domingo, 31 de janeiro de 2021
''corria-lhe sangue da raiz das unhas''
Selma Lagerlöf. A Marcha Nupcial. Tradução de Pepita de Leitão. Livros do Brasil, Lisboa., p. 142
''rosto enrugado a poder de desgostos''
Selma Lagerlöf. A Marcha Nupcial. Tradução de Pepita de Leitão. Livros do Brasil, Lisboa., p. 142
«Já ninguém '' fia nem tece''. O tédio é ''um véu cálido e cinzento, forrado com a seda mais garrida e fulgurante'', no qual ''nos envolvemos quando sonhamos''. É nos ''arabescos desse forro que nos sentimos em casa''.*
«O sujeito produtivo entrega-se à liberdade coerciva ou à livre coação em prol da maximização da produtividade. O excesso de trabalho e de produção conduz, a um nível mais elevado, à autoexploração. Esta é mais eficaz do que a exploração por terceiros, uma vez que vem associada a um sentimento de liberdade. O ser explorado é simultaneamente o que explora - agente e vítima já não se distinguem entre si. Esta autorreferencialidade gera uma liberdade paradoxal que, em virtude das estruturas coercivas que lhe são intrínsecas, se converte em violência. As doenças psíquicas da sociedade da produção nada mais são do que manifestações patológicas desta liberdade paradoxal.
«A depressão dá-se no momento em que o sujeito produtivo já não é capaz de poder. Ela é, em primeira análise, um estar cansado de fazer e de poder. A queixa que se ouve dos lábios do indivíduo deprimido - Nada é possível - só pode existir numa sociedade que elevou Nada é impossível a máxima. O sentimento de já não ser capaz de poder conduz a uma autocrítica destrutiva e à autoagressão. O sujeito produtivo está em guerra consigo mesmo. O homem deprimido é o inválido desta guerra interiorizada. A depressão é a doença de uma sociedade que sofre do excesso de positividade e reflecte uma humanidade em guerra consigo própria.»
Byung-Chul Han. A Sociedade do Cansaço. Tradução de Gilda Lopes Encarnação. Relógio D' Água. 1ª Edição, Lisboa, 2014., p. 22/23
sábado, 30 de janeiro de 2021
«A sociedade da produção é caracterizada pelo verbo positivo poder - um verbo que não conhece limites. O plural coletivo, elevado à máxima afirmativa Yes, we can, traduz precisamente o caráter positivo da sociedade da produção. As proibições e as obrigações, as ordens e as leis são substituídas pelos projectos, pelas iniciativas e pelas motivações. A sociedade disciplinar era ainda dominada pelo não. A sua negatividade produzia loucos e criminosos. A sociedade da produção gera, em contrapartida, deprimidos e frustrados.»
Byung-Chul Han. A Sociedade do Cansaço. Tradução de Gilda Lopes Encarnação. Relógio D' Água. 1ª Edição, Lisboa, 2014., p. 20« A sociedade do século XXI já não é uma sociedade disciplinar, mas, sim, sujeitos de produção. Os seus habitantes já não são, por sua vez, ''sujeitos de obediência'', mas, sim, sujeitos de produção.»
Byung-Chul Han. A Sociedade do Cansaço. Tradução de Gilda Lopes Encarnação. Relógio D' Água. 1ª Edição, Lisboa, 2014., p. 19''violência do consenso''
Byung-Chul Han. A Sociedade do Cansaço. Tradução de Gilda Lopes Encarnação. Relógio D' Água. 1ª Edição, Lisboa, 2014., p. 15
« A violência da positividade, resultante da sobreprodução, sobrerrendimento e sobrecomunicação, já não é de natureza ''viral''. A imunologia não lhe oferece qualquer resposta. A rejeição produzida pelo excesso de positividade não corresponde a nenhuma resistência imunológica, mas sim a uma repulsa e a uma recusa digestivas e neuronais. O esgotamento, a fadiga e a sensação de sufoco perante o excesso não são, também, por sua vez, reacções imunológicas. Trata-se, em todos os casos, de manifestações de uma violência neuronal que, por não derivar de nenhuma negatividade imunológica, não é de ordem viral.»
Byung-Chul Han. A Sociedade do Cansaço. Tradução de Gilda Lopes Encarnação. Relógio D' Água. 1ª Edição, Lisboa, 2014., p. 13Zeca Afonso | Cantar alentejano
Serranas viram-na em vida
Baleizão a viu morrer
Ceifeiras na manhã fria
Flores na campa lhe vão pôr
Ficou vermelha a campina
Do sangue que então brotou
Acalma o furor campina
Que o teu pranto não findou
Quem viu morrer Catarina
Não perdoa a quem matou
Aquela pomba tão branca
Todos a querem p'ra si
Ó Alentejo queimado
Ninguém se lembra de ti
Aquela andorinha negra
Bate as asas p'ra voar
Ó Alentejo esquecido
Inda um dia hás-de cantar
Zeca Afonso - Cantigas do Maio (1971)
Eu fui ver a minha amada
Dei-lhe uma rosa encarnada
Para se lembrar de mim
Lá p'rós lados dum passal
Dei-lhe o meu lenço de linho
Que é do mais fino bragal
Numa barquinha a dormir
Dei-lhe uma colcha de seda
Para nela se cobrir
Numa salinha a fiar
Dei-lhe uma rosa vermelha
Para de mim se escantar
Lá nos campos eu fui ver
Dei-lhe uma rosa encarnada
Para de mim se prender
Onde está minha paixão
As andorinhas não param
Umas voltam outras não
Ai chore por quem muito amargou
Para então dizer ao mundo
Ai Deus mo deu Ai Deus mo levou
«A beatitude transfigurara-lhe o rosto.»
Selma Lagerlöf. A Lenda Da Rosa do Natal. Tradução de Pepita de Leitão. Livros do Brasil, Lisboa., p. 121
« Viu então o abade que a neve desaparecia do solo como um tapete que se enrola, e a terra começou a reverdecer. Os fetos erguiam os brotos, enroscados como básculos de bispos. Bem depressa, um manto verde claro revestiu o tojo da colina e a murta dos charcos. Cresceram e ergueram-se os tufos de musgo e
as flores da Primavera rebentaram em botões vigorosos, já estriados de cores.
Quando o abade viu os primeiros sinais do despertar da floresta, o seu coração começou a bater descompassadamente.
-Quê! Ser-me-á dado, a mim, tão velho, ver este milagre!
E os olhos arrasaram-se-lhe de lágrimas.
Às vezes, a obscuridade era tão forte que ele temia vê-la vencer a luz.»
Selma Lagerlöf. A Lenda da Rosa do Natal. Tradução de Pepita de Leitão. Livros do Brasil, Lisboa., p. 118
Barbearia
quando voltava da machamba de milho.
Os que viram
dizem que Júlio foi escanhoado
até às carótidas do colarinho
em requintes de gilete
dos facões de mato.
Os barbeiros do Chaúque
deixaram em toalhas de folhas secas
congruentes nódoas roxas.
A boca
júbilos de lâmina
afiada.
Alva dentadura
antónima do riso
às escâncaras desde a cilada.
Exotismo de povo flagelado
esse atroz formato
da fala.
Aldeia Queimada
desparasitadas de estrelas
é que as hienas
actuam.
É
de cinzas
o vestígio das palhotas.
MOÇAMBIQUICIDA
sacarinas capulanas de fumaça
e uma fervura de cinco
tabuadas e uns onze
- ou talvez só dez -
cadernos e um giz
espólio das escolas destruídas.
Sobrevivos moçambiquicidas
imolam-se mesclados
no infuturo.
REZA, MARIA
e não são bestas
são homens, Maria!
Corre-se a pontapés os cães na fome dos ossos
e não são cães
são seres humanos, Maria!
Feras matam velhos, mulheres e crianças
e não são feras, são homens
e os velhos, as mulheres e as crianças
são os nossos pais
nossas irmãs e nossos filhos, Maria!
Crias morrem á míngua de pão
vermes na rua estendem a mão a caridade
e nem crias nem vermes são
mas aleijados meninos sem casa, Maria!
Do ódio e da guerra dos homens
das mães e das filhas violadas
das crianças mortas de anemia
e de todos os que apodrecem nos calabouços
cresce no mundo o girassol da esperança
Ah! Maria
põe as mãos e reza.
Pelos homens todos
e negros de toda a parte
põe as mãos
e reza, Maria!
sexta-feira, 29 de janeiro de 2021
«Não me quero arvorar em juiz, em diante dele nem diante de ti; digo somente que se lhes fosse permitido ver o paraíso de que falo, arrancariam todas as flores que estão aqui, e rejeitá-las-iam como joio.»
Selma Lagerlöf. A Mina de Prata. Tradução de Pepita de Leitão. Livros do Brasil, Lisboa., p. 111''Parecia conhecer a salva e o alecrim''
Selma Lagerlöf. A Mina de Prata. Tradução de Pepita de Leitão. Livros do Brasil, Lisboa., p. 110
''falou-lhe de mansinho''
Selma Lagerlöf. A Mina de Prata. Tradução de Pepita de Leitão. Livros do Brasil, Lisboa., p. 109
''havia panos fúnebres na janela''
Selma Lagerlöf. A Mina de Prata. Tradução de Pepita de Leitão. Livros do Brasil, Lisboa., p. 98
«O Senhor não foi justo para connosco, dando-nos uma região tão pobre para habitar - disse um. - Em outros lugares os homens podem ter a riqueza e o supérfluo, ao passo que aqui, com todos os nossos esforços, mal chegamos a ganhar o pão quotidiano.»
Selma Lagerlöf. A Mina de Prata. Tradução de Pepita de Leitão. Livros do Brasil, Lisboa., p. 95
CASIDA DE LA MUJER TENDIDA
Verte desnuda es recordar la tierra.
La tierra lisa, limpia de caballos.
La tierra sin un junco, forma pura
cerrada al porvenir: confín de plata.
Verte desnuda es comprender el ansia
de la lluvia que busca débil talle,
o la fiebre del mar de inmenso rostro
sin encontrar la luz de su mejilla.
La sangre sonará por las alcobas
y vendrá con espada fulgurante,
pero tú no sabrás dónde se ocultan
el corazón de sapo o la violeta.
Tu vientre es una lucha de raíces,
tus labios son un alba sin contorno,
bajo las rosas tibias de la cama
los muertos gimen esperando turno.
Federico García Lorca
La memoria y la piedra
La luz del sol sobre los muros,
la resaca, las voces que te cercan,
los árboles que al fondo se dibujan,
los recuerdos que secan más tu boca,
el implacable escenario de tu herencia.
Sin embargo has venido, has vuelto
a recobrar tu patrimonio abandonado,
el espectro que tú llamaste vida,
lo que fue, lo que los años han dejado.
Palabras tropezadas de pasión,
violenta lengua, piel derramada entre las manos,
lo que fue, carne entregada, saliva, sangre,
temblor, caliente olor, dos cuerpos enlazados
rodando para siempre hacia la nada.
Aquí, en esta pequeña calle, en ese apartamento
-cuyas paredes todavía se levantan detrás de la memoria-,
sentiste el terco aliento del deseo y del odio,
la ternura y la furia recorriendo tu piel y sus rincones,
inventando su camino de fuego entre los muslos,
y aquel pelo y los húmedos, ocultos labios,
y los dientes mordiendo y la mirada ciega.
Hoy has regresado -siempre regresas a esta ciudad
donde la piedra venció al tiempo hace siglos-
y esta mañana de agobiante verano,
mirando la nieve lejana en los volcanes,
has buscado, junto a un portal perdido,
tu devastado origen, el territorio de tus sueños.
Mientras enciendes -temblándote la mano– un cigarrillo
sabes que aquí tuviste todo y no tuviste nada,
sino este sol sobre los muros y los árboles.
Igual que ahora, cuando otra vez la luz te ciega
y el humo del cigarrillo rememora borrosas figuras,
vagos gestos con los que te consuelas,
cuando palabras, cuerpos, son ya sólo sombras
-sombras a plena luz, humo en los ojos-,
fantasmas que la resaca solivianta.
quinta-feira, 28 de janeiro de 2021
quarta-feira, 27 de janeiro de 2021
''Women should be respected as well! Generally speaking, men are held in great esteem in all parts of the world, so why shouldn’t women have their share? Soldiers and war heroes are honored and commemorated, explorers are granted immortal fame, martyrs are revered, but how many people look upon women too as soldiers?''
Anne Frank
terça-feira, 26 de janeiro de 2021
segunda-feira, 25 de janeiro de 2021
«As doenças neuronais do século XXI obedecem, também elas, a uma dialética, ainda que não se trate de uma dialética da negatividade. Elas seguem, sim, a dialética da positividade. Estamos perante estados patológicos que têm a ver com um excesso de positividade.»
Byung-Chul Han. A Sociedade do Cansaço. Tradução de Gilda Lopes Encarnação. Relógio D' Água. 1ª Edição, Lisboa, 2014., p. 13
Push the Sky Away // Nick Cave & The Bad Seeds
The sun, the sun, the sun was rising from the field
I got a feeling that just won't go away
You've got to just keep on pushing
Keep on pushing it
Push the sky away
And if they think that you should do it the same
You've got to just keep on pushing
Keep on pushing
Push the sky away
If you got everything and you don't want no more
You've got to just keep on pushing
Keep on pushing
Push the sky away
Oh but it gets you right down to your soul
You've got to just keep on pushing
Keep on pushing
Push the sky away
Keep on pushing
Push the sky away
domingo, 24 de janeiro de 2021
«Então, de repente, lembrei-me de ter ouvido dizer que, levando um punhado de cinza da própria lareira e espalhando-a na lareira estranha, a gente ficava livre de toda a nostalgia.» (p.48)
«- E agora crês que foram as cinzas que te socorreram?» (p.49)
Selma Lagerlöf. O Livro das Lendas. Tradução de Pepita de Leitão. Livros do Brasil, Lisboa., p. 48/9''máscula gentileza''
Selma Lagerlöf. O Livro das Lendas. Tradução de Pepita de Leitão. Livros do Brasil, Lisboa., p. 26
sábado, 23 de janeiro de 2021
A pátria é triste. Sofro. Estou calmo.
Único honesto, entre desonestos, clarividente,
entre os cegos, a indignação há muito acalmo.
Estou só. Sofro quando alguém sente.
A honestidade – que solidão! A coragem cansa.
Em breve, cadáver que a outros mortos fala,
penso em Atenas, plena de alegria mansa,
e no coração afogo palavras que o pudor cala.
Estou cansado de prever o negro acontecer.
Algo nasce. Algo morre. Com quem perde, estou.
Honestidade é pátria de quem outra não sabe ter.
Ao abismo das causas perdidas, quieto, vou.
Melhor do que ocupar-me da minha pobre vida,
agora que pos pássaros a cantar começam,
na espada pego, com mão há pouco ferida
– o vento rasgo. Percebo que meus pés tropeçam.
[337]
ÁFRICA
Em meus lábios grossos fermenta
a farinha do sarcasmo que coloniza minha Mãe África
e meus ouvidos não levam ao coração seco
misturada com o sal dos pensamentos
a sintaxe anglo-latina de novas palavras.
Amam-me com a única verdade dos seus evangelhos
a mística das suas missangas e da sua pólvora
a lógica das suas rajadas de metralhadora
e enchem-me de sons que não sinto
das canções das suas terras
que não conheço.
E dão-me
a única permitida grandeza dos seus heróis
a glória dos seus monumentos de pedra
a sedução dos seus pornográficos Rols-Royce
e a dádiva quotidiana das suas casas de passe.
Ajoelham-me aos pés dos seus deuses de cabelos lisos
e na minha boca diluem o abstracto
sabor da carne de hóstias em milionésimas
circunferências hipóteses católicas de pão.
E em vez dos meus amuletos de garras de leopardo
vendem-me a sua desinfectante benção
a vergonha de uma certidão de filho de pai incógnito
uma educativa sessão de «strip-tease» e meio litro
de vinho tinto com graduação de álcool de branco
exacta só para negro
um gramofone de magaíza
um filme de heróis de carabina a vencer traiçoeiros
selvagens armados de penas e flechas
e o ósculo das suas balas e dos seus gases lacrimogéneos
civiliza o meu casto impudor africano.
Efígies de Cristo suspendem ao meu pescoço
em rodelas de latão em vez dos meus autênticos
mutovanas de chuva e da fecundidade das virgens
do ciúme e da colheita de amendoim novo.
E aprendo que os homens inventaram
a confortável cadeira eléctrica
a técnica de Buchenwald e as bombas V2
acenderam fogos de artifício nas pupilas
de ex-meninos vivos de Varsóvia
criaram Al Capone, Hollywood, Harlem
a seita Ku-Klux-Klan, Cato Mannor e Sharpeville
e emprenharam o pássaro que fez o choco
sobre os ninhos mornos de Hiroshima e Nagasaki
conheciam o segredo das parábolas de Charlie Chaplin
lêem Platão, Marx, Gandhi, Einstein e Jean-Paul Sartre
e sabem que Garcia Lorca não morreu mas foi assassinado
são os filhos dos santos que descobriram a Inquisição
perverteram de labaredas a crucificada nudez
da sua Joana D’Arc e agora vêm
arar os meus campos com charruas «made in Germany»
mas já não ouvem a subtil voz das árvores
nos ouvidos surdos do pasmo das turbinas
não lêem nos meus livros de nuvens
o sinal das cheias e das secas
e nos seus olhos ofuscados pelos clarões metalúrgicos
extinguiu-se a eloquente epidérmica beleza de todas
as cores das flores do universo
e já não entendem o gorjeio romântico das aves de casta
instintos de asas em bando nas pistas do éter
infalíveis e simultâneos bicos trespassando sôfregos
a infinita côdea impalpável de um céu que não existe.
E no colo macio das ondas não adivinham os vermelhos
sulcos das quilhas negreiras e não sentem
como eu sinto o prenúncio mágico sob os transatlânticos
da cólera das catanas de ossos nos batuques do mar.
E no coração deles a grandeza do sentimento
é do tamanho cow-boy do nimbo dos átomos
desfolhados no duplo rodeo aéreo no Japão.
Mas nos verdes caminhos oníricos do nosso desespero
perdoo-lhes a sua bela civilização à custa do sangue
ouro, marfim, améns
e bíceps do meus povo.
E ao som másculo dos tantãs tribais o Eros
do meu grito fecunda o húmus dos navios negreiros...
E ergo no equinócio da minha Terra
o moçambicano rubi do nosso mais belo canto xi-ronga
e na insólita brancura dos rins da plena Madrugada
a necessária carícia dos meus dedos selvagens
é a tácita harmonia de azagaias no cio das raças
belas como altivos falos de ouro
erectos no ventre nervoso da noite africana.
[40]
O MEU PREÇO
Eu cidadão anónimo
do País que mais amo sem dizer o nome
se é para me dar de corpo e alma
dou-me todo como daquela vez em Chaimite.
Dou-me em troca de mil crianças felizes
nenhum velho a pedir esmola
uma escola em cada bairro
salário justo nas oficinas
filas de camiões carregados de hortaliças
um exército de operários todos com serviço
um tesouro de belas raparigas maravilhando as praias
e ao vento da minha terra uma grande bandeira sem quinas.
Se é para me dar
dou-me de graça por conta disso.
Mas se é para me vender
vendo-me mas vendo-me muito caro.
Ao preço incondicional
de quanto me pode custar este poema.
[335]
José Craveirinha
MUHÍPITI
É onde deponho todas as armas. Uma palmeira
harmonizando-nos o sonho. A sombra.
Onde eu mesmo estou. Devagar e nu. Sobre
as ondas eternas. Onde nunca fui e os anjos
brincam aos barcos com livros como mãos.
Onde comemos o acidulado último gomo
das retóricas inúteis. É onde somos inúteis.
Puros objectos naturais. Uma palmeira
de missangas com o sol. Cantando.
Onde na noite a Ilha recolhe todos os istmos
e marulham as vozes. A estatuária nas virilhas.
Golfando. Maconde não petrificada.
É onde estou neste poema e nunca fui.
O teu nome que grito a rir do nome.
Do meu nome anulado. As vozes que te anunciam.
E me perco. E estou nu. Devagar. Dentro do corpo.
Uma palmeira abrindo-se para o silêncio.
É onde sei a maxila que sangra. Onde os leopardos
naufragam. O tempo. O cigarro a metralhar
nos pulmões. A terra empapada. Golfando. Vermelha.
É onde me confundo de ti. Um menino vergado
ao peso de ser homem. Uma palmeira em azul
humedecido sobre a fronte. A memória do infinito.
O repouso que a si mesmo interroga. Ouve.
A ronda e nenhum avião partiu. É onde estamos.
Onde os pássaros são pássaros e tu dormes.
E eu vagueio em soluços de sílabas. Onde
Fujo deste poema. Uma palmeira de fogo.
Na Ilha. Incendiando-nos o nome.
[54]
Eis as casas. Grutas de sal a céu onde me descubro. E sou nome ou reboco do dia que se extenua ou sonha, vento marítimo que me leva às praias fulgurantes que faltam nos livros. Aqui me deito, peixe, memória, homem, contigo e a chuva e o iodo e o som das casuarinas circulares, teu verde escuro açoitado de desejo. O bosque.
Aqui me ergo, pendurado em panos às janelas, imagens de despudor sem mim. Porque aqui me esqueço do que me querem. Da história que me fizeram e fui. Olhem estas paredes que respiram! Arfam? Olhem onde não me posso esconder, no laborioso percurso das tardes jogando-me, brincando, obsessivo gerúndio doutra estória às avessas da história, onde não me vissem mais, quando me distraio, viandante de mim nos alvéolos iluminados do tempo.
[133]
ELEGIA DO NILO
à Odete e ao Amioto
Azul e branco e o deus crocodilo na margem
Diante das ruínas de Karnak,
como sobes, visto daqui, das águas obscuras
Onde Ogum verteu suas lágrimas e cantou
O sulco vindouro, persistente e duro caminhante
De sul para norte sobre as areias, rasgando a volúvel pele
Dos deuses.
Reis e templos, em tuas margens ordenaram o mundo
Entre cada ciclo solar, suspensos do fim;
E louvo a cidade dos que partiram, o fluxo da pedra
que ainda sustém a geometria do eterno
emergindo da tua indiferença; Tu, que escondes os gatos
imóveis e os sabes para sempre espíritos soltos, eriçados; e te deleitas,
vendo-os na ronda dos desenhos enigmáticos, anichando-os junto aos
Sarcófagos que extrapolam de Ti, como se o teu leito derramado
Tivesse soerguido, da solidão granular, o perfil oblongo
Da cabeça de Nefertiti e Te espojasses na beleza efémera
Dos esponsais da Carne;
Ó matéria perecível que as ânforas guardam, aguardam,
Nós que perdemos o divino selo das libações inaugurais e salmodiamos,
No medo litúrgico da palavra esquecida, o simulacro do Livro
E a salvação dos mortos;
O que sabia deles, extirpadas as vísceras, iluminados pelo ouro e a água
De que eras a substância!
Desceram as noites e o desmundo bebeu nas tuas margens
Enquanto Tu cantavas e era de ti o canto
Moldando a forma, lacerando as cidades e erguendo-as,
Com nossos pés descalços sobre a erva, acocorados
E breves, uma inscrição de sangue diluindo-se
Até ao mar.
[142]
Luís Carlos Patraquim
Do meu amigo chegarão as flores
e os vaticínios
a dog starv’d at his master’s gate
predicts the ruin of the State
Tanjarinas!
E de mulheres mil
Um Nome,
Ou a pátria,
Rendilhada cortina
Que a usura pui,
E o cós da angústia
No blazer que a Noite em verbo nua
anverso da máscara
Convocando Xipokwés e géiseres e
as aprazíveis praias onde Ulisses
Aportou,
Do meu amigo chegarão as flores
Ai, deus, e u é?
[321]
A CANÇÃO DE ZEFANIAS SFORZA (excerto/ 3)
Todas as cidades têm as suas entranhas e estranhezas. Apesar de Maputo não ter muito de labiríntico, e digo isto se exceptuarmos os chamados subúrbios, anverso do cimento, não se lhe conhecem túneis nem grutas como em Nápoles, ou Roma, para só citar dois nomes.
Desenhada a régua e esquadro, aqui um quase boulevard que sai da Praça junto ao porto e sobe, em suave inclinação, até ao Conselho Executivo, a baixa e a alta espraiam-se, regra geral, em quarteirões que as paralelas e as perpendiculares demarcam. Uma e outra sinuosidade, alguns gavetos, pátios interiores, numa arquitectura monótona. Há excepções, a que é preciso estar atento. Outras impõem-se. Outras, ainda, ruíram.
[327]
Luís Carlos Patraquim
ALEGORIA
Em Inhaminga, meu amor,
estão as armas apontadas para o céu
mas só há pássaros.
E como as armas pensam no canudo do seu cérebro
que as aves são inofensivos passarinhos
estes aproveitam a confusão
dos pára-quedistas já cansados.
Por isso cada pássaro que voa pelo céu
(luminoso como uma palavra boa)
deixa cair melancolicamente
o seu depósito de agradecimento
sobre as armas
e a estupidez dos generais.
Vorazmente, meu amor,
o destino da terra passa
e cria-se entre o ventre das armas
e o círculo da esquadrilha voadora
o futuro desta terra
que alarga e fermenta.
Tudo isto em Inhaminga,
com o tamanho deste país,
meu amor.
[245]
A Rui Guerra
Quando eu nasci na grande casa à beira-mar,
era meio-dia e o sol brilhava sobre o Índico.
Gaivotas pairavam, brancas, doidas de azul.
Os barcos dos pescadores indianos não tinham regressado ainda
arrastando as redes pejadas.
Na ponte, os gritos dos negros dos botes
chamando as mamanas amolecidas de calor,
de trouxas à cabeça e garotos ranhosos às costas
soavam com um ar longínquo,
longínquo e suspenso na neblina do silêncio.
E nos degraus escaldantes,
mendigo Mufasini dormitava, rodeado de moscas.
Quando eu nasci...
- Eu sei que o ar estava calmo, repousado (disseram-me)
e o sol brilhava sobre o mar.
No meio desta calma fui lançada ao mundo,
já com meu estigma.
E chorei e gritei – nem sei porquê.
Ah, mas pela vida fora,
minhas lágrimas secaram ao lume da revolta.
E o Sol nunca mais brilhou como nos dias primeiros
da minha existência,
embora o cenário brilhante e marítimo da minha infância,
constantemente calmo como um pântano,
tenha sido quem guiou meus passos adolescentes,
- meu estigma também.
Mais, mais ainda: meus heterogéneos companheiros
de infância.
Meus companheiros de pescarias
por debaixo da ponte,
com anzol de alfinete e linha de guita,
meus amigos esfarrapados de ventres redondos como cabaças,
companheiros de brincadeiras e correrias
pelos matos e praias da Catembe
unidos todos na maravilhosa descoberta de um ninho de tutas,
na construção de uma armadilha com nembo,
na caça aos gala-galas e beija-flores,
nas perseguições aos xitambelas sob um sol quente de Verão...
- Figuras inesquecíveis da minha infância arrapazada,
solta e feliz:
meninos negros e mulatos, brancos e indianos,
filhos da mainata, do padeiro,
do negro do bote, do carpinteiro,
vindos da miséria do Guachene
ou das casas de madeira dos pescadores,
Meninos mimados do posto,
meninos frescalhotes dos guardas-fiscais da Esquadrilha
- irmanados todos na aventura sempre nova
dos assaltos aos cajueiros das machambas,
no segredo das maçalas mais doces,
companheiros na inquieta sensação do mistério da “Ilha dos navios perdidos”
- onde nenhum brado fica sem eco.
Ah, meus companheiros acocorados na roda maravilhada
e boquiaberta de “Karingana wa karingana”
das histórias da cocuana do Maputo,
em crepúsculos negros e terríveis de tempestades
(o vento uivando no telhado de zinco,
o mar ameaçando derrubar as escadas de madeira da varanda
e casuarinas, gemendo, gemendo,
oh inconsolavelmente gemendo,
acordando medos estranhos, inexplicáveis
das nossas almas cheias de xituculumucumbas desdentadas
e reis Massingas virados jibóias...)
Ah, meus companheiros me semearam esta insatisfação
dia a dia mais insatisfeita.
Eles me encheram a infância do sol que brilhou
no dia em que nasci.
Com a sua camaradagem luminosa, impensada,
sua alegria radiante,
seu entusiasmo explosivo diante
de qualquer papagaio de papel feito asa
no céu de um azul tecnicolor,
sua lealdade sem código, sempre pronta,
- eles encheram minha infância arrapazada
de felicidade e aventuras insquecíveis.
Se hoje o sol não brilha como do dia
em que nasci, na grande casa,
à beira do Índico,
não me deixo adormecer na escuridão.
Meus companheiros me são seguros guias
na minha rota através da vida.
Eles me provaram que “fraternidade” não é mera palavra bonita
escrita a negro no dicionário da estante:
ensinaram-me que “fraternidade” é um sentimento belo, e possível,
mesmo quando as epidermes e a paisagem circundante
são tão diferentes.
Por isso eu CREIO que um dia
o sol voltará a brilhar, calmo, sobre o Índico.
Gaivotas pairarão, brancas, doidas de azul
e os pescadores voltarão cantando,
navegando sobre a tarde ténue.
E este veneno de lua que a dor me injectou nas veias
em noite de tambor e batuque
deixará para sempre de me inquietar.
Um dia,
o sol iluminará a vida.
E será como uma nova infância raiando para todos.
(29/4/50)
Noémia de Sousa
The Beatles - Help!
(Help!) not just anybody
(Help!) you know I need someone
Help!
But now these days are gone, I'm not so self assured (but now these days are gone)
(And now I find) Now I find I've changed my mind and opened up the doors
And I do appreciate you being 'round
Help me get my feet back on the ground
Won't you please, please help me?
My independence seems to vanish in the haze
But every now and then I feel so insecure (I know that I)
I know that I just need you like I've never done before
And I do appreciate you being 'round
Help me get my feet back on the ground
Won't you please, please help me
I never needed anybody's help in any way
But now these days are gone, I'm not so self assured (but now these days are gone)
(And now I find) now I find I've changed my mind and opened up the doors
And I do appreciate you being 'round
Help me get my feet back on the ground
Won't you please, please help me, help me, help me, ooh
''Depois do gozo das primeiras letras partilhadas há muitos que ficam saciados e desistem. No seu caso, em que momento brotou a consciência de estar condenado a escrever?
Foi um percurso um bocado sonâmbulo. Era como a imaginação, não a controlávamos, aceitávamos a torrente e íamos sentados no lugar ao lado do condutor. Agora tenho evidentemente outra consciência dos processos, na altura era uma menina virgem entontecida pelo fulgor dos desejos. Olhe, e era o que admiravamos no White, aquele jorro, um improvisador nato, às vezes um bocadinho desagradável…mas tinha a centelha. Tudo isto é um bocado romântico, e acalmou, e às vezes dá saudade… São fases.''
Execto da entrevista de António Cabrita ao Poeta Pedro Mbate, na Revista Caliban
“O mel amargo” (AEMO, 2006)
“Minarete de medos e outros poemas” (Índico, 2009) ''
''Debaixo do silêncio que arde” (Índico, 2015)
Fernando Pessoa
Levas uma rosa ao peito
Levas uma rosa ao peito
Levas uma rosa ao peito
E tens um andar que é teu...
Antes tivesses o jeito
De amar alguém, que sou eu.
Quadras ao Gosto Popular. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido e prefaciado por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1965. (6ª ed., 1973).
- 42.
Fonte: http://arquivopessoa.net/textos/2451
A Duarte Galvão
Somos fugitivas de todos os bairros de zinco e caniço,
Fugitivas das Munhuanas e dos Xipamanines,
viemos do outro lado da cidade
com nossos olhos espantados,
nossas almas trancadas,
nossos corpos submissos escancarados.
De mãos ávidas e vazias,
de ancas bamboleantes lâmpadas vermelhas se acendendo,
de corações amarrados de repulsa,
descemos atraídas pelas luzes da cidade,
acenando convites aliciantes
como sinais luminosos na noite,
Viemos...
Fugitivas dos telhados de zinco pingando cacimba,
do sem sabor do caril de amendoim quotidiano,
do doer de espádua todo o dia vergadas
sobre sedas que outros exibirão,
dos vestidos desbotados de chita,
da certeza terrível do dia de amanhã
retrato fiel do que passou,
sem uma pincelada verde forte
falando de esperança,
Viemos...
E para além de tudo,
por sobre Índico de desespero e revoltas,
fatalismos e repulsas,
trouxemos esperança.
Esperança de que a xituculumucumba já não virá
em noites infindáveis de pesadelo,
sugar com seus lábios de velha
nossos estômagos esfarrapados de fome,
E viemos....
Oh sim, viemos!
Sob o chicote da esperança,
nossos corpos capulanas quentes
embrulharam com carinho marítimos nómadas de outros portos,
saciaram generosamente fomes e sedes violentas...
Nossos corpos pão e água para toda a gente.
Viemos...
Ai mas nossa esperança
venda sobre nossos olhos ignorantes,
partiu desfeita no olhar enfeitiçado de mar
dos homens loiros e tatuados de portos distantes,
partiu no desprezo e no asco salivado
das mulheres de aro de oiro no dedo,
partiu na crueldade fria e tilintante das moedas de cobre
substituindo as de prata,
partiu na indiferença sombria da caderneta...
E agora, sem desespero nem esperança,
seremos em breve fugitivas das ruas marinheiras da cidade...
E regressaremos,
Sombrias, corpos floridos de feridas incuráveis,
rangendo dentes apodrecidos de tabaco e álcool,
voltaremos aos telhados de zinco pingando cacimba,
ao sem sabor do caril de amendoim
e ao doer do corpo todo, mais cruel, mais insuportável...
Mas não é a piedade que pedimos, vida!
Não queremos piedade
daqueles que nos roubaram e nos mataram
valendo-se de nossas almas ignorantes e de nossos corpos macios!
Piedade não trará de volta nossas ilusões
de felicidade e segurança,
não nos dará os filhos e o luar que ambicionávamos.
Poedade não é para nós.
Agora, vida, só queremos que nos dês esperança
para aguardar o dia luminoso que se avizinha
quando mãos molhadas de ternura vierem
erguer nossos corpos doridos submersos no pântano,
quando nossas cabeças se puderem levantar novamente
com dignidade
e formos novamente mulheres!
[73]
para Rui Knopfli
Ergueste uma capela e ensinaste-me a temer a Deus e a ti.
Vendeste-me o algodão da minha machamba
pelo dobro do preço por que mo compraste,
estabeleceste-me tuas leis
e minha linha de conduta foi por ti traçada.
Construíste calabouços
para lá me encerrares quando não te pagar os impostos,
deixaste morrer de fome meus filhos e meus irmãos,
e fizeste-me trabalhar dia após dia, nas tuas concessões.
Nunca me construíste uma escola, um hospital,
nunca me deste milho ou mandioca para os anos de fome.
E prostituíste minhas irmãs,
e as deportaste para S. Tomé...
- Depois de tudo isto,
não achas demasiado exigir-me que baixe a lança e o escudo
e, de rojo, grite à capulana vermelha e verde
que me colocaste à frente dos olhos: BAYETE?
[76]
Para Antero
Se me quiseres conhecer,
estuda com olhos bem de ver
esse pedaço de pau preto
que um desconhecido irmão maconde
de mãos inspiradas
talhou e trabalhou
em terras distantes lá do Norte.
Ah, essa sou eu:
órbitas vazias no desespero de possuir vida,
boca rasgada em feridas de angústia,
mãos enormes, espalmadas,
erguendo-se em jeito de quem implora e ameaça,
corpo tatuado de feridas visíveis e invisíveis
pelos chicotes da escravatura...
Torturada e magnífica,
altiva e mística,
África da cabeça aos pés,
- ah, essa sou eu
Se quiseres compreender-me
vem debruçar-te sobre minha alma de África,
nos gemidos dos negros no cais
nos batuques frenéticos dos muchopes
na rebeldia dos machanganas
na estranha melancolia se evolando
duma canção nativa, noite dentro...
E nada mais perguntes,
se é que me queres conhecer...
Que não sou mais que um búzio de carne,
onde a revolta de África congelou
seu grito inchado de esperança.
[83]