«Em que mundo estonteante vivemos, ou vamos viver, se a
comunidade, os cidadãos e a opinião pública não só admitem, mas, infelizmente,
ainda aplaudem abertamente o que ofende a sensibilidade requintada, o sentido do gosto, da beleza e
da mediania, o que se impõe de forma doentia e, dando-lhe um ar ridiculamente
acanalhado como que brada a mais de cem metros em redor, aos quatro ventos: ‘’Eu
sou fulano tal. Tenho tanto e tanto dinheiro e posso permitir-me dar nas vistas
com grosseria. É claro que, com as minhas exibições de fausto idiota, não passo
de um labrego e dum simplório sem sensibilidade; mas ninguém pode proibir-me de
ser grosseiro e presunçoso’’. Será que os caracteres dourados, brilhando e
refulgindo ao longe de forma ignóbil, mantêm alguma relação aceitável e
sinceramente plausível, ou algum laço de parentesco normal – com o pão? De modo
nenhum! Mas o que acontece é que a odiosa jactância e a ostentação já começaram
um pouco por toda a parte e, com uma
lamentável e terrível inundação, foram sempre acumulando progressos, arrastando
consigo a insensatez, a impureza e a tolice, espalhando-as pelos quatros cantos
do mundo, até que levaram na maré o meu honrado padeiro, corrompendo-lhe o bom
gosto que até então manifestara e minando a sua tradicional modéstia. Não
hesitaria em dar muito, em sacrificar mesmo o meu braço ou a minha perna
esquerda, se assim pudesse contribuir para recuperar o antigo e bom sentido da
probidade, a antiga e boa fragilidade, se pudesse devolver ao país e às pessoas
aquela modéstia e honradez que, com pesar de todos os que sinceramente se
importam, se perderam consideravelmente. Maldita seja a mórbida fantasia de se
querer parecer mais do que se é. »
Robert Walser. O passeio e outras histórias. Granito Editores e Livreiros, 1ª edição, Porto, 2001, p., 31/32