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quinta-feira, 2 de novembro de 2023
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021
ESPLANADA
Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,
agora lês saramagos & coisas assim
e eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.
O café agora é um banco, tu professora de liceu;
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos por andar como dantes.
Manuel António Pina
Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,
agora lês saramagos & coisas assim
e eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.
O café agora é um banco, tu professora de liceu;
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos por andar como dantes.
Etiquetas:
Manuel António Pina,
poema,
poesia
quarta-feira, 24 de outubro de 2018
domingo, 9 de outubro de 2016
"A assustadora estirpe dos homens práticos e dos técnicos instalou-se, um pouco por toda a parte, nos mais secretos lugares do coração das nossas sociedades, vampirizando a sua identidade e as suas forças e sujando o seu sangue mais profundo. Os poetas foram expulsos da cidade e resistem – os que resistem e ainda não se converteram também ao espectáculo industrial em que a arte e a cultura se transformaram – em obscuras catacumbas interiores, celebrando clandestinamente aos deuses caídos da esperança e da gratuitidade.
Que futuro pode ter uma sociedade sem esperança e sem poesia? (...) Vejo a sanha com que os nossos líderes políticos e os «pivots» dos telejornais espezinham furiosamente os restos da tragédia em que descambou a utopia comunista e pergunto-me se, neles, nesses terríveis destroços, eles odeiam os crimes do socialismo real (o maior dos quais terá sido, provavelmente, o da traição à utopia igualitária) ou se não é, antes, a própria ideia de utopia e de esperança que, incapazes de compreender, eles sobretudo odeiam e perseguem. (...) E que nos oferecem eles em troca? Comércio. Como se os homens pudessem viver, viver e não tão-só sobreviver, de comércio, e como se as sociedades pudessem, desde sempre, prescindir dos grandes sonhos irrealizáveis e dos grandes mitos de que os poetas, e os artistas, e os filósofos, são a alma e o corpo. Como disse o poeta, eles não sabem (nem sonham) que é o sonho, e não as cotações da bolsa, que comanda a vida, e que pelo sonho é que vamos. (...)"
Manuel António Pina
JN_07/10/1992
domingo, 25 de setembro de 2016
Manuel António Pina escreveu este texto no Jornal de Notícias, em 9 de novembro de 2005
Os meus gatos dormem durante a maior parte do dia (e, obviamente, durante a noite toda). Suspeito que os gatos têm um segredo, que conhecem uma porta para um mundo coincidente e feliz, por onde só se passa sonhando. Um mundo criado como Deus terá criado o nosso humano mundo, à sua desmesurada imagem. Porque os que sonham são deuses criadores. Os gatos sonham dormindo, os homens sonham fazendo perguntas e procurando respostas.
Mas os meus gatos dormem e sonham porque não têm fome. Teriam, se precisassem de procurar comida, tempo para sonhar? Acontece talvez assim com os homens. Como se o espírito criador fosse, afinal, prisioneiro do estômago. Talvez, então, a mesquinhez de propósitos da nossa vida colectiva radique, como nos querem fazer crer, no défice, e talvez o cumprimento das normas do pacto de estabilidade seja o único sonho que nos é hoje permitido.
E, contudo, dir-se-ia (e isto é algo que escapa aos economistas) que é o sonho, mais do que a balança de pagamentos, que alimenta a vida, e que os povos, como os homens, precisam de mais do que de números. Os próprios números têm (os economistas não o sabem porque a sua ciência dos números é uma ciência de escravos) o poder desrazoável de, não apenas repetir, mas sonhar o mundo.
Há anos que somos governados por economistas e o resultado está à vista. Talvez seja chegada a altura de ser a política (e o sonho) a dirigir a economia e não a economia a dirigir a política. Jesus Cristo «não sabia nada de finanças, / nem consta que tivesse biblioteca», e o seu sonho, no entanto, continua a mover o mundo.
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