quarta-feira, 26 de outubro de 2016
«Eu megalômano, narcísico,»
Isabel Mesquita. Disfarces de Amor. Relacionamentos Amorosos e Vulnerabilidade narcísica. Climepsi Editores, Lisboa, 2013., p. 15
anestesia afectiva
Isabel Mesquita. Disfarces de Amor. Relacionamentos Amorosos e Vulnerabilidade narcísica. Climepsi Editores, Lisboa, 2013., p. 14
Creianálise
Creianálise (análise dos relacionamentos íntimos)
António Coimbra de Matos in Prefácio Disfarces de Amor. Relacionamentos Amorosos e Vulnerabilidade narcísica. Isabel Mesquita. Climepsi Editores, Lisboa, 2013., p. 12
António Coimbra de Matos in Prefácio Disfarces de Amor. Relacionamentos Amorosos e Vulnerabilidade narcísica. Isabel Mesquita. Climepsi Editores, Lisboa, 2013., p. 12
''as lacunas e as deformações narcísicas''
António Coimbra de Matos
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« Uma coisa é certa: bicho Homem reconhece-se, sabe quem é - Homo sapiens sapiens (sabe e sabe que sabe) - identifica-se e sabe que é único; e valora-se, sabe que tem determinado valor no mercado relacional (na bolsa das relações humanas), um valor de estima, uma qualidade - que está áquem e vai para além da substância concreta de que é feito.»
António Coimbra de Matos in Prefácio Disfarces de Amor. Relacionamentos Amorosos e Vulnerabilidade narcísica. Isabel Mesquita. Climepsi Editores, Lisboa, 2013., p. 8
António Coimbra de Matos in Prefácio Disfarces de Amor. Relacionamentos Amorosos e Vulnerabilidade narcísica. Isabel Mesquita. Climepsi Editores, Lisboa, 2013., p. 8
«(...) sobre o amor e a sua falta - o amor falho, o amor que não se teve na justa e necessária medida, no temo certo e na qualidade adequada.
O amor que se recebe e o amor que se dá. O amor passivo e captativo; e o amor activo e oblativo. O amor que nos constrói e dá forma; bondade, beleza e verdade; completude, coesão, continuidade e determinância; fé, esperança e entusiasmo; força, valor e significado; criatividade e futuro - Amor que é o amor incondicional do outro; e que só esse amor estrutura um amor próprio sólido, seguro e fiável capaz de nos auto-sustentar no voo do amor mútuo, complementar, insaturado e criador do par de amantes.»
António Coimbra de Matos in Prefácio Disfarces de Amor. Relacionamentos Amorosos e Vulnerabilidade narcísica. Isabel Mesquita. Climepsi Editores, Lisboa, 2013., p. 7
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o.bla.ção
nome feminino
1. oferecimento de alguma coisa à divindade, por meio de certas cerimónias litúrgicas, oblata
2. oferenda
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domingo, 23 de outubro de 2016
“Os meus sonhos são mais belos que a conversa alheia”
«Não faço visitas, nem ando em sociedade alguma – nem de salas, nem de cafés. Fazê-lo seria sacrificar a minha unidade interior, entregar-me a conversas inúteis, furtar tempo senão aos meus raciocínios e aos meus projectos, pelo menos aos meus sonhos, que sempre são mais belos que a conversa alheia.
Devo-me a humanidade futura. Quanto me desperdiçar desperdiço do divino património possível dos homens de amanhã; diminuo-lhes a felicidade que lhes posso dar e diminuo-me a mim-próprio, não só aos meus olhos reais, mas aos olhos possíveis de Deus.
Isto pode não ser assim, mas sinto que é meu dever crê-lo.»
Fernando Pessoa, ‘Inéditos’
Devo-me a humanidade futura. Quanto me desperdiçar desperdiço do divino património possível dos homens de amanhã; diminuo-lhes a felicidade que lhes posso dar e diminuo-me a mim-próprio, não só aos meus olhos reais, mas aos olhos possíveis de Deus.
Isto pode não ser assim, mas sinto que é meu dever crê-lo.»
Fernando Pessoa, ‘Inéditos’
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sexta-feira, 21 de outubro de 2016
Segue o Teu Destino
Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.
A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nos queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-proprios.
Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.
Ricardo Reis, in “Odes”
Amo o que Vejo
Amo o que vejo porque deixarei
Qualquer dia de o ver.
Amo-o também porque é.
No plácido intervalo em que me sinto,
Do amar, mais que ser,
Amo o haver tudo e a mim.
Melhor me não dariam, se voltassem,
Os primitivos deuses,
Que também, nada sabem.
Ricardo Reis, in “Odes”
Estás Só
Estás só. Ninguém o sabe. Cala e finge.
Mas finge sem fingimento.
Nada ‘speres que em ti já não exista,
Cada um consigo é triste.
Tens sol se há sol, ramos se ramos buscas,
Sorte se a sorte é dada.
Ricardo Reis, in “Odes”
Colhe o Dia, porque És Ele
Uns, com os olhos postos no passado,
Veem o que não veem: outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, veem
O que não pode ver-se.
Por que tão longe ir pôr o que está perto —
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.
Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.
Ricardo Reis, in “Odes”
Tenho Mais Almas que Uma
Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.
Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.
Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu ‘screvo.
Ricardo Reis, in “Odes
Abaixo, o poema “Segue
Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.
A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nos queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-proprios.
Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.
Ricardo Reis, in “Odes”
Amo o que Vejo
Amo o que vejo porque deixarei
Qualquer dia de o ver.
Amo-o também porque é.
No plácido intervalo em que me sinto,
Do amar, mais que ser,
Amo o haver tudo e a mim.
Melhor me não dariam, se voltassem,
Os primitivos deuses,
Que também, nada sabem.
Ricardo Reis, in “Odes”
Estás Só
Estás só. Ninguém o sabe. Cala e finge.
Mas finge sem fingimento.
Nada ‘speres que em ti já não exista,
Cada um consigo é triste.
Tens sol se há sol, ramos se ramos buscas,
Sorte se a sorte é dada.
Ricardo Reis, in “Odes”
Colhe o Dia, porque És Ele
Uns, com os olhos postos no passado,
Veem o que não veem: outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, veem
O que não pode ver-se.
Por que tão longe ir pôr o que está perto —
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.
Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.
Ricardo Reis, in “Odes”
Tenho Mais Almas que Uma
Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.
Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.
Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu ‘screvo.
Ricardo Reis, in “Odes
Abaixo, o poema “Segue
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segunda-feira, 10 de outubro de 2016
PREFÁCIO - Não encontro dificuldade em definir-me...
PREFÁCIO - Não encontro dificuldade em definir-me...
PREFÁCIO (aproveitar para Shakespeare )
Não encontro dificuldade em definir-me: sou um temperamento feminino com uma inteligência masculina. A minha sensibilidade e os movimentos que dela procedem, e é nisso que consistem o temperamento e a sua expressão, são de mulher. As minhas faculdades de relação — a inteligência, e a vontade, que é a inteligência do impulso — são de homem.
Quanto à sensibilidade, quando digo que sempre gostei de ser amado, e nunca de amar, tenho dito tudo. Magoava-me sempre o ser obrigado, por um dever de vulgar reciprocidade — uma lealdade do espírito — a corresponder. Agradava-me a passividade. De actividade, só me aprazia o bastante para estimular, para não deixar esquecer-me, a actividade em amar daquele que me amava.
Reconheço sem ilusão a natureza do fenómeno. É uma inversão sexual fruste. Pára no espírito. Sempre, porém, nos momentos de meditação sobre mim, me inquietou, não tive nunca a certeza, nem a tenho ainda, de que essa disposição do temperamento não pudesse um dia descer-me ao corpo. Não digo que praticasse então a sexualidade correspondente a esse impulso; mas bastava o desejo para me humilhar. Somos vários desta espécie, pela história abaixo — pela história artística sobretudo. Shakespeare e Rousseau são dos exemplos, ou exemplares, mais ilustres. E o meu receio da descida ao corpo dessa inversão do espírito — radica-mo a contemplação de como nesses dois desceu—completamente no primeiro, e em pederastia; incertamente no segundo, num vago masoquismo.
s.d.
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.
- 27.
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Textos de auto-análise
UM CASO DE MEDIUNIDADE
(Contribuição para o estudo da actividade subconsciente do espírito)
1. Como se induziu a mediunidade.
a) Base histérica ou histero-neurasténica (averiguar e analisar os característicos psíquicos dessas nevroses, determinar em que se relacionam com os fenómenos típicos da chamada «mediunidade» — em parte aqui, em parte em outra secção deste estudo).
b) Auto-sugestão progressiva pelo estabelecimento de uma (pelo menos relativa, mas eficazmente activa) crença na realidade espírita destes fenómenos pela leitura de obras de ocultismo e de teosofia.
c ) Elementos de sugestão, colhidos em conversa, prolongamento dos anteriores, e somando-se com
d) Elementos de sugestão hipnótica ou simili-hipnótica (a mediunidade começou a seguir a uma leve hipnose). e) O estado de depressão produzido por: 1) desgostos e perturbações várias, 2) a própria perturbação mental causada pelo aparecimento dos fenómenos mediúnicos, tanto por esse aparecimento, como pelo conteúdo das chamadas «comunicações», e 3) o conflito entre tudo isto e o basilar e normal espírito de lucidez, lógica e necessidade de precisão científicas, cepticismo filosófico e tendência para a análise raciocinada.
f) Os estímulos mentais — curiosidade quanto ao futuro, ânsia de conhecer, etc. — normalmente humanos, primeiramente suscitados por estudos astrológicos, e depois agravados pela própria presença dos factos antecedentemente descritos.
2. Progresso da mediunidade. (Marcha da doença?)
a) Declaração amorfa da escrita automática, imperfeita e desconexa (a seguir, como se disse, a uma leve hipnose, e relacionada com ela por o primeiro nome escrito, etc.).
b) Aparecimento de fenómenos de ligeira visão com aumento de fixação retiniana de imagens e uma presumida capacidade de ver a chamada «aura etérica».
c ) Aparecimento da escrita automática desenvolvidamente e depois com uma pretensa comunicação de diversos espíritos, sem resposta a perguntas, etc. (seguiu-se a escrever uma extensa carta sobre o assunto, q.n.)
d) Aparecimento (a seguir a assistência aos fenómenos interpretativos da cartomancia) de uma mímica mediúnica, sobretudo relevada na segunda sessão de cartomancia a que assistiu.
3. Concomitantes psíquicas da mediunidade.
a) Desaparecimento (salvo raras intermitências) da acção contínua e lúcida das faculdades superiores do espírito — aumento da dispersão mental, fraqueza de vontade (e de inibição sobretudo) agravada, gradual substituição das faculdades do sonho às de relação com a realidade concreta (mundo exterior} e abstracta (lógica e espírito científico).
b) Desvio inferiorizante das faculdades de imaginação, tendendo a imagem visual para substituir a ideia abstracta (como na semi-sonolência e nos cérebros inferiores — FF).
c) Enfraquecimento da sensibilidade sã e da sociabilidade, com um concomitante aumento da sensibilidade estéril e introspectiva, uma incapacidade crescente para medir a importância dos factos, um apagamento da afectividade, um acréscimo do egoísmo e da indiferença.
d) Aumento dos desvios ideativos e sentimentais característicos do temperamento, e suscitamento de outros (porventura latentes, mas, em todo o caso, normalmente de fraquíssima substância); acréscimo da irritabilidade e da excitação nervosa.
e) Debilitação física e perturbações funcionais do organismo físico.
4. Análise das chamadas «comunicações» mediúnicas.
a) Os romances do subconsciente: as comunicações não passam em geral de um produto inferior e estéril de 1) a actividade imaginadora e baixa do subconsciente funcionando, como quando durante o sono, liberto do controlo do consciente, 2) a actividade do subconsciente no que resíduo de elementos do consciente, trabalhando como que em imitação deste, 3) a actividade memoriada do subconsciente, reproduzindo elementos gravados que o consciente não atinge.
b) Ausência de elementos estranhos ao conhecimento do indivíduo. Onde parece havê-los 1) verifica-se que há erro, sendo puramente romance os «factos» apresentados (caso de Margaret Mansel); 2) verifica-se que são factos gravados na memória subconsciente, que o consciente esqueceu que lera ou presenciara; 3) verifica-se que representam previsões tiradas por uma espécie de raciocínio mais rápido e mais hábil que o consciente; 4) verifica-se que........(cabe aqui analisar os factos de previsões que se realizam. Muitas vezes estes casos não são tantos que se não possam explicar por mera coincidência, sendo imensamente maior o número dos que não se realizam; outras vezes, quando a precisão seja tal que um facto baste para ser estranho, verifica-se que há fraude; outras vezes ainda, e estas são as que restam, dando de barato que haja legitimidade nos factos, cumpre averiguar que modalidade especial tem o subconsciente como subconsciente 8 para atingir ccrtos detalhes distantes e certos detalhes futuros, observando-se sempre que esses fenómenos — serem verdadeiros — são em geral, senão sempre, dados em pessoas não só doentes — o que pouco importaria, pois teríamos que averiguar o que é a doença — mas absolutamente inferiores, mental e moralmente.
c) Ausência de ideação superior é a do medium. A expressão estilística e filosófica é a do medium, e quando não o seja, basta procurar entre os presentes ou os sugestionadores quem possa haver induzido essa ideação por sugestão. Não há caso de ideação superior em medium desacompanhado de indivíduos superiores. (Notar, em todo o caso, que a circunstância de o delírio ser frequentemente acima do nível mental do indivíduo, é característico da grande histeria — V. Richer «L’hystéro-épilepsie»).
e) As contradições e contrariedades das comunicações resultam 1) das contradições no carácter do médium, 2) da crítica do consciente ao subconsciente ao emitir esses «comunicados», 3) das sugestões múltiplas recebidas.
f ) Em momentos especiais de cansaço há elementos emanados de sugestões alheias (alcance destas sugestões).
g) Lógica da profecia — 1) ou se profetiza segundo o que se quer ou se julga bom, ou 2) segundo o que — bom ou mau — se afigura provável (como por critério astrológico), ou 3) por uma reacção do subconsciente, resultante da dúvida do consciente, se profetiza em desarmonia, por vezes subtil, com o que se disse e de que se duvidou.
h) Os elementos aparentemente inexplicáveis — 1) e.g. — a construção de horóscopos, 2) n° 406, (...)
i) A intromissão do consciente no subconsciente (o mediunismo em flagrante delito): 1) a falseação dos relatos, 2) o cálculo intrometido entre resposta e resposta nas comunicações, 3) a acção do consciente no sentido de colaborar com o inconsciente (solução das iniciais, etc.).
5. Conclusões.
a) A mediunidade resulta de um desequilíbrio mental, análogo ao produzido pelo alcoolismo, sendo muitas vezes o estado podrómico da loucura declarada. (Casos)
b) O subconsciente tem faculdades de ordem diferente do consciente, mais afinadas em certos pontos, mas absolutamente inferiores, e que, quando aplicadas nestes casos, se desviam do seu fim original, que é a conservação do organismo.
c) Nada, até hoje, prova a presença de espíritos comunicantes, sendo para isso se provar preciso demonstrar primeiro que nas faculdades, ainda mal estudadas, do subconsciente, não cabe elaborar todos os fenómenos a que se chama de mediunidade.
d) A mediunidade é um estado mórbido participante daqueles que produzem de um lado a loucura, do outro o crime. O crime, a loucura o suicídio são os aboutissements inevitáveis da autointoxicação mediúnica. Quando se não chegue a tanto, chega-se à loucura moral, à perversão sexual, e à incapacidade para a vida social pela absoluta desagregação dos instintos sociais, sem uma correspondente compensação social, como no génio e no talento, onde a amoralidade é frequente, mas onde o serem génio e talento compensam a falha.
e) Análogos ao do espiritismo contemporâneo temos no passado as epidemias dançantes da idade média e os outros fenómenos estudados por Richer nos apêndices do seu livro sobre a Grande Histeria.
f) O espiritismo tende, sem compensação alguma, a atacar o espírito científico: nem a arte, nem a moral, nem a própria religião ganham com isso. A arte não se faz pelo subconsciente em liberdade, mas pelo subconsciente dominado. A moral não se faz com a perda da inibição e a anulação da vontade, que são as primeiras necessidades da moral. A religião não pode assentar no desenvolvimento do egoísmo, nem na quebra dos laços sociais.
g) O espiritismo devia ser proibido por lei, pela mesma razão que as publicações obscenas e os espectáculos tendentes a suscitar nos cérebros fracos o vício e o crime. (?).
h) Para bem da civilização grega que é a nossa, embora disfarçada, devemos renunciar a esses elementos índios, persas, e de outras raças de civilização inferior que pelo cultivo constante das faculdades inferiores, tendem a destruir, no indivíduo, a supremacia da razão, na espécie o instinto gregário, na civilização actual a sua base de ciência e arte que herdámos da nossa mãe comum, a Grécia.
i) Quando muito, os fenómenos do ocultismo e do espiritismo deviam ser, como na antiguidade, pertença de uma seita restrita, e não lançados pela sociedade dentro, como se fossem para toda a gente.
j) A força criadora do Universo deu-nos, através dos sentidos (talvez limitados) que nos concedeu, a realidade exterior como tipo de Realidade, e o nosso espírito apenas como perceptor dessa Realidade. Sair daqui é violar as leis fundamentais da Natureza e de Deus. O que Deus fez oculto (se Deus fez alguma cousa oculta) é para se conservar oculto. Se não, ele tê-lo-ia feito claro.
k) O actual movimento ocultista resulta a) da desagregação do cristianismo, que luta, a todo o transe, para se conservar sob todas as formas que lhe apareçam, b) da nossa civilização internacional que tornou possível aos elementos emanantes de civilizações como as da Índia e da China de chegarem até nós, c) da incapacidade de uma geração neurastenizada pela rapidez excessiva do progresso moderno, industrial, cultural e científico, em se adaptar de pronto ao tipo de mentalidade que é necessário que corresponda às ideias-fontes desse progresso.
Græcia Mater, dirige-nos !
s.d.
Fernando Pessoa et le Drame Symboliste: Héritage et création. Maria Teresa Rita Lopes. Paris: F. C. Gulbenkian, 1977.
- 505.
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domingo, 9 de outubro de 2016
"A assustadora estirpe dos homens práticos e dos técnicos instalou-se, um pouco por toda a parte, nos mais secretos lugares do coração das nossas sociedades, vampirizando a sua identidade e as suas forças e sujando o seu sangue mais profundo. Os poetas foram expulsos da cidade e resistem – os que resistem e ainda não se converteram também ao espectáculo industrial em que a arte e a cultura se transformaram – em obscuras catacumbas interiores, celebrando clandestinamente aos deuses caídos da esperança e da gratuitidade.
Que futuro pode ter uma sociedade sem esperança e sem poesia? (...) Vejo a sanha com que os nossos líderes políticos e os «pivots» dos telejornais espezinham furiosamente os restos da tragédia em que descambou a utopia comunista e pergunto-me se, neles, nesses terríveis destroços, eles odeiam os crimes do socialismo real (o maior dos quais terá sido, provavelmente, o da traição à utopia igualitária) ou se não é, antes, a própria ideia de utopia e de esperança que, incapazes de compreender, eles sobretudo odeiam e perseguem. (...) E que nos oferecem eles em troca? Comércio. Como se os homens pudessem viver, viver e não tão-só sobreviver, de comércio, e como se as sociedades pudessem, desde sempre, prescindir dos grandes sonhos irrealizáveis e dos grandes mitos de que os poetas, e os artistas, e os filósofos, são a alma e o corpo. Como disse o poeta, eles não sabem (nem sonham) que é o sonho, e não as cotações da bolsa, que comanda a vida, e que pelo sonho é que vamos. (...)"
Manuel António Pina
JN_07/10/1992
«Tantos anos, amor
e não nos conhecemos.»
Carlos Nejar. A Idade da Eternidade. Poesia Reunida. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001., p. 277
e não nos conhecemos.»
Carlos Nejar. A Idade da Eternidade. Poesia Reunida. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001., p. 277
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«O teu amor pode explodir.
Desfazer-se ao contacto da brisa.»
Carlos Nejar. A Idade da Eternidade. Poesia Reunida. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001., p. 276
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(...)
O que pode o amor,
com os dons aprisionados?
Escrever
a ferocidade das coisas.»
Carlos Nejar. A Idade da Eternidade. Poesia Reunida. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001., p. 275
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«E a memória: teu candelabro de sonos.»
Carlos Nejar. A Idade da Eternidade. Poesia Reunida. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001., p. 268
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''as águas dos ossos''
Carlos Nejar. A Idade da Eternidade. Poesia Reunida. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001., p. 268
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«A morte não conseguia matá-la.»
Carlos Nejar. A Idade da Eternidade. Poesia Reunida. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001., p. 268
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«Certas partes do ar não cessam nunca de envelhecer. E o mundo é o envelhecimento dos ossos.»
Carlos Nejar. A Idade da Eternidade. Poesia Reunida. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001., p. 267
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verso solto
«És tão indefeso diante de tão eficaz claridade.»
Carlos Nejar. A Idade da Eternidade. Poesia Reunida. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001., p. 265
«Ver demasiado desequilibrava os olhos.»
Carlos Nejar. A Idade da Eternidade. Poesia Reunida. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001., p. 263
OBRA POÉTICA DE MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO, Europa América, 1996
«Beijar!» linda palavra!…
Um verbo regular
Que é muito irregular
Nos tempos e nos modos…
Conheço tanto beijo e tão dif’rentes todos!…
Um beijo pode ser amor ou amizade
Ou mera cortesia,
E muita vez até, dizê-lo é crueldade
É só hipocrisia.
O doce beijo de mãe
É o mais nobre dos beijos,
Não é beijo de desejos,
Valor maior ele tem:
É o beijo cuja fragrância
Nos faz secar na infância
Muita lágrima… feliz;
Na vida esse beijo puro
É o refúgio seguro
Onde é feliz o infeliz.
Entre as damas o beijo é praxe estab’lecida,
Cumprimento banal – ridículos da vida!
–:(Imitando o encontro de 2 senhoras na rua)
– Como passou, está bem? (Um beijo.) O seu marido?
(Mais beijos.) – De saúde. E o seu, Dona Mafalda?
– Agora menos mal. Faz um calor que escalda,
Não acha? – Ai Jesus! que tempo aborrecido!…
Beijos dados assim, já um poeta o disse,
Beijos perdidos são.
(Perder beijos! que tolice!
Porque é que a mim os não dão?)
O osculum pacis dos cardeais
É outro beijo de civ’lidade;
Beijos paternos ou fraternais
São castos beijos, só amizade.
As flores também se beijam
Em beijos incandescidos,
Muito embora se não vejam
Os ternos beijos das flores.
Há outros beijos perdidos:
Aqui mesmo,
Há aqueles que os atores
Dão a esmo,
Dão a esmo e a granel…
Porque lhes marca o papel.
– Mas o beijo d’amor?
Sossegue o espectador,
Não fica no tinteiro;
Guardei-o para o fim por ser o «verdadeiro».
Com ele agora arremeto
E como é o principal,
Vai apanhar um soneto
Magistral:
Um beijo d’amor é delicioso instante
Que vale muito mais do que um milhão de vidas,
É bálsamo que sara as mais cruéis feridas,
É turbilhão de fogo, é espasmo delirante!
Não é um beijo puro. É beijo estonteante,
Pecado que abre o céu às almas doloridas.
Ah! Como é bom pecar co’as bocas confundidas
Num desejo brutal da carne palpitante!
Os lábios sensuais duma mulher amada
Dão vida e dão calor. É vida desgraçada
A do feliz que nunca um beijo neles deu;
É vida venturosa a vida de tortura
Daquele que co’a boca unida à boca impura
Da sua amante qu’rida, amou, penou, morreu.
(Pausa – Mudando de tom)
Desejava terminar
A beijar a minha amada,
Mas como não tenho amada,
(A uma espectadora)
Vossência é que vai pagar…
Não se zangue. A sua face
Consinta que eu vá beijar…
……………………. (atira-lhe um beijo)
Um beijo pede-se e dá-se,
Não vale a pena corar…
Um verbo regular
Que é muito irregular
Nos tempos e nos modos…
Conheço tanto beijo e tão dif’rentes todos!…
Um beijo pode ser amor ou amizade
Ou mera cortesia,
E muita vez até, dizê-lo é crueldade
É só hipocrisia.
O doce beijo de mãe
É o mais nobre dos beijos,
Não é beijo de desejos,
Valor maior ele tem:
É o beijo cuja fragrância
Nos faz secar na infância
Muita lágrima… feliz;
Na vida esse beijo puro
É o refúgio seguro
Onde é feliz o infeliz.
Entre as damas o beijo é praxe estab’lecida,
Cumprimento banal – ridículos da vida!
–:(Imitando o encontro de 2 senhoras na rua)
– Como passou, está bem? (Um beijo.) O seu marido?
(Mais beijos.) – De saúde. E o seu, Dona Mafalda?
– Agora menos mal. Faz um calor que escalda,
Não acha? – Ai Jesus! que tempo aborrecido!…
Beijos dados assim, já um poeta o disse,
Beijos perdidos são.
(Perder beijos! que tolice!
Porque é que a mim os não dão?)
O osculum pacis dos cardeais
É outro beijo de civ’lidade;
Beijos paternos ou fraternais
São castos beijos, só amizade.
As flores também se beijam
Em beijos incandescidos,
Muito embora se não vejam
Os ternos beijos das flores.
Há outros beijos perdidos:
Aqui mesmo,
Há aqueles que os atores
Dão a esmo,
Dão a esmo e a granel…
Porque lhes marca o papel.
– Mas o beijo d’amor?
Sossegue o espectador,
Não fica no tinteiro;
Guardei-o para o fim por ser o «verdadeiro».
Com ele agora arremeto
E como é o principal,
Vai apanhar um soneto
Magistral:
Um beijo d’amor é delicioso instante
Que vale muito mais do que um milhão de vidas,
É bálsamo que sara as mais cruéis feridas,
É turbilhão de fogo, é espasmo delirante!
Não é um beijo puro. É beijo estonteante,
Pecado que abre o céu às almas doloridas.
Ah! Como é bom pecar co’as bocas confundidas
Num desejo brutal da carne palpitante!
Os lábios sensuais duma mulher amada
Dão vida e dão calor. É vida desgraçada
A do feliz que nunca um beijo neles deu;
É vida venturosa a vida de tortura
Daquele que co’a boca unida à boca impura
Da sua amante qu’rida, amou, penou, morreu.
(Pausa – Mudando de tom)
Desejava terminar
A beijar a minha amada,
Mas como não tenho amada,
(A uma espectadora)
Vossência é que vai pagar…
Não se zangue. A sua face
Consinta que eu vá beijar…
……………………. (atira-lhe um beijo)
Um beijo pede-se e dá-se,
Não vale a pena corar…
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Mário de Sá-Carneiro
«A morte não pára de ir morrendo. Até a infância desmorrer.»
Carlos Nejar. A Idade da Eternidade. Poesia Reunida. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001., p. 261
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«(...) não podes banhar-te duas vezes na mesma infância.»
Carlos Nejar. A Idade da Eternidade. Poesia Reunida. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001., p. 260
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«Mais que sabedoria, é ir caindo ileso.»
Carlos Nejar. A Idade da Eternidade. Poesia Reunida. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001., p. 259
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''bando de estorninhos flamejantes''
Carlos Nejar. A Idade da Eternidade. Poesia Reunida. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001., p. 258
«O tempo esvaece mais depressa no centro, que nas bordas.»
Carlos Nejar. A Idade da Eternidade. Poesia Reunida. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001., p. 257
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MINHA CASINHA (O Costa do Castelo, 1943)
Que saudades eu já tinha
da minha alegre casinha
tão modesta como eu.
Como é bom, meu Deus, morar
assim num primeiro andar
a contar vindo do céu.
O meu quarto lembra um ninho
e o seu tecto é tão baixinho
que eu, ao ir para me deitar,
abro a porta em tom discreto,
digo sempre: "Senhor tecto,
por favor deixe-me entrar."
da minha alegre casinha
tão modesta como eu.
Como é bom, meu Deus, morar
assim num primeiro andar
a contar vindo do céu.
O meu quarto lembra um ninho
e o seu tecto é tão baixinho
que eu, ao ir para me deitar,
abro a porta em tom discreto,
digo sempre: "Senhor tecto,
por favor deixe-me entrar."
''Invulnerável é a infância''
Carlos Nejar. A Idade da Eternidade. Poesia Reunida. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001., p. 257
«A morte nada mais pode senão morrer.»
Carlos Nejar. A Idade da Eternidade. Poesia Reunida. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001., p. 255
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«A ignorância é o saber das árvores.»
Carlos Nejar. A Idade da Eternidade. Poesia Reunida. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001., p. 256
ATRAVÉS DE UM PAÍS
«Viajou para aquém da infância. Como através de um país.
Com o coração carregado de mortos. (...) »
Carlos Nejar. A Idade da Eternidade. Poesia Reunida. Escritores dos Países de Língua Portuguesa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001., p. 255
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segunda-feira, 3 de outubro de 2016
Sucede que tenho precisamente aquelas qualidades...
Sucede que tenho precisamente aquelas qualidades que são negativas para fins de influir, de qualquer modo que seja, na generalidade de um ambiente social. Sou, em primeiro lugar, um raciocinador, e, o que é pior, um raciocinador minucioso e analítico. Ora o público não é capaz de seguir um raciocínio, e o público não é capaz de prestar atenção a uma análise. Sou, em segundo lugar, um analisador que busca, quanto em si cabe, descobrir a verdade. Ora o público não quer a verdade, mas a mentira que mais lhe agrade. Acresce que a verdade — em tudo, e mormente em coisas sociais — é sempre complexa. Ora o público não compreende ideias complexas. É preciso dar-lhe só ideias simples, generalidades vagas, isto é, mentiras, ainda que partindo de verdades; pois dar como simples o que é complexo, dar sem distinção o que cumpre distinguir, ser geral onde importa particularizar, para definir, e ser vago em matéria onde o que vale é a precisão — tudo isto importa em mentir.
Sou, em terceiro lugar, e por isso mesmo que busco a verdade, tão imparcial quanto em mim cabe ser. Ora o público, movido intimamente por sentimentos e não por ideias, é organicamente parcial. Não só portanto lhe desagrada ou não interessa, por estranho à sua índole, o mesmo tom da imparcialidade, mas ainda mais o agrava o que de concessões, de restrições, de distinções é preciso usar para ser imparcial. Entre nós, por exemplo, e em a maioria dos povos do sul de Europa, ou se é católico, ou se é anti-católico, ou se é indiferente ao catolicismo, porque a tudo. Se eu, portanto, fizesse um estudo sobre o catolicismo, onde forçosamente teria que dizer mal e bem, que apontar vantagens misturadas com desvantagens, que indicar defeitos aliviados por virtudes, que me sucederia? Não me escutariam os católicos, que não aceitariam o que eu dissesse de mal do catolicismo. Não me escutariam os anti-católicos, que não aceitariam o que eu lhes dissesse de bem. Não me escutariam os indiferentes, para quem todo o assunto não passaria de uma maçadoria ilegível. Assim resultaria inútil esse meu estudo, por cuidado e escrupuloso que fosse — direi, até, tanto mais inútil, porque tanto menos aceitável ao público, quanto mais fosse cuidado e escrupuloso. Seria, quando muito, apreciado por um ou outro indivíduo de índole semelhante à minha, raciocinador sem tradições nem ideais, analisador sem preconceitos, liberal porque liberto e não porque servo da ideia inaplicada da liberdade. A esse, porém, que teria eu que ensinar? Quando muito, certas coisas particulares sobre o catolicismo, na hipótese que me serviu de exemplo, e no caso de lhe ser a ele estranho o assunto. E se a ele, perscrutador cultural como eu, o assunto é estranho, é que nunca o interessou; se nunca o interessou, para que vai ler o que escrevi sobre ele?
De aqui parece dever concluir-se que um estudo raciocinado, imparcial, cientificamente conduzido, de qualquer assunto é um trabalho socialmente inútil. Assim de facto é. É, quando muito, uma obra de arte, e mais nada. Vox et preterea nihil.
As sociedades são conduzidas por agitadores de sentimentos, não por agitadores de ideias. Nenhum filósofo fez caminho senão porque serviu, em todo ou em parte, uma religião, uma política ou outro qualquer modo social do sentimento.
Se a obra de investigação, em matéria social, é portanto socialmente inútil, salvo como arte e no que contiver de arte, mais vale empregar o que em nós haja de esforço em fazer arte, do que em fazer meia-arte.
Reconhecendo que todas as doutrinas são defensáveis, e que valem, não por o que valem, senão pela valia do defensor, concentrar-nos-emos mais na literatura das defensivas do que no assunto delas. Faremos contos intelectuais onde, pelo primeiro e imprudente impulso, faríamos estudos científicos. Ser-nos-á indiferente a verdade da ideia: em si mesma; não é mais que a matéria para um belo argumento, para as elegâncias e as astúcias da subtileza.
Timbraremos, por um movimento idêntico em sentido inverso, em mostrar a parvoíce das ideias aceites, a vileza dos ideais nobres, a ilusão de tudo quanto o povo crê ou pode crer. Salvaremos assim o princípio aristocrático, que na ordem social se afundou, deixando atrás de si o vácuo de uma universal, monótona escravidão.
Seremos dissolventes? Como dissolventes, se não temos acção sobre o público, se nos não lêem senão os que lêem arte pela arte, arte intelectual, arte feita com ideias em vez de ritmos, e esses, pequeníssimo número humano, ou estão já dissolvidos, ou são fortes, pela. inteligência e a cultura, contra toda a dissolução?
Dissolvente, socialmente, é a doutrina social do que não está. Foi dissolvente e anti-social, no sentido de prejudicar a ordem e a harmonia dos povos, o cristianismo quando o paganismo era a civilização. Foi dissolvente e anti-social a Reforma, quando a civilização de Europa era católica. Foi dissolvente e anti-social a doutrina da Revolução Francesa, quando a civilização da Europa era o Antigo Regime. São hoje dissolventes todas as doutrinas sociais que reagem contra as dessa mesma Revolução. Quem hoje prega a sindicação, o estado corporativo, a tirania social, seja fascismo ou comunismo, está dissolvendo a civilização europeia; quem defende a democracia e o liberalismo a está defendendo.
Quer isto dizer que não há doutrinas dissolventes senão por sua situação ocasional? Quer dizer isso mesmo. A mais «radical» das doutrinas, desde que seja universalmente aceite, é uma doutrina conservadora; a mais «conservadora», se nessa altura se opuser àquela, será radical.
Quer isto dizer que não há princípios fundamentais na vida das sociedades? Não quer dizer isso; quer porém dizer que, se os há, nós os não conhecemos. Não há ciência social, não sabemos como nascem, como se conservam ou não conservam, como crescem ou decrescem, como se estiolam ou morrem, as sociedades. A existência da humanidade, se por ela se entende qualquer coisa mais que a espécie animal chamada homem, é tão hipotética e racionalmente indemonstrável como a existência de Deus. Se, porém, por humanidade, se entende a espécie animal chamada homem, então existe para os biologistas, para os médicos — para todos quantos estudam, de um modo ou de outro, o corpo humano; existe como existem os peixes e as aves, e mais nada.
Que princípio social se pode erigir em fundamental? Todos e nenhum, conforme a habilidade do argumentador. Há períodos de ordem que o são de estagnação, como a longa vida morta de Bizâncio. Há-os que são «de actividade intelectual, como os da Antiga Monarquia francesa. Há períodos de desordem que são a ruína intelectual dos países em que se dão, como o Império Romano em declínio, ou a época da Revolução Francesa, propriamente dita. Há períodos de desordem fecundos em produção intelectual, como o da Renascença nas repúblicas italianas, como o que abrange o tempo de Isabel e de Cromwell em Inglaterra.
Refiro-me à produção intelectual, supondo-a uma vantagem, e, ao menos, parte da civilização. Não insisto nisso, porém, e posso aceitar a doutrina de que a cultura e a arte são um mal, de que é paz e não sonetos o que mais importa à humanidade. Mas quais são as circunstâncias que produzem a paz, quais as que a não produzem? Encontraremos as mesmas causas dando diferentes efeitos, ou, melhor, encontraremos as mesmas circunstâncias com diferentes resultados — o que quer dizer que não são causas, mas coincidências, que qualquer coisa que se considera uma vantagem social, seja uma sinfonia ou o jantar certo, pode aparecer em circunstâncias sociais diferentes, sem que saibamos nunca de onde veio a sinfonia, porque é que se conseguiu que o jantar não faltasse.
Acresce que, assim como não há ciência social, assim também não há arte social, finalidade certa da existência das sociedades. Aqui o problema, que era semelhante ao da metafísica, torna-se metafísica mesmo. Para que fim existem as sociedades? Para fazer a felicidade dos que as compõem? Não o sabemos, e o certo é que a felicidade varia de tipo de homem para homem, e há muitos que de bom grado perderiam a mulher, desde que não percam a colecção de selos. (...)
s.d.
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.
- 74.
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Por mim, o meu egoísmo é a superfície da minha dedicação.
Por mim, o meu egoísmo é a superfície da minha dedicação. O meu espírito vive constantemente no estudo e no cuidado da Verdade, e no escrúpulo de deixar quando eu despir a veste que me liga a este mundo, uma obra que sirva o progresso e o bem da Humanidade.
Reconheço que o sentido intelectual que esse Serviço da Humanidade toma em mim, em virtude do meu temperamento, me afasta, muitas vezes, das pequenas manifestações que em geral revelam o espírito humanitário. Os actos de caridade, a dedicação por assim dizer quotidiana são coisas que raras vezes aparecem em mim, embora nada haja em mim que represente a negação delas.
Em todo o caso, reconheço, em justiça para comigo próprio, que não sou mais egoísta que a maioria dos indivíduos, e muito menos o sou que a maioria dos meus colegas nas artes e nas letras. Pareço egoísta àqueles que, por um egoísmo absorvente, exigem a dedicação dos outros como um tributo.
1-1917?
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.
- 68.
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