quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

«Uma parte da nossa geração não se viveu enquanto se ia vivendo.»


Eduardo Lourenço. Escrita e Morte in Heterodoxia I e II. Assírio & Alvim, Lisboa, 1987

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

'as minhas outras duas irmãs, as mais velhas'

«Segundo o meu papá, elas tinham-se deitado a perder porque éramos muito pobres lá em casa e elas eram muito respondonas. Desde pequeninas que já eram resmungonas. E assim que lhes cresceram deu-lhes para andar com homens do piorio, que lhes ensinaram coisas más. Elas aprenderam depressa e percebiam muito bem os assobios, quando as chamavam a altas horas da noite. Depois saíam até de dia. Iam a toda a hora buscar água ao rio e às vezes, quando uma pessoa menos esperava, ali estavam elas no curral, rebolando-se no chão, todas despidas e cada uma com um homem em cima.
   Então o meu papá correu com as duas. Primeiro aguentou-lhes tudo o que pôde; mas um dia já não pôde aguentá-las mais e deu-lhes saída para a rua. Elas foram para Ayutla ou não sei para onde; e aí andam como putas.»




Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 166
   «Não consigo perceber porque é que a Serpentina se lembraria de passar o rio, quando sabia perfeitamente que não era o mesmo rio que ela conhecia de todos os dias. Nunca vi a Serpentina tão atarantada. O mais certo é ter vindo ainda a dormir para se deixar matar assim sem mais nem menos. A mim muitas vezes tocou-me acordá-la quando lhe abria a porta do curral, porque senão, por vontade dela, ali estaria o dia inteiro com os olhos fechados, bem quieta e suspirando, como se ouvem suspirar as vacas quando dormem.
    E aqui deve ter acontecido isso, adormeceu. Talvez se tenha lembrado de acordar ao sentir que aquela água pesada lhe batia nas costelas. Talvez então se tenha assustado e tenha tentado regressar; mas ao virar-se encontrou-se entressachada e inteiriçada entre aquela água negra e dura como terra corrediça. Talvez tenha bramado pedindo que a ajudassem.
    Bramou só Deus sabe como.»



Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 164/5
«O rio começou a crescer há três noites, lá para a madrugada. Eu estava muito adormecido e, no entanto, o estrondo que o rio trazia ao arrastar-se fez-me acordar imediatamente e saltar da cama com a minha manta na mão, como se tivesse acreditado que se estava desmoronando o tecto da minha casa. Mas depois voltei a adormecer, porque reconheci o barulho do rio e porque esse barulho foi-se tornando igual até me trazer outra vez o sono.»


Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 163
«Devia estar bêbado. Pôs-se à minha frente e bamboleava-se de um lado para o outro, tapando-me e destapando-me a luz que eu precisava da lua.
- Andar com rodeios não é bom - disse-me depois de um bom bocado.- Eu gosto das coisas direitas, e se tu não gostas, sofres as consequências, porque eu vim aqui para as endireitar.
   Eu continuei a remendar o meu saco. Só tinha olhos para lhe coser os buracos, e a agulha de albarda trabalhava muito bem quando a alumiava a luz da lua. De certeza que foi por isso que achou que eu não me preocupava com o que ele dizia:
 - Estou a falar contigo - gritou-me, agora sim já irritado. - Bem sabes ao que vim.
   Espantei-me um pouco quando se aproximou de mim e me gritou aquilo quase à queima-roupa. No entanto, tentei ver-lhe a cara para saber de que tamanho era a sua fúria e continuei a fixá-lo, como que a perguntar-lhe ao que tinha vindo.
   Isso resultou. Já mais calmo, saiu-se com esta: que as pessoas como eu têm de se apanhar desprevenidas.
  - Seca-se-me a boca por te estar falando depois do que fizeste - disse-me; - mas era tão meu amigo o meu irmão como tu e só por isso vim ver-te, a ver como esclareces a morte de Odilón.
    Eu já o ouvia muito bem. Pus de lado o saco e fiquei a ouvi-lo sem fazer mais nada.»



Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 157/158
«Lembro-me de antes, quando os Torricos também vinham aqui sentar-se e ficavam acocorados horas e horas até ao escurecer, olhando para o longe sem se cansarem, como se este lugar lhes sacudisse os pensamentos ou a vontade de irem passear a Zapotlán. Só depois soube que não pensavam isso. Unicamente se punham a olhar o caminho: aquela larga azinhaga arenosa que se podia seguir com o olhar desde o começo até que se perdia entre os pinheiros do cerro da Media Luna.»
 
 
 
Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 153
      «Às vezes chegamos a acreditar, no meio deste caminho sem margens, que depois não haverá mais nada; que não se poderá encontrar nada do outro lado, no fim desta planura rachada de gretas e de arroios secos. Mas sim, há algo. Há uma aldeia. Ouvem-se os cães a ladrar e sente-se no ar o cheiro do fumo, e saboreia-se esse cheiro de gente como se fosse uma esperança.
    Mas a aldeia está ainda muito para lá. É o vento que a aproxima.»


Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 145

Sentenças

 “A verdadeira vida é uma enfermidade do espírito”
Novalis

 

 “A verdadeira vida está ausente; não estamos no mundo”
Rimbaud

Cadáver do guerrilheiro Ernesto Che Guevara. Bolívia, 1967.

“Este é o mundo em que vivemos, banal e delirante, mas onde se torna cada dia mais clara a
necessidade de despertar e cultivar o que há de humano no homem”


 escreve-nos Ferreira Gullar (1989, p.15).

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

«O homem não é senão um navio pesado, um pássaro
pesado, sobre o abismo.»



Francis Ponge. Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 135
*


      Por felicidade, contudo, o que é o ser? - Não há senão maneiras de ser, sucessivas. Há tantas quanto objectos. Tantas quantos os batimentos de pálpebras.
      Tanto quanto, tornando-se nosso regime, um objecto nos concerne, também o nosso olhar o cerca, o discerne. Trata-se, graças aos deuses, de uma «discrição» recíproca; e o artista acerta logo no alvo.
      Sim, só o artista, então, sabe como fazer.
      Deixa do olhar, atira ao alvo.
      O objecto, é certo, acusa o golpe.
      A verdade afasta-se em voo, indemne.
      A metamorfose aconteceu.
    


Francis Ponge. Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 133

domingo, 19 de dezembro de 2010

«Olhas juvenil em tua beleza, e não és inda
Por demais magnífico e orgulhoso;
Bem podias correr, pudesse eu,
Divino Vagabundo, ir contigo! Mas tu sorris»



Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 139

O SOL FLOR FASTIGADA

TODOS OS DIAS AO CIMO DO MUNDO
EIS QUE SOBE UMA FLOR FASTIGADA.
O SEU ESPLENDOR APAGA O SEU CAULE
QUE VAI TREPANDO POR ENTRE OS DOIS OLHOS
DA DEMASIADA ESTREITA NATUREZA
P'RA LHE DIVIDIR SEPARAR A FRONTE.
A RAIZ 'STA EM NOSSOS CORAÇÕES.

A raiz do que nos deslumbra está nos nossos corações.



Francis Ponge. Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 109
«A sombra tem sempre uma forma, a do corpo que a deita.»


Francis Ponge. Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 99

In between

O sol colocado em abismo

9

Assim, mergulhado na desordem absurda e de mau gosto do mundo, no caos inaudito das noites, o homem pelo menos conta os sóis.


Francis Ponge. Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 95

O sol colocado em abismo

«O sol anima um mundo que primeiro consagrou à morte: é pois apenas a animação da febre ou da agonia.»


Francis Ponge. Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 87
«Fugirão como se foge diante da espada, perseguidos
pelo barulho de uma folha que cai, cairão sem ninguém os
perseguir, e tropeçarão uns nos outros como quem foge da
espada, sem que ninguém os persiga.»


(Levítico 26: p. 168)
«Quem matar um animal pagá-lo-á,
e quem matar um homem deverá morrer.»


(Levítico 25: p. 165)

As lâmpadas

«Ordena aos filhos de Israel que te tragam azeite puro,
de azeitonas trituradas, para a luminária, a fim de alimentar
permanentemente as lâmpadas.»


(Levítico 24: p. 164)

sábado, 18 de dezembro de 2010

Fantasia do Anoitecer

(...)

«Para onde irei eu? Vivem os mortais
De soldo e trabalho; alternando em fadiga e repouso
Tudo se alegra; porque não dorme então
Nunca em meu peito o espinho?

No céu da tarde floresce toda uma primavera;
Incontáveis florescem as rosas, e tranquilo aparece
O mundo áureo; oh! levai-me pra lá,
Nuvens purpúreas! e que lá em cima

Em luz e ar se dissolvem meu amor e dor! -
Mas, como corrido da súplica louca, foge
O encanto; faz-se escuro, e solitário
Sob o céu, como sempre, me encontro. -

Vem tu agora, sono suave! demasiada cobiça
O coração; mas ao fim, juventude, também tu amorteces,
Sonhadora, inquieta!
Serena e pacífica é então a velhice.



Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 133/135

Deuses andaram outrora...

Deuses andaram outrora entre os homens, as Musas
[magníficas
E o jovem Apolo, sarando, inspirando, como tu;
E tu és para mim como eles, como se um dos Venturosos
Me tivesse mandado pra a Vida: se eu ando, anda comigo
A imagem da minha Heroína, quando sofro e crio, com amor
Até à morte; pois isto foi que aprendi dela e dela tenho.

Vivamos, pois, ó tu com quem eu sofro, tu com quem
Íntima - e crente - e fielmente luto por tempo mais belo.
Pois nós somos! E se em anos vindouros ainda soubessem
De nós ambos, quando outra vez o Génio valer,
Diriam: «Estes solitários criaram pra si em amor,
Só sabido dos Deuses, o seu mais secreto mundo.
Pois os que só do que morre cuidaram, a terra os recebe;
Mas mais se aproximam da Luz e do Éter
Os que, fiéis ao íntimo amor e ao divino espírito,
Esperando e sofrendo e com calma o Destino venceram.»


Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 119
«Olha, até a mim mesmo rejuvenesceram as palavras da
                                                                       [infância,
E, como outrora, me correm dos olhos as lágrimas;
E em pensamento volto aos dias há muito passados,»
 
  (...)
 
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 117

'Foi nos braços dos deuses que eu cresci.'

Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 107

A família do sábio

Ao ruído de uma nascente de noite, sob uma campânula de folhas, com uma mesma árvore contra o tronco, calmo e frio - Pai - assim, num quarto frio, um dia a tua presença nos foi.

    Tu estavas frio, sob um único lençol, velado, uma janela aberta.

   Que equilíbrio nós quatro juntos, sem horas sentados, tu próprio ainda melhor em repouso, estendido, morto.

   Que pura saúde a do verde-frondoso, do solo, e do líquido.

   Igual em nós corria uma água em silêncio do pescoço sem cessar para o dorso até aos membros sob a erva. Pela janela surda, um sopro, derramado do fundo obscuro do céu, secava nas têmporas das mulheres o suor do anoitecer.

 E que também uma estrela, parecida com o olho do filho,
se avive,
 Sem o dizeres. daí tiravas teu gozo, Pai!



Francis Ponge.  Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 57
«(...) quero reaproximar-vos da substância e afastar-vos da qualidade. Quero fazer com que vos amem por vós mesmos mais do que pela vossa significação.»




Francis Ponge.  Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 53

O ciclo das estações

   Cansadas de se terem contraído todo o inverno as árvores de repente gabam-se de ser enganadas: soltam as suas palavras, uma onda, um vómito de verde. Tentam alcançar uma folheação completa de palavras. Tanto pior! As coisas arranjar-se-ão como puderem! E, na realidade, arranjam-se! Nenhuma liberdade na folheação...As árvores lançam, pelo menos é o que pensam, não importa que palavras, lançam caules para neles suspenderem mais palavras: os nossos troncos, pensam elas, aqui estão tudo para assumirem. Esforçam-se por se esconderem, por se confundirem umas nas outras. Julgam poder dizer tudo, cobrir inteiramente o mundo com palavras variadas: mas não dizem senão «as árvores». Incapazes até de reter os pássaros que delas voltam a partir, embora se alegrassem por terem produzido tão estranhas flores. Sempre a mesma folha, o mesmo modo de desdobramento, e o mesmo limite, sempre folhas simétricas umas às outras, simetricamente suspensas! Tenta mais uma folha! - A mesma! Mais outra! A mesma! Em suma, nada poderia pará-las senão de súbito esta observação: «Não se sai das árvores por meios de árvore». Um novo cansaço, e uma nova mudança moral. «Deixemos tudo isto amarelecer, e cair. Que venha o taciturno estado, o despojamento, o Outono.


Francis Ponge.  Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 39
«Perdoa-me!, agora que o meu coração está morto...»

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

“E o mais fundo de mim
Me diz apenas: Canta,
Porque à tua volta
É noite. O ser descansa.
Ousa.”



Hilda Hilst..Exercícios. São Paulo: Globo, 2002. p 29/30

Ática

“No continente grego, junto às Cíclades e ao Mar Egeu, o promontório de Sounion é um avanço do território Ático. Quando se distancia do promontório vê-se, no topo, o templo de Atenas Sounias, navegando-se mais adiante vê-se Laurion, onde os atenienses tiveram outrora as suas minas de prata; há em seguida uma ilha deserta, mas não muito extensa, chamada ilha de Pátroclo, porque Pátroclo lá construíra uma muralha e fundara um campo fortificado”.



Pausânias. Description de la Gréce, p. 20.
«O pai é aquele que, mesmo no Sabat, quando a ovelha
que ele encontrara caiu no fosso, cuidou dela e a manteve viva, depois de tirá-la
do fosso.»


Layton, As Escrituras Gnósticas, p. 308.


''Acima de tudo procurem sentir no mais profundo de vocês qualquer injustiça cometida contra qualquer pessoa em qualquer parte do mundo. É a mais bela qualidade de um revolucionário.''

Em contrapartida...

« Em contrapartida, ela, habituada à liberdade e ao ambiente aberto das feiras, sentia-se abatida na desolação daquela casa imensa, e elanguescia de prostração. Pois Dionizio Pinzón mantinha-a sempre prostrada no canto da sala, onde permanecia noite após noite, presenciando os jogadores, afastada do sol e da luz do dia, pois a partida terminava ao amanhecer e começava ao cair da tarde. Deste modo, escureciam-se-lhe os dias e em vez de respirar ares diferentes, sorvia fumo e vapores alcoólicos.
   Antes de Dionisio Pinzón ter transformado a sua humildade em soberba, ela colocara as suas condições e impusera a sua vontade. Agora, porém, já decaída a sua voz, mortas as suas forças. não lhe restava senão obedecer a uma vontade alheia e esquecer a própria existência.
   - Ouve-me bem, Dionisio - dissera-lhe quando este lhe propusera casamento, - eu estou habituada a que ninguém mande em mim. Por isso escolhi esta vida...e também sou eu quem escolhe os homens que quero e deixo-os quando me dá na gana. Tu és como os outros, nem mais nem menos. Desde já to digo.
    - Está bem, Bernarda, far-se-á aquilo que tu mandares.
    - Isso também não. Aquilo que eu preciso é de um homem. Não da sua protecção, que eu sei proteger-me sozinha; mas, isso sim, que saiba responder por mim e por ele diante de quem for...E que não se espante se eu lhe der má vida.
     Mas na realidade foi ele quem lha deu a ela. Assim que sentiu o poder que o dinheiro lhe dava, o seu carácter  mudou. Subiu de condição e procurou demonstrá-lo em todas as suas relações. E mesmo quando ela lutou por todos os meios que tinha ao seu alcance para não perder a sua liberdade e independência de vida, ao fim e ao cabo não o conseguiu e teve de se submeter. Mas lutou. (...)»
 
 
 
 
Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 349

Casou-se com la Caponera numa manhã qualquer...

«Casou-se com la Caponera numa manhã qualquer, numa aldeia qualquer, honrando assim a sua promessa de nunca mais se separar dela.
      Ela não queria matrimónio; mas algo no fundo lhe dizia que aquele homem não era como os outros, e movida pela conveniência de se associar a alguém, sobretudo a um fulano como Dionisio Pinzón, cheia de codícia e do qual estava certa que continuaria com ela, a andar de um lado para o outro, enquanto batessem as asas dos seus galos, concordou em casar, pois assim teria, ao menos, em que apoiar a sua solitária vida.
     Aldeias, cidades, ranchos, tudo percorreram. Ela, pelo seu próprio gosto. Ele, movido pela ambição: por um afã ilimitado de acumular riqueza.»



Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 344
«Na primeira tarde, dos três galos jogados, Dionizio Pinzón só ergueu um vivo. Na segunda tarde, deu «capote» nas três lutas. Descansou um dia; para no quarto dia voltar à cercadura, onde ficou claro que os seus animais não serviam nem para galos de galinheiro pois todos ficaram pendurados no gancho onde é costume deixar que os galos mortos destilem a sua última gota de sangue.»
 
 
 
Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 334

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

«- Vivias morto de fome. Eu vou dizer-to. Sei avaliar as pessoas com uma simples vista de olhos. E tu és daqueles, perdoa-me que to diga, daqueles que evitam o trabalho duro...Não, Pinzón, tu és como eu. O trabalho não foi feito para nós, por isso procuramos uma profissão mais ligeirinha. E qual melhor do que esta jogatana, em que esperamos sentados que a sorte nos mantenha?»



Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 332

Canção do destino de Hyperion

Andais lá em cima na luz
Em chão macio, génios venturosos!
Ares divinos resplandecentes
Vos tocam de leve,
Como os dedos da artista
Cordas sagradas.

Sem destino, como dormente
Menino, respiram os deuses;
Pudicamente guardado
Em casto botão,
Eternamente
Lhes floresce o Espírito,
E os olhos felizes
Olham em serena
Claridade eterna,

Mas a nós foi-nos dado
Não repousar em parte alguma,
Desfalecem, caem
Os homens sofredores
Às cegas de uma
Hora para a outra,
Como água atirada
De rochedo em rochedo,
Anos a fio para o Incerto.




Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 101/2
«Pois mais livres respiram as aves do bosque,
Embora mais magnífico arqueje o peito do Homem,
E ele, que vê o escuro futuro, tem também
De ver a morte, e entre todos sozinho ter-lhe medo.

E contra todos os que respiram usa o Homem
Armas em seu orgulho e medo eternos; no dissídio
Se consome, e a flor da sua paz,
Delicada, é breve e passageira.»



Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 99

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

VANINI

Blasfemo te chamaram? com maldições
Te carregaram o coração e te amarraram
E te entregaram às chamas,
Santo homem! Oh, porque não voltaste

Em chamas do céu, pra ferir a fronte
Dos ímpios e mandar à tempestade
Que atirasse a cinza dos bárbaros
Pra fora da terra e da pátria?

Mas aquela que em vida amaste, a que te acolheu
Moribundo, a Natureza sagrada esquece
As acções dos homens, e os teus inimigos
Entraram, como tu, na paz antiga.




Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 93
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