord, and got armed to the teeth
Cleaning up
Cleaning up
Clean up
She cleans up
What is the one about the female alien
Scarlett drives the Scottish countryside inside of a white van
Oh, I dreamt about it last night, and it did my whole day in
Undid something man, I'm never gonna touch that shit again
Cleaning up
Clеaning up
She cleans up
Cleaning up
I know just how this thing еnds
Hallelujah, women, they got me confused with him, oh no
I get just how this thing ends
Hallelujah, baby, I know who butters my bread
"When was the accident?", well, I presume you mean
The condition of the silk kimono that didn't come cheap
Now, did you sit down in a crime scene?
Just don't look between your knees
Man, it's certainly a look, did she at least get the movie?
Cleaning up
Cleaning up
She cleans up
Cleaning up
Use your discretion, so I don't have to use mine
I spent a hundred bucks on gas, baby, let's just have a good time
How do you atone for your son now the rabbit's got the gun?
She ain't joining you for dinner, been on the menu too long
Cleaning up
Cleaning up
She cleans up
Cleaning up
I know just how this thing ends
Hallelujah, guess we gave the karmic wheel a spin, oh yeah
I know just how this thing ends
The aggrieved becomes aggressor and we do it all again
Take it from a demon who can say I've never said
Take it from a demon that the devil don't protect his friends
Take it from a demon, he'll never work in this town again
Take it from a demon, he'll make sure an angel goes down next
I know just how this thing ends
The misogynist's daughter made him rethink what he said
I know just how this thing ends
She has trouble reconciling pops with the things that she read
I know just how this thing ends
Hundred billion babies born every millennium, oh no
I know just how this thing ends
Man, I hope nobody messes with the wrong rejected men, oh
I know just how this thing ends
Sure your politics are perfect with the gun against your head
I know just how this thing ends
It's a good thing God gave us someone on whom we can depend to
Clean up

Fundamental

 Fundamental é termos quem nos coloque a mão na 
testa quando vomitamos, de olhos fechados.
Tudo o resto é uma ida à Loja do Cidadão.


Nuno Costa Santos. Morrer é Nada nas Mãos. Edição Companhia das Ilhas

Frida Kahlo disse a Diego Rivera:



“Não te peço um beijo,
nem que me peças perdão quando erras.
Não te peço que me abraces nos meus dias de dor,
nem que me digas que sou linda,
mesmo que seja mentira.

Não te peço palavras bonitas,
nem que me ligues só para dizer que sentes a minha falta.
Não te peço que reconheças tudo o que faço por ti,
nem que te importes quando me afogo em silêncio.
Não te peço que me apoies nas minhas decisões,
nem que escutes as histórias que trago no peito.

Não te pedirei nada,
nem mesmo que fiques ao meu lado.

Porque se preciso pedir…
então eu não quero mais.”

Frida Kahlo

domingo, 30 de março de 2025

apropinquar

revés

Chelsea Wolfe - Feral Love


Run from the light
Your eyes black like an animal
Deep in the water
I care for no one but the offspring of your mind
Run from the one who comes to find you
Wait for the night that comes to hide
Your eyes black like an animal
Black like an animal
Crossing the water
Lead them to die
We press for the water, press for the river, press for the rain
We press for the water, press for the river, press for the pain
We press for the water, we press for the water
We press for the water, we press for the water

Job



O you wind rose of torment!
Torn by primeval storms
In ever changing directions of the tempests;
Yet your south is loneliness,
Where you stand is the navel of pain.

Your eyes are sunk deep into your skull
Like cave-dwelling doves in the night
Brought out blind by the huntsman,
Your voice is silenced
From asking too many whys,

To the worms and the fishes your voice has gone.
Job, you have wept through all the watches of the night
But some day the star sign of your blood will
Outshine all the rising suns.

Nelly Sachs

os lutos das ofensas e desamores

«(...), comparecem as famílias e os seus dramas, os fantasmas do desejo, as invocações da preferência, os lutos das ofensas e desamores, »

Maria Velho da Costa. Casas Pardas. 4ª Edição. Prefácio de Manuel Gusmão. Publicações Dom Quixote., p. 20 

Lana Del Rey - Dealer


Há uma mulher a morrer sentada

Uma planta depois de muito tempo
Dorme sossegadamente
Como cisne que se prepara
Para cantar

Ela está sentada à janela. Sei que nunca
Mais se levantará para abri-la
Porque está sentada do lado de fora
E nenhum de nós pode trazê-la para dentro

Ela é tão bonita ao relento
Inesgotável

É tão leve como um cisne em pensamento
E está sobre as águas
É um nenúfar, é um fluir já anterior
Ao tempo

Sei que não posso chamá-la das margens


Daniel Faria

Amo-te no intenso tráfego



Amo-te no intenso tráfego
Com toda a poluição no sangue.
Exponho-te a vontade
O lugar que só respira na tua boca
Ó verbo que amo como a pronúncia
Da mãe, do amigo, do poema
Em pensamento.
Com todas as ideias da minha cabeça ponho-me no silêncio
Dos teus lábios.
Molda-me a partir do céu da tua boca
Porque pressinto que posso ouvir-te
No firmamento.

Daniel Faria
 « o mau é cada um ao seu, quem não gosta
do que há devia ser do toma lá, dá cá.»

II Casa de Elisa, Maria Velho da Costa

Paul Strand


 

“The essence of all beautiful art, all great art, is gratitude.”

Friedrich Nietzsche
"Other people are addicted to coffee, cigarettes, booze, dope — I'm addicted to words."

Margaret Atwood

 ''Os homens têm medo que as mulheres se riam deles. As mulheres têm medo de que os homens as matem.''

Margaret Atwood

sexta-feira, 28 de março de 2025

Numb - Portishead

Alice Rahon, as Photographed by Man Ray, 1933.

 




“You don't necessarily have to write to be a poet. Some people work in gas stations and they're poets. I don't call myself a poet, because I don't like the word. I'm a trapeze artist.”

Bob Dylan

 “Quero propor-lhe um abraço tão forte e duradouro que nos doa o corpo—porque é melhor que a carne sofra por amar do que a alma por sentir falta.”

Júlio Cortázar


"I have not taught painting because it cannot be taught. I have taught seeing. What I've taught was the philosophy of form, the philosophy of lines, the philosophy of colors."

Josef Albers

 Agora escrevo...

[...] Parecido com a vida, resumindo
Brutalmente a vida!
A chave dos sonhos, o segredo
Da felicidade, as mil e uma
Noites de solidão e medo,
A batata cozida do dia-a-dia,
O muscular fim de semana,
As sardinhas dormindo,
Decapitadas, no azeite,
O amor feito e desfeito
Como uma cama
E ao fundo – o mar…
Mas defendi-me e agora escrevo
Furiosamente, agora escrevo
Para alguém: [...]
Alexandre O'Neill, in Agora escrevo / No Reino da Dinamarca


'When you know something, you know it, and when you don’t, you’d better learn. And in the meantime, you should keep quiet, or at least speak only when what you say will advance the learning process.''

Roberto Bolaño

Saul Leiter Sunday Morning, 1947


 

“I happen to believe in the beauty of simple things. I believe that the most uninteresting thing can be very interesting.”

American artist Saul Leiter

Rodasse ou não a roda

 
Rodasse ou não a roda encabrestada 
Do que chamamos desvario atento 
Ao apenas lado lacrimal 
Da nossa história clínica passada 
Um par de hormonas celestiais cruzadas 
No interior do calafrio esse 
A palavra cortisona calculada 
Como te ouvira suspenso por um fio
 Último pássaro canto ou desafio? 


José Afonso (2022). Obra poética.  Lisboa: Relógio D’Água, p. 278

Canção de Outono


Perdoa-me, folha seca,
não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo,
e até do amor me perdi.
De que serviu tecer flores
pelas areias do chão,
se havia gente dormindo
sobre o próprio coração?
E não pude levantá-la!
Choro pelo que não fiz.
E pela minha fraqueza
é que sou triste e infeliz.
Perdoa-me, folha seca!
Meus olhos sem força estão
velando e rogando àqueles
que não se levantarão…
Tu és a folha de outono
voante pelo jardim.
Deixo-te a minha saudade
– a melhor parte de mim.
Certa de que tudo é vão.
Que tudo é menos que o vento,
menos que as folhas do chão…

Cecília Meireles

Saul Leiter Barbara, 1951

 


Daughter - The Wild Youth 2011

''o mármore e a murta''

“A estátua de mármore custa muito a fazer, pela dureza e resistência da matéria; mas, depois de feita uma vez, não é necessário que lhe ponham mais a mão: sempre conserva e sustenta a mesma figura; a estátua de murta é mais fácil de formar, pela facilidade com que se dobram os ramos, mas é necessário andar sempre reformando e trabalhando nela, para que se conserve.”

 Padre António Vieira, Sermão do Espírito Santo.

 "Sou composta por urgências, minhas alegrias são intensas, minhas tristezas...'absolutas', me entupo de ausências, me esvazio de excessos, não caibo no estreito, só vivo nos extremos..."

Clarice Lispector
 No dia em que 
 vendeu a burra,  
regressou a pé 
 para o monte e  
acreditou que nunca 
mais voltaria à vila. 
Tinha oitenta anos
  e é essa a idade  
das decisões para  
toda a vida.


 José Luís Peixoto in “Cal”

quarta-feira, 26 de março de 2025

To Kill a Dead Man - Portishead

 



                                                  Marlon Brando Marilyn Monroe

terça-feira, 25 de março de 2025

domingo, 23 de março de 2025

volição

 Há em ti a fadiga de uma asa  muito tempo tensa.


Dulce Maria Loynaz. Jardim de Outono. Tradução de Manuel Alberto Vieira. Edição Flâneur

 ''O amor dá coragem e dá 
                              fraqueza.
É, e será sempre, um mistério.''

Camilo Castelo Branco

AIR - Suicide Underground

 


Marilyn Monroe and JFK

''O que eu habito é a minha vulnerabilidade''

 que idade tinhas
quando a primeira árvore 
te disse para subires?

Emanuel Jorge Botelho. Dizeres de Atalaia. Edição Averno

CANÇÃO

 Duas pombas pousadas num só galho,
Dois lírios gémeos a despontar,
Duas borboletas sobre uma flor:
Felizes os que podem contemplar.

Os que contemplam de mãos enlaçadas,
Afogueados p'lo rubor do Verão,
Os que os contemplam de mãos enlaçadas
E nunca a noite lhes traz aflição.

Christina Rossetti. O Mercado dos Duendes e Outros Poemas. Tradução Margarida Vale de Gato. Edições Relógio D'Água.
Centro Comercial I

"Agora a morte é diferente,
facilitaram-nos o desespero, a angústia
tem já ar condicionado. Em vez
dos bancos de jardim, por certo demasiado
rudes, temos enfim lugares amplos
onde apodrecer a miséria simples do corpo.
Que incalculável felicidade a de percorrer
galerias de nada tresandando a limpeza
e segurança. Aí se abandonam jovens
rebanhos sentados sorrindo ao
vazio palpável, ou ferozmente no meio
dele. Revezam-se - mas quase diríamos
que são os mesmos ainda, exaustos
de contentamento. Dêmos pois as boas-vindas a esses
heróis do betão consagrado. Só eles nos fazem
acreditar no advento do romantismo cibernético.
É doce a merda que nos sepulta
e o cancro que um dia destes nos matará
há-de ser muito limpo, quase ecológico".

Manuel de Freitas

domingo, 16 de março de 2025

Franz Ferdinand - Toxic (version)

Dá-me a tua mão



Dá-me a tua mão,
Deixa que a minha solidão
prolongue mais a tua
- para aqui os dois de mãos dadas
nas noites estreladas,
a ver os fantasmas a dançar na lua.

Dá-me a tua mão, companheira,
até o Abismo da Ternura 
Derradeira.

José Gomes Ferreira

“Nunca o amor foi breve quando deu fruto”

Sebastião da Gama

sexta-feira, 14 de março de 2025

A hora dos zorzais

“A hora dos zorzais*” é uma expressão que homenageia o movimento destas aves em direção ao reencontro, uns dos outros, quando o dia chega ao fim.

* O zorzal (Turdus pilaris) é uma ave da família dos Turdídeos
"Dá à tua tristeza todo o espaço e abrigo que é devido, pois se todos suportarem a sua tristeza com honestidade e coragem, a tristeza que agora enche o mundo diminuirá.” 

 Etty Hillesum

quinta-feira, 13 de março de 2025

 "Beneath the jasmine a stone
marks a buried treasure.
On the path, my father stands.
A beautiful, beautiful day.

The gray poplar blooms,
centifola blooms,
and milky grass,
and behind it, roses climb.

I have never been
more happy than then.
I have never been more
happy than then.

To return is impossible
and to talk about it, forbidden—
how it was filled with bliss,
that heavenly garden."

Arseni Tarkovski

In: "The Mirror" (Andrei Tarkovski)

Mulheres e Revolução


REVOLUÇÃO

"Elas fizeram greves de braços caídos. Elas brigaram em casa para ir ao sindicato e à junta. Elas gritaram à vizinha que era fascista. Elas souberam dizer salário igual e creches e cantinas. Elas vieram para a rua de encarnado. Eles foram pedir para ali uma estrada de alcatrão e canos de água. Elas gritaram muito. Elas encheram as ruas de cravos. Elas disseram à mãe e à sogra que isso era dantes. Elas trouxeram alento e sopa aos quartéis e à rua. Elas foram para as portas de armas com os filhos ao colo. Elas ouviram faltar de uma grande mudança que ia entrar pelas casas. Elas choraram no cais agarradas aos filhos que vinham da guerra. Elas choraram de ver o pai a guerrear com o filho. Elas tiveram medo e foram e não foram. Elas aprenderam a mexer nos livros de contas e nas alfaias das herdades abandonadas. Elas dobraram em quatro um papel que levava dentro urna cruzinha laboriosa. Elas sentaram-se a falar à roda de uma mesa a ver como podia ser sem os patrões. Elas levantaram o braço nas grandes assembleias. Elas costuraram bandeiras e bordaram a fio amarelo pequenas foices e martelos. Elas disseram à mãe, segure-me aqui os cachopos, senhora, que a gente vai de camioneta a Lisboa dizer-lhes como é. Elas vieram dos arrebaldes com o fogão à cabeça ocupar uma parte de casa fechada. Elas estenderam roupa a cantar, com as armas que temos na mão. Elas diziam tu às pessoas com estudos e aos outros homens. Elas iam e não sabiam para aonde, mas que iam. Elas acendem o lume. Elas cortam o pão e aquecem o café esfriado. São elas que acordam pela manhã as bestas, os homens e as crianças adormecidas."

Maria Velho da Costa

parlapatório

quarta-feira, 12 de março de 2025

  «Escrever não é contar as lembranças, as viagens, os amores, os lutos, sonhos e fantasmas. Ninguém escreve com as suas neuroses. (…) A literatura só se afirma se descobre sob as aparentes pessoas a potência de um impessoal.» 

Deleuze

terça-feira, 11 de março de 2025

 


Martin Luther King flipping the middle finger

Here's Where the Story Ends

 EURÍDICE E ORFEU


1. A luz dos teus olhos devora tudo.

Ser visto é quase morrer.


Teixeira de Pascoaes, Verbo Escuro. Edição Assírio & Alvim

''Eu precisava urgentemente, todo dia, da beleza das frases, mas escrevia para encontrar um apoio para a miséria da vida e não porque queria fazer literatura.''

Herta Müller

segunda-feira, 10 de março de 2025

domingo, 9 de março de 2025

 « Sempre que estou profundamente triste e penso que vou morrer, ou tão nervosa que não consigo adormecer, ou apaixonada por alguém que não irei ver durante uma semana, colapso e digo a mim própria: «Vou tomar um banho quente.»

Sylvia PlathA Campânula de Vidro. Relógio D'Água. Tradução e Posfácio de Mário Avelar, 2016., p. 26

quinta-feira, 6 de março de 2025

Camille Claudel - Arte, paixão e loucura


 

O Homem dos Olhos Tortos (1918)

 A noite/2

Arranque-me, senhora, as roupas e as dúvidas. Dis-

pa-me, dispa-me.


Eduardo Galeano, in O livro dos abraços. Trad. Eric Nepomuceno. - 2ª edição. Porto Alegre L&PM, 2009

 «Os bens supérfluos tornam a vida supérflua.»

Pier Paolo Pasolini

quarta-feira, 5 de março de 2025

terça-feira, 4 de março de 2025

O VERBO E A MORTE




                          Edward Weston and Margrethe Mather 1922, by Imogen Cunningham

Both Sides Now

“Isto não é um país, é um sítio mal frequentado”

José Cardoso Pires

Os meus poemas são peregrinos
que se descalçam 
diante das palavras 


Anise Koltz
, Uma Morte Passageira, tradução de Regina Guimarães, edição Exclamação

Poema de Carnaval


Eu estava só naquela tarde e tu vieste
de dentro povoar-me de cidade o coração
prometido para o lugar
onde costumamos deixar as palavras
Tinham posto de novo fitas nas árvores
reuniram-se os corpos e as vozes
para todos juntos sentirem
pontualmente a alegria
E tu pousaste então ó meu pássaro naquele coração
cingido no meio da cidade


Ruy Belo, in "Obra Poética de Ruy Belo"
- Vol. 1, pág. 50 | Editorial Presença Lda., 1984



 Imogen Cunningham - Dream Walking

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