sexta-feira, 11 de março de 2016

Layla Alexander-Garrett: “Tarkovsky acreditava que o amor deve ser um acto, uma acção”

Layla Alexander-Garrett colaborou com Andrei Tarkovsky em alguns momentos da sua carreira, especialmente na rodagem de Offret (O Sacrifício, 1986), na qual foi sua intérprete e assistente pessoal (função para a qual Tarkovsky insistiu durante muito tempo que tinha de ser exercida por um homem…). Licenciada em Estudos Fílmicos pela Universidade de Estocolmo e há muitos anos sediada em Londres, é autora de Andrei Tarkovsky: The Collector of Dreams e do livro-álbum fotográfico Andrei Tarkovsky: A Photographic Chronicle of the Making of The Sacrifice, organizando também frequentemente ciclos e outras iniciativas relacionadas com a obra do Mestre russo. Terminou a entrevista, realizada por Skype, a dizer-me para continuar a ter paixão naquilo que faço e, um pouco à maneira de Tarkovsky, tocou-me, sem o saber, num momento particular.
Tarkovsky era uma das pessoas, uma daquelas raras pessoas, que deixava algo na alma dos outros. Ele era uma pessoa absolutamente inesquecível. A actriz principal de Zerkalo (O Espelho, 1975), Margarita Terekhova, disse que Tarkovsky criava uma espécie de “círculo mágico” e que as pessoas que entravam nesse círculo ficavam aí para sempre. Não havia muita gente a quem ele permitia que entrassem nesse círculo, mas, se entrassem, não mais saíam de lá. Tarkovsky queria trabalhar [na rodagem de Offret] com um intérprete masculino, porque a rodagem ia decorrer muito muito cedo, nas “noites brancas”, pelas 3h00 da manhã, e achava que uma mulher não ia aguentar. Ele entrevistou muitos homens para essa função e rejeitou-os porque eram intérpretes profissionais, estritamente profissionais. Ele estava à procura de uma espécie de alquimia com essa pessoa, alguém que sentisse próximo ou ligado a si. Eu não sou uma intérprete profissional. Já nos conhecíamos de Moscovo e estivemos juntos em Itália, quando ele rodava o Nostalghia (Nostalgia, 1983). Eu não trabalhava na indústria, Tarkovsky é que me telefonou quando veio para a Suécia e perguntou-me se eu estava livre. Eu estava naquele momento a preparar-me para um exame de condução e estava muito nervosa, mas disse que claro que me encontraria com ele. Nessa noite, fomos ver o documentário Dokument Fanny och Alexander (Fanny e Alexander: Diário de uma Filmagem, 1986). O produtor chamou-me para o primeiro dia, para o segundo dia, para o terceiro dia, e depois para todo o período de rodagem.
Sim, sempre, a todo o momento. E não eram só saudades da sua pátria, da sua amada Rússia, mas também da sua família. O seu segundo filho estava na Rússia, retido pelas autoridades. O filho conseguiu ir vê-lo a Paris [i.e., o regime autorizou tal visita], mas apenas quando nós lhes enviámos [às autoridades soviéticas] uma cópia dos Raios-x de uma pessoa a morrer. E isto foi já na altura da Perestroika do Gorbatchev! Portanto, ele conseguiu ver o filho no ano em que morreu. Claro que ele tinha saudades da Rússia e dos amigos, estava sempre a dizer que queria voar para visitar os amigos, beber vodka, ver o seu cão! Numa vez que telefonou para Moscovo, passou-me o telefone e disse: “Ouve, ouve, o meu cão gosta tanto de mim, ele tem saudades minhas e lembra-se de mim!”. Tudo isto lhe partia o coração.
Tarkovsky era uma pessoa muito charmosa, que encantava toda a gente, as mulheres particularmente. Toda a gente gostava dele, até porque era um homem muito bonito. Mas quando a rodagem de Offret começou, começaram também os problemas com Sven Nykvist [director de fotografia e colaborador habitual de Ingmar Bergman], porque o Andrei era, por vezes, um pouco insensível. Estava sempre a saltar para a frente da câmara, a filmar, a controlar a mise en scène, tudo. E, de repente, dizia simplesmente: “agora é para filmar!”. E o Sven dizia: “mas eu ainda nem vi o ensaio!”. Sven estava um bocado chateado, sentia como se o Tarkovsky lhe quisesse roubar a sua função. Eu traduzi isto para o Andrei e ele pediu imensas desculpas e disse que não queria incomodar ou magoar o Sven, mas que não conseguia ver o filme apenas através da câmara. Era a única forma de ele conseguir observar a composição, a mise en scène, o movimento dos actores – eu chamar-lhe-ia de “coreografia”, o modo como ele coreografava o movimento dos actores durante o plano, de uma forma nunca estática. Ele era muito exigente e as pessoas ficavam por vezes irritadas. Ele metia o nariz nos assuntos de toda a gente. Se fosse um jornalista, ele ia ter com ele e dizia-lhe: “O que estás a escrever?”. Ele era assim! As pessoas comentavam: “porquê que ele não se mete nos assuntos dele?”, mas ele queria participar em tudo, fazer parte de todo o processo. Ele não era do tipo de chegar, sentar-se na cadeira do realizador, começar e acabar. Ele era diferente.
Ele era uma pessoa muito séria, mas muito divertida [risos]. Nós rebolávamos a rir quando ele contava anedotas ou piadas. Ontem, participei num ciclo de conferências no Freud Museum [Londres], convidaram-me para debater o Offret. Muitas pessoas fizeram-me exactamente essa pergunta: “ele era uma pessoa com sentido de humor?”. Na verdade, li algures que alguém está a escrever um livro ou artigo chamado “Tarkovsky e o sentido de humor”. No Offret, há momentos com muito humor e, como você disse, no Andrey Rublyov. Também no Nostalghia, quando a anedota é contada junto à piscina… Sim, há humor. Mas claro que o seu propósito não era esse, não era entreter as pessoas com os seus filmes, mas sim fazê-las pensar e levá-las talvez a outra dimensão, mostrar-lhes que há outra dimensão. O conselho que ele deixou aos realizadores mais jovens foi para não separarem as vidas, os sentimentos, os pensamentos, dos filmes. A alma do realizador, os seus pensamentos, sentimentos, mágoas, medos, devem estar sempre no filme. Tarkovsky era muito espirituoso, gostava de entreter as mulheres. Ele costumava dizer-me: “Oh, Layla! Se uma mulher se aborrecer comigo, eu dou um tiro em mim próprio!”. Muitas vezes, durante a rodagem de Offret, eu estava cansada e aborrecia-me, mas dizia-lhe para ele não se matar! [risos]. Ele era um grande homem, engraçado, inspirador, nunca ninguém se sentia aborrecido com ele. Era também muito carinhoso com as mulheres e, se alguém da equipa não estivesse bem disposta, ele pedia-me: “Layla, vai perguntar-lhe o que se passa, se calhar aconteceu-lhe alguma coisa, ela parece que esteve a chorar…”. Preocupava-se muito com as pessoas, era como uma esponja, alguém muito sensível.
Concordo e discordo. Quando Tarkovsky estava a filmar, ele disse ao Erland Josephson [actor e colaborador habitual de Ingmar Bergman]: “Imagina que estás tão desesperado, que não há ajuda, que não há ninguém a recorrer, que compreendes que é o fim do mundo. E que o teu filho e os teus próximos deixarão de existir em breve. Tu não irás provavelmente pensar provavelmente em Deus, porque Alexander [personagem interpretada por Josephson] é mais um ateu do que um homem religioso. Tu tens que cair no chão, mas o espectador não deve perceber se é porque estás desesperado, bêbedo, doente ou outra coisa qualquer. Mas tens que cair no chão. E tens que te lembrar duma reza. E começar a dizê-la, porque essa é reza é a mais pura”. É basicamente um momento de desespero e a única esperança é Deus, não porque Alexander pense em comunicar com ele directamente, mas porque existe um medo absoluto, desesperante. Não há nenhuma Mãe para o proteger, ninguém, só Deus. Isso acontece nesse momento, ele fala com Deus. E porque ele faz a promessa, ele tem de a cumprir. No início do filme, Alexander diz: “Palavras, palavras, palavras. Agora eu compreendo o que Hamlet queria dizer”… As pessoas falam demais, os políticos, nós mesmos nas nossas relações… fazemos promessas, falamos e falamos. Mas ninguém faz nada! E é por isso que, quando Alexander faz uma promessa a Deus, não podem ser apenas palavras. Isso é algo que acontece com aquelas pessoas que vão à igreja e que, mesmo não sendo realmente crentes, repetem automaticamente o que lhes dizem para repetir. Mas Alexander tem que agir. Eu penso que Tarkovsky acreditava que o amor, em especial o amor divino, não é apenas sentar-se numa cave a meditar. Sim, pode servir para algumas pessoas, mas tem que se agir, o amor deve ser um acto, uma acção.
Não concordo totalmente. Não penso que se lhe possa chamar um gesto “materialista”. Alexander quer salvar o seu filho e a humanidade. Eu perguntava frequentemente a Tarkovsky: “Porquê que ele não se suicida? Porquê que ele destrói a sua casa e priva a família?”. Ele respondeu-me: “Tu não estás a compreender. Porque a vida não significa nada para ele. Ele podia fazer isso facilmente. Mas ele sacrifica algo que é o mais importante, sagrado, na sua vida: o seu filho e a sua casa”. Isto é, de certa forma, algo imperdoável… No início do filme, quando Alexander se apercebe de que há uma guerra, ele vai ao quarto onde o filho está e quer matá-lo, mas não o faz. Pode dizer-se que um anjo ou algo o impede de o fazer, porque ele não o faz, de facto. Mas, no final, ele tem que cumprir com a sua promessa e incendiar a sua casa e…
Não sei. Não é um “action movie”, é um “awakening movie”, é o que eu lhe chamaria. Nós pensamos que o que acontece no Iraque ou na Síria só acontece lá. Mas não pensamos que amanhã pode ser em Portugal, Inglaterra, França… Colocamos um cobertor por cima de tudo e achamos que está tudo bem. Não fazemos nada desde que aqui esteja tudo bem. Este é um filme que mostra que algo de horrível pode acontecer na nossa casa, no nosso aniversário… Por isso é que eu lhe chamo um film of rebirth, porque, no aniversário de Alexander, ele renasce espiritualmente. Até aí, ele tem a sua vida, o seu trabalho, a sua vida, é rico e está tudo bem. Mas esta situação é um renascimento para ele, numa noite apenas. Ele é encostado à parede e está para ser morto, ele e tudo à sua volta.
Será interessante ver quem irá ver assistir aos filmes do ciclo aí em Portugal. Há um mês atrás, o British Film Institute exibiu todos os filmes do Tarkovsky. As salas estavam praticamente cheias e havia muito pouca gente da minha idade. Havia muito gente nova a assistir aos filmes e a debatê-los! Tarkovsky é extraordinário, ele ressoa em toda a gente, porque é eterno, é como a música clássica: Bach, Beethoven… Toda a gente quererá sempre ouvi-los, seja numa igreja ou na soiréede uma família real. Continuamos a ouvi-los porque nos tocam, pois o que é importante para o ser humano são as coisas eternas: o amor, o medo, a traição, a dedicação, a pureza, a procura. Sabia que Tarkovsky recebeu imensas cartas de prisioneiros depois do lançamento do Zerkalo? Esses prisioneiros escreviam-lhe a dizer que o filme era sobre as suas vidas! Eu conheci um japonês na Suécia que aprendeu russo para poder ver os filmes de Tarkovsky e disse-me: “Zerkalo é um filme sobre mim!”. Um professor escocês também escreveu uma carta a Tarkovsky a dizer o mesmo.
É muito difícil responder. Tudo o que posso dizer é que ele odiava que o chamassem de “dissidente”. Ele dizia: “Eu nunca pedi asilo político, eu nunca quis ser dissidente, por isso não me coloquem por favor nessa categoria!”. Porquê que ele ficou no Ocidente? Porque ele queria fazer Hamlet e outros trabalhos e as autoridades soviéticas não o permitiam na URSS. Foi [o seu exílio], por isso, o protesto de um homem orgulhoso que valorizava o seu trabalho e o que fez pela URSS. Ele trouxe muito prestígio à URSS. Tarkovsky não aguentou mais e, por isso, partiu para poder concretizar esses projectos. Se as autoridades soviéticas lhe tivessem permitido oficialmente trabalhar no Ocidente por dois anos, isto [a morte no exílio] provavelmente não teria acontecido e ele teria voltado à Rússia que ele tanto amava. Se o socialismo tiver uma “face humana”, como se diz, então acho que ele seria feliz, até porque, como ele próprio escreveu, financeiramente, foi muito difícil trabalhar no Ocidente, muito mais do que na URSS. Por isso, é um pau de dois bicos. É muito difícil dizer se ele era pró-capitalista ou pró-socialista… Claro que, se estivermos a falar do socialismo como existe na Suécia, a questão já é muito diferente! [risos]
Não. Também se fala num realizador russo, o Andrey Zvyagintsev. Mas eu não concordo e acho que isso não é propriamente um elogio, mas um insulto. Penso que temos de ser nós mesmos. Por exemplo, encontrei um pequeno clip do The Revenant (O Renascido, 2015) no qual se analisa como o filme foi roubado do Tarkovsky, plano por plano. É fascinante! Quando as pessoas fazem isso e não creditam o trabalho de Tarkovsky, é estúpido. Mas isto não interessa! Não se é Tarkovsky por se fazer planos muito longos. Não é a duração do plano, mas a intensidade, o talento, o pensamento, a profundidade da sua voz. Ele tem algo a dizer! Tarkovsky está a destapar a sua alma em frente do espectador nos seus filmes. Tarkovsky era uma pessoa muito reservada, mas, nos seus filmes, ele removia a pele e mostrava o que era, o que pensava, em que é que acreditava. Esses realizadores de que fala usam os filmes no sentido oposto: usam-nos para tapar, não para destapar, para revelar o que são. E é preciso uma enorme coragem para nos destaparmos, para retirarmos as máscaras que cobrem os nossos lados negros e estranhos, pois é com eles que sobrevivemos. Uma vez, num festival sobre os filmes de Tarkovsky que organizei em Londres, um homem procurou-me e disse que me queria contar algo. Disse-me que tinha vindo propositadamente de Itália para me dizer que, no ano em que saiu o Nostalghia, ele se ia suicidar. Num certo dia, ele ia mesmo para casa para se suicidar, já tinha escrito uma carta de despedida. Passou por um cinema onde se lia “Nostalghia” e sentiu que o título tinha muito que ver com o que ele sentia naquele momento. Então, decidiu ir ver o filme, mas saiu a meio porque não o entendeu, e pensou que se iria suicidar de seguida. Mas pensou para si mesmo que não era estúpido, que tinha de ver o filme novamente para o entender. Viu-o novamente e depois uma terceira vez. Disse-me que chorou e chorou… rios de choro. E que, quando saiu da sala, se sentiu vivo. O homem terminou de me contar esta história, despediu-se e desapareceu. É uma história extraordinária que mostra o efeito imprevisível que a obra de Tarkovsky provoca em nós. O que há nela? Não sei o que é, é um mistério, mas ela toca nas pessoas, nas mulheres, nas crianças… é muito difícil dizer o que é. Eu espero que a obra dele viva. Einstein disse que “quando a última abelha desaparecer, a humanidade desaparecerá”… Tarkovsky dizia que “quando o último poeta desaparecer, a humanidade desaparecerá”.

sexta-feira, 4 de março de 2016

terça-feira, 1 de março de 2016



A lot of people are very, very angry

Daniela Bowker, Photographer and journalist

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016


«(...) Conheço-a,
embora esta pareça um pouco transformada:
            tem um toque novo,
talvez seja menos dolorosa
à superfície. Não lhe lavro o saibro, a crosta,
com medo de lhe encontrar o mesmo coração
               estrangulado,
o desvairo de trevas
            sem alternativa»



Egito Gonçalvesos pássaros mudam no outono. 1ª edição. Editora Limiar, 1981., p. 16

«os olhos estão secos,
fugidios: escórias dolorosas os velaram;»


Egito Gonçalvesos pássaros mudam no outono. 1ª edição. Editora Limiar, 1981., p. 15

''dói-lhe um sorriso nos lábios''


António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 34
(...)

«Pede um cigarro. Fuma.
Labaredas loucas saem-lhe da garganta.
Da bruma
espreita-o uma mulher nua, branca, branca.

Fuma mais. Outra vez.
E atira um braço decepado para a mesa.
Não pensa no fim do mês.
A noite é a sua única certeza.»



António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 33

(...)

«descerão atravessando gargantas
e subirão empurrando palavras
transportando-as ao pescoço como cintos de salvação»

António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 28

«RETRATO DO ARTISTA EM CÃO JOVEM»


António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 25

«o cão de circo para os domingos da família»


António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 25

''Wedding'', fotografia de László Fejes


''durante tanta alegria que não era tua»



António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 24
«As tuas mãos que a tua mãe cortou
para exemplo duma cidade inteira»

António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 24

« eu eu partisse a fumar
e o fumo fosse para se ler»


António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 23

(...)

«não é uma pátria
não é esta noite que é uma pátria
é um dia a mais ou a menos na alma
como chumbo derretido na garganta
um peixe nos ouvidos
uma zona de lava»


António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 22

''restos de pulmão''


«é um dia perfeitamente para cães
alguém deu à manivela para nascer o sol»

António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 22

After party. Ava Gardner, 1940s


coisas (im)perdoáveis

animálculo

animal microscópico

''quarenta noites de insónia''

3

«Roda de todas as torturas e todas as seduções, deixaste de girar, estás agora aqui, partida, abandonada no próprio local do sangue; transportada  de homem em homem através dos séculos, foste há pouco deposta pelo último homem, esse que desapareceu, ia de lado, com os joelhos duros cobertos de água e as mãos cem metros à sua frente em sinal de maldade. Corpo a corpo foste gasta até à última noite e até à última estrela; palavra a palavra foste sugada e bebida e de todos os lados sempre novas bocas chegavam para te sugar e beber; ficaste um gesto que perseguimos à dentada e acabámos por matar. Vêde: a destruição prossegue docemente. Restam apenas aqui e além algumas cidades com os seus milhões de almas e nada mais. Pequenas marcas de sangue cada vez mais vivas assinalam a nossa passagem entre as agulhas de carvão do tempo. Canhões ocupam a entrada da luz. E de Norte a Sul, de Este a Oeste, de criança para criança, aguarda-se o sinal de fogo.
   Não estranheis os sinais, não estranheis este povo que oculta a cabeça nas entranhas dos mortos. Fazei todo o mal que puderdes e passai depressa.
....................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................»


António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 15

2


«Falámos tanto ou tão pouco que de repente o silêncio que se fez foi essa patada no peito de que guardamos a marca quando agora choramos, quando estendemos as mãos carregadas de dedos mortos, sonhámos tanto que mais de uma vez tivemos de matar, que mais de uma vez nos estoiraram os olhos sob a pólvora das lágrimas e as tuas mãos voaram estilhaçadas, jogámos tanto que para não nos perdermos arriscámos tudo, até tornarmos a morte uma coisa nossa, tão nossa que é ela que anda agora vestida com a nossa pele e os nossos ossos, escorregando pelas paredes de cabeça p'ra baixo ou subindo pelo interior dos bicos, olhando do alto o sangue que ficou no centro, entre os carris, passando de cadafalso em cadafalso com os lábios furados pelas unhas, com a cintura roxa das dentadas da noite, da miséria dos dias.
.................................................................................................................................................................»

António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 14/5

''Stigma'', de Lawrence Gordon Clark


«Havia quem se suicidasse escrevendo um poema, como havia quem se suicidasse olhando simplesmente para o mar.»


(...)
«Havia quem se suicidasse escrevendo um poema, como havia quem se suicidasse olhando simplesmente para o mar. Qualquer coisa flutuava, a certas horas, ao redor das bocas, e era sangue ou labaredas, nunca se sabia bem. Era às vezes uma flor na boca duma criança.
   Uma noite uma mulher, estendendo os braços para o horizonte, lançou de súbito um grito lancinante: AVIÕES! Mas era apenas um bando de gaivotas e a mulher teve de ser enforcada. Tais enganos constituíam segredos de Estado.


António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 13

domingo, 28 de fevereiro de 2016

"Nenhum artista tolera a realidade." 

Nietzsche
''Quando não há caminho para a felicidade,
a felicidade é o caminho.''

Mahatma Gandhi
"Pela grossura da camada de pó que cobre a lombada dos livros de uma biblioteca pública pode medir-se a cultura de um povo."

John Steinbeck, autor norte-americano que comemoraria hoje 104 anos.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

''a anulação das unhas''


Egito Gonçalvesos pássaros mudam no outono. 1ª edição. Editora Limiar, 1981., p. 11

'' a pele flagelada de febre''


Egito Gonçalvesos pássaros mudam no outono. 1ª edição. Editora Limiar, 1981., p. 11
« e sinto
uma palpitação de ternura que me arranca de muito
longe. É um caminho
que cruzo novamente,»


Egito Gonçalves. os pássaros mudam no outono. 1ª edição. Editora Limiar, 1981., p. 10/11

violência semântica

Humphrey Bogart, Lauren Bacall and John Huston in Key Largo directed by John Huston, 1948. Photo by by Mac Julian


quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

"Ser companheiro vale mais do que ser chefe. É preciso que os homens à sua volta nunca tenham nenhuma angústia, não sofram nunca por o sentirem a você superior a eles; a sua superioridade, se existir, deve ser um bálsamo nas feridas, deve consolá-los, aliviar-lhes as dores. A sua grandeza, querido Amigo, deve servir para os tornar grandes, no que lhes é possível, não para os humilhar, para os lançar no desespero, no rancor, na inveja."

Agostinho da Silva, Sete Cartas a um Jovem Filósofo

pretensões grandiosas

"If you are only moved by color relationships, you are missing the point. I am interested in expressing the big emotions - tragedy, ecstasy, doom." - Mark Rothko



segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016


«Sempre que não temos percepções sucessivas não temos noção de tempo, mesmo que haja uma sucessão real de objectos.»


David HumeTratado da Natureza Humana. Tradução de Serafim da Silva Fontes. Prefácio e Revisão Técnica da Tradução de João Paulo Monteiro. 2ª Edição. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2010., p 67

«Uma pessoa a dormir profundamente ou inteiramente dominada por um pensamento é insensível ao tempo;»

David HumeTratado da Natureza Humana. Tradução de Serafim da Silva Fontes. Prefácio e Revisão Técnica da Tradução de João Paulo Monteiro. 2ª Edição. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2010., p 66
«(...), muitas das nossas ideias são tão obscuras que, mesmo para a mente que as forma, é quase impossível dizer exactamente a sua natureza e composição.»


David HumeTratado da Natureza Humana. Tradução de Serafim da Silva Fontes. Prefácio e Revisão Técnica da Tradução de João Paulo Monteiro. 2ª Edição. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2010., p 65

«Uma demonstração, sendo justa, não admite dificuldade contrária; não sendo justa, é um puro sofisma e por conseguinte jamais pode constituir dificuldade. Ou é irresistível, ou não tem qualquer força. Portanto, falar de objecções e respostas e comparar argumentos numa questão desta natureza ou é confessar que a razão humana não é senão um jogo de palavras, ou que a própria pessoa que assim fala não tem capacidade à altura de tais matérias. As demonstrações podem ser difíceis de compreender em virtude do carácter abstracto do assunto, mas uma vez que sejam compreendidas jamais podem ter dificuldades tais que enfraqueçam a sua autoridade.»


David Hume. Tratado da Natureza Humana. Tradução de Serafim da Silva Fontes. Prefácio e Revisão Técnica da Tradução de João Paulo Monteiro. 2ª Edição. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2010., p 63

«Tinha a cabeça partida e o sangue corria-lhe pela barba e pela sotaina toda esfarrapada.
-Santo higumeno - gritou ele - os anticristos assassinaram-me porque eu votei em ti anteontem nas eleições...»

Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 204

« - Tem paciência, não estejas triste. É necessário que a nossa alma resista bem e não sucumba porque se algumas almas soçobrarem no mundo, o mundo desmoronar-se-á. São essas almas que o sustêm. É pouco mas é bastante.»


Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 204

«Não tínhamos dito ainda uma palavra, mas sentíamos o coração angustiado.»


Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 203

«Que é que vocês vêm cá fazer, seus palermas? - perguntou.
-Vimos rezar, meu velho.
-Rezar, porquê? E a quem? Estão doentes?
-Vimos ao mosteiro.
-Qual mosteiro? Já não há mosteiro, acabou! O mosteiro é o mundo. Tomem um bom conselho: voltem para o mundo!»


Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 203

«Permanecia sentado todo o dia atrás da porta com um canivete na mão que lhe servia, ao que parece, para ir gravando em madeira Cristos, santos e demónios pequeninos.»


Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 203

Humphrey Bogart and Lauren Bacall in Key Largo directed by John Huston, 1948


''acariciava um grande gato negro sobre os joelhos''


Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 201

«-Peço-te que esqueças o que se passou. Juro que não acontecerá mais - disse.»


Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 200

domingo, 21 de fevereiro de 2016

''punha-se a falar de mares''


Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 198

''velhos registos, roídos pelos vermes...''


Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 198

''celas enegrecidas pela humidade e pelo bolor''


Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 197

Como dizia um amigo meu que já faleceu: “O que interessa na mulher são as características morais, mas se for bonita ajuda”.

António Coimbra de Matos

Mia Farrow on a Bed by Diane Arbus, 1964


«O que acontece é que para o homem, por comparação com o macaco, é importante a beleza de uma rosa, o perfume de uma mulher. O que tem valor para a nossa vida não é só o cheiro a cio.»

Entrevista pelo Jornal Público a António Coimbra de Matos

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«Diz-se muitas vezes que o homem é um animal de hábitos, mas não é verdade. O macaco é um animal de hábitos, o homem é um animal criador, está sempre a criar coisas novas. E por isso criou uma civilização. O ser humano é de tal modo criador – e eu sou ateu! – que até criou um deus. Deus é uma criação do homem. Na psicanálise estou mais interessado no futuro do que no passado. A psicanálise clássica está sempre muito ligada ao passado: o que aconteceu com a mãezinha, com o paizinho. Eu ando mais ligado àquilo que a pessoa projecta no presente e para o futuro.

No seu divã não lhe interessa aquilo que foram as vivências e as memórias recalcadas?

Isso também é importante. Costumo dizer aos meus alunos, na brincadeira, que os analistas clássicos me fazem lembrar um condutor de automóveis que vai sempre a olhar para o retrovisor; depois espeta-se no primeiro eucalipto. Não é isso que me interessa. Dá-se uma vista de olhos de vez em quando mas olha-se em frente, fundamentalmente.»


Entrevista pelo Jornal Público a António Coimbra de Matos

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pesca do bacalhau

«Fiz a instrução primária numa aldeia do Douro e ouvia dizer que o Afonso Henriques era um mata-mouros. Eu inventei uma outra designação: não era um mata-mouros, era um fode-mouras [risos]. Eles conquistavam as mouras e não precisavam de liquidar os mouros. Na maior parte das vezes aproveitaram a estrutura montada pelos árabes. Os espanhóis não fizeram isso e tiveram muito mais dificuldade em conquistar.»


Entrevista pelo Jornal Público a António Coimbra de Matos

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«Há pouco tempo foram divulgados números que revelam um aumento dos casos de suicídio em Portugal.

Sim. Há um trabalho célebre, um trabalho seminal, em que o pai da Sociologia, o Durkheim, verificou que quando há guerras e revoluções a depressão e os suicídios diminuem porque as pessoas se revoltam. Quando as pessoas não se revoltam, é que se suicidam; quando se sujeitam, quando não têm condições para protestar com mais veemência.»


Entrevista pelo Jornal Público a António Coimbra de Matos

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Fuma incessantemente

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Ann Harding and Ida Lupino in Peter Ibbetson directed by Henry Hathaway, 1935


Ia alternando: ora ficava em casa de Solange, ora na de Adélia. Gostava mais de ficar na vivenda de Adélia onde tinha um quarto só para si e um quintal onde se entretinha a arrancar as folhas secas das roseiras e os joios que cresciam nos canteiros. No apartamento de Solange sentia-se presa, passava muito tempo à janela da cozinha como se só aí, no parapeito, observando o movimento da rua, conseguisse estar. Nesse Natal, chegou muito debilitada, o corpo cada vez mais torto e respirando com dificuldade. Toda a vida sofrera de falta de ar sem nunca lhe ter sido feito um diagnóstico ou proposta qualquer terapêutica. Em Felicidade notava-se um permanente arfar pesado, mas sempre que se sentia mais aflita recorria a mezinhas antigas: tomava chá de folhas de eucalipto e, por conselho de uma vizinha de São Bartolomeu, nos últimos tempos, fumava cigarros feitos com as folhas secas de uma planta que crescia nos terrenos arenosos junto da ribeira. Às vezes, para acalmar a chiadeira das secreções, também usava as folhas da planta em cataplasmas que aplicava no peito antes de dormir. Solange aceitava os remédios caseiros da mãe, mas torcia o nariz quando a via na casa de banho, sentada na sanita, fumando aqueles estranhos cigarros.
- Isso tem algum jeito… – dizia com paciência, sorrindo, mas achando tudo aquilo disparatado e até um pouco triste.
Nesse último Natal, nem os cigarros que fumou, nem os chás que bebeu nem sequer as cataplasmas que aplicou surtiram efeito. Tossia muito, cada vez mais. Às vezes, parecia quase sufocar; nos intervalos, abria a boca como uma carpa chinesa e respirava fundo para sentir o ar chegar aos pulmões. Os ataques provocavam-lhe constantes perdas urinárias que faziam com que largasse um cheiro adocicado de urina e exsudação. Era um cheiro intenso, enjoativo, mas que não causava a Solange propriamente repulsa. Notava, porém, o desconforto do marido e das filhas quando, sentados a ver televisão, viam Felicidade chegar da cozinha e sentar-se a seu lado.


Nessa manhã de Dezembro, ainda de robe traçado, o cabelo num desalinho, Solange arranjava um pedaço de carne para fazer o almoço. Preparava-se para cortar os pés de porco, rijos como cornos, de uma brancura, tão lisa e fúnebre, que faziam lembrar cotos de estearina ardendo em tocheiros de santuários e capelas. Cortado, o chispe cozia melhor, bastava meia hora na panela de pressão e ficava gelatinoso, tenro, desfazia-se em lascas.
Foi então que Felicidade entrou na cozinha. Cheirava pior do que costume, um bafo excessivo parecia libertar-se do seu corpo e espalhar-se, não só na cozinha, mas por todo o apartamento. Solange notou-lhe uma grande mancha na bata e, sentindo uma tristeza repentina, os seus olhos encheram-se de lágrimas. Não querendo revelar essa fraqueza à mãe, continuou o que estava a fazer. Ergueu o cutelo e procurou localizar as articulações para não falhar o corte. Com um golpe vigoroso partiu em dois o chispe, mas, foi tal a força que imprimiu ao gesto, que se rachou a tábua de cozinha. O periquito, que afiava o bico na pedra de cálcio, amedrontou-se e piou de um modo esquisito.
- Mãezinha, antes do almoço, vou dar-lhe banho, está bem? - Disse Solange, enquanto metia a carne na panela de pressão. Pressentia que o cansaço de Felicidade já não lhe permitia tratar sozinha da sua higiene. A mãe anuiu como se não entendesse bem o significado do que a filha dizia.


Solange aqueceu a casa de banho para evitar constipações, encheu a banheira de água tépida, colocou a roupa interior a aquecer no radiador a óleo. Depois, com cuidado, ajudou a mãe a despir-se. Tirou-lhe a bata, a saia, a camisola, a combinação, as meias de lã que usava sempre presas com uma liga de elástico preto. Felicidade ficou apenas de cuecas e sutiã, de lenço na cabeça.
- Vá, vamos lá tirar o resto! - Disse Solange com despacho, disfarçando o desconforto que a iminente revelação da nudez da mãe lhe provocava.
Felicidade porventura já não sentia o corpo vivo ou talvez estivesse demasiado cansada para sentir vergonha. Tirou as cuecas e desapertou os colchetes do sutiã com uma naturalidade que impressionou Solange. Deixou-se ficar nua, de pé, em frente da filha: corpo exposto, mas de lenço na cabeça.
- Tire lá o lenço! Há quanto tempo é que essa cabeça não é lavada em condições? – Perguntou Solange e, desviando o olhar das mamas e do sexo da mãe, fez um gesto para lhe tirar o lenço.
Felicidade recuou, levando as mãos à cabeça. Solange estranhou o gesto: a mãe parecia não ter vergonha de estar nua à sua frente, mostrava-lhe com uma estranha desenvoltura a plenitude da sua nudez enrugada, assexuada, mas recusava revelar-lhe essa outra nudez. Sabia que o lenço era uma espécie de segunda pele para a mãe. Na aldeia, todas as mulheres mais velhas ainda o usavam: com um nó apertado por baixo do queixo ou, nos dias de mais calor, atado atrás do pescoço. Que se lembrasse, só uma mulher mais velha andava sempre de cabeça descoberta. Era a irmã da Preciosa, mas essa tinha desculpa: para além de muda, era meio atrasada. Passava os dias a comer caramelos e a embalar bonecas na aduela da porta. Pois, com excepção da muda, todas as mulheres da geração da mãe usavam lenço; o lenço era um sinal de honra, de dignidade, sobretudo de respeito pelos maridos mortos.
Felicidade continuou a teimar como uma criança, agarrada ao lenço preto. Solange acabou por se irritar com a teimosia e fez-se ríspida: chegou perto da mãe e, com brusquidão, arrancou-lhe o lenço da cabeça. Viu um crânio liso, muito lustroso, calvo. Apenas um penacho de cabelos brancos nasciam no cocuruto, tornando ainda mais triste a sua aparência. A mãe era completamente careca.
- O cabelo começou a cair quando o paizinho morreu… – Explicou Felicidade tapando a cabeça com as mãos. – Fiquei sozinha, filha, tinha muitas saudades dele! Quanto mais triste me sentia mais o cabelo me caía. Foi caindo, caindo até ficar assim…
Solange voltou a sentir vontade de chorar. Colocou o lenço na cabeça da mãe, atando-o atrás para que não se molhasse. Depois, ajudou-a a entrar na banheira e deu-lhe banho, já sem estranhar a sua nudez. Lavou-a como se fosse uma criança, notando a fragilidade daquele corpo sempre escondido do sol: uma vida de trabalho no campo e a pele lisa, tão branca. Lavou-a com vagar: tronco, pernas, braços, os pés cheios de calosidades. Sentada na banheira, nua, o lenço atado na cabeça, Felicidade parecia não se sentir desapossada do seu corpo. Às vezes sorria à filha como que a dizer-lhe que lhe sabia bem a ternura daquele momento.

(A minha avó chamava-se Felicidade.)


Ana Cássia Rebelo. Ver aqui
"Quis publicar um livro mas nunca o chegou a fazer, porque estava continuamente a fazer alterações no manuscrito, e fez tantas e tão grandes que, por fim, do manuscrito já nada restava, a alteração do manuscrito nada mais era do que a eliminação total do manuscrito, do qual por fim nada mais ficou do que o título O Náufrago. Agora tenho apenas o título, disse-me ele, assim é que está bem. Não sei se terei forças para escrever um segundo livro, parece-me que não, dissera ele, se O Náufrago tivesse sido publicado, disse ele, teria sido obrigado a matar-me."


Thomas Bernhard, O Náufrago


Sopa de peixe

A minha mãe matou-me muitas vezes. Da primeira vez, era ainda pequenina, cabia dentro da sua mão, atirou-me ao mar. Da segunda vez, começava a dar os primeiros passos, aos tropeções pela sala do crocodilo amarelo, atirou-me ao rio. Quando tinha seis anos, no tempo em que usava o cabelo preso em duas tranças e passava o dia a soletrar palavras difíceis, pôs-me a dormir e ligou o gás do fogão. Devia ter dez anos quando misturou veneno na sopa de peixe. Sabia que, por ser a minha sopa preferida, a comeria até ao fim, raspando o prato até não sobrar uma gota. Aos treze anos, num domingo de tempestade, os relâmpagos caiam no monte de ervas altas, afogou-me na banheira. Aos quinze, já não esperava que o fizesse, sufocou-me com a almofada de veludo azul. Ontem, dia em que fiz dezoito anos, a minha mãe levou-me ao último andar da torre onde vivemos e empurrou-me. Cansada de morrer, olhei para as mãos da minha mãe, paralisadas no ar, e voei para longe.

Ana Cássia Rebelo. Ver aqui

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

"Morre menos gente de cancro ou de coração do que de não saber para que vive; e a velhice, no sentido de caducidade, de que tantos se vão, tem por origem exactamente isto: o cansaço de se não saber para que se está a viver."
Agostinho da Silva, As Aproximações

«dentes miúdos»

Branco no Branco, o poema XXV

Raivosos, atiraram-se contra a sombra
de umas acácias que por ali havia,
o corpo dorido de tanto desejar.
Olharam em redor, ninguém os vira,
a terra era de areia, a sombra dura,
também a carne endurecera
e secara a boca, só os olhos
tinham ainda alguma água fresca
Os dedos cegos foram os primeiros
a rasgar, ferir, e logo os dentes
morderam, nem sequer
ao sexo deram tempo de penetrar.
Eram muito jovens; a terra não,
a terra estava exausta,
o coração mordido pelas vespas,
só queria morrer.

Eugénio de Andrade

poema intitulado «Sul», do livro Os Lugares do Lume:

Eram dois cães raivosos, eram duas
cobras enroscadas, eram dois rapazes
rolando pelo chão; lutavam,
mordiam-se, abraçavam-se.
Deviam amar-se muito, para se baterem
com tal ardor. Um sol verde
lambia agora a terra.

Eugénio de Andrade

''cheiro morno e acidulado da urina

representação orgástica

«Os seios de Maria caíam nus da blusa. Uma das mãos do carpinteiro perdia-se
nos seus cabelos emaranhados, a outra parecia ter-se enterrado na areia. O resto
era aquele corpo todo de homem: rígido e fremente ao mesmo tempo, à força
de concentrar todo o ímpeto nas nádegas, arco de onde a flecha partia, para se
cravar exasperada nas entranhas da rapariga. Parecia um cavalo ofegante – os
olhos cerrados, o suor escorrendo da raiz dos cabelos, espalhando-se pelas costas,
pelos flancos, pelas pernas, quase todas descobertas. Um cavalo cego mordendo
o céu branco de agosto.»

Eugénio de Andrade, Poesia, p. 394-395.

somatização do apelo erótico


«qualquer apelo distante se fez carne em mim»

Eugénio de Andrade

escouceia

«Vou fazer-te uma confidência, talvez tenha já começado
a envelhecer e o desejo, esse cão, ladra-me agora menos à porta»

Eugénio de Andrade
«Era no tempo em que as cabras
subiam às falésias. Talvez algum pastor lhes seguisse o rasto. E cantasse então».

Eugénio de Andrade

''os termos axiais da poesia eugeniana''

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