sábado, 27 de julho de 2013


cerzir


verbo transitivo

 coser sem deixar sinal da costura; passajar

(Do latim sarcīre, «remendar»)

«Sei que não posso chamá-la das margens»

Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 312
A mulher muitas vezes avança
 
A mulher muitas vezes caminha pela borda
Do vestido. Pudesse tocar
A fímbria ou a franja de toda a casa
Ela a sararia. Ela sairia
Com o cabelo solto
 
Muitas vezes a mulher prende o cabelo com as mãos
Cose muitas vezes com a lâmpada por dentro - a agulha
A cerzir o brilho. A mulher remenda
A lâmpada apagada. Por dentro
O coração ponteia alguma luz
 
A vida roda, o vestido rompe-se
 
A mulher é um barco quando se afunda
A hélice gira - gera como planta
Em redor da luz. A mulher
Anda em redor como corola
Sem pólen
 
A azenha anda à volta na memória e a água corre-lhe
Dos olhos. Põe o coração para a frente como os fuzilados
Enxuga os olhos como se espalhasse. A mulher
Varre infinitamente mais do que o que vemos ou somos capazes de
                                                                                                  imaginar
 
E há imagens na terra
Que nunca lembram o céu
 
 
 
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 311

«Quero ver-te mesmo quando sangro»

Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 307

Do que sangro

Sem o agasalho das asas
Agrilhoado no lado de fora do fogo, ao frio,
Desatado pela diária lâmina
Na condição da luz encarcerada no astro
Para ser nas viagens sinal. Um aviso, um dedo no céu

Acordado pela sempre quotidiana órbita do lume
Acocorado sempre na cinza para foco
Sem qualquer intermitência
Gume
Invejando o relâmpago
Rápido

De longe descobre a semelhança
Do amor

Com o pássaro

Que não faz ninho
Que não segue a presa
Que não deixa o corpo por um pouco
Desejar

Qualquer coisa diferente de morrer



Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 299
A pedra na terra.
Oiço a pedra badalar nos sinos.
Estou muito mais distante do que aquilo que a pedra atirada pode
                                                                                           alcançar.

Estendes-ma: um punho de trevas.
A hora.
A pedra que bate nos sinos.



Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 297

«Cansa-me muito estar como a pedra entre as mãos»

Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 296

(incluindo eu)

 
«Há gente  que tem sempre à mão a sua reserva de irritação.»
 
Adolfo Bioy Casares. dormir ao sol. Tradução de António Sabler. Editorial Estampa, Lisboa, 1980., p. 111
«O amor e a amizade não se fizeram um para o outro - sentenciou a velha -. Quando um está no auge, o outro desfalece.»
 
 
Adolfo Bioy Casares. dormir ao sol. Tradução de António Sabler. Editorial Estampa, Lisboa, 1980., p. 110

mutismos

«Acto contínuo, Zeferina fechou-se  num desses mutismos que lhe são tão próprios.»
 
 
Adolfo Bioy Casares. dormir ao sol. Tradução de António Sabler. Editorial Estampa, Lisboa, 1980., p. 102
 
 
« - Não confundas tristeza com loucura.
   - Estás triste porque estás louco.
    Sinceramente confessei:
     - Não te entendo.»
 
 
 
Adolfo Bioy Casares. dormir ao sol. Tradução de António Sabler. Editorial Estampa, Lisboa, 1980., p. 86

«No homem ciumento pouco dura a bondade.»

Adolfo Bioy Casares. dormir ao sol. Tradução de António Sabler. Editorial Estampa, Lisboa, 1980., p. 74

«Por alguma razão se diz que da boca dos loucos se ouve a verdade.»

 
Adolfo Bioy Casares. dormir ao sol. Tradução de António Sabler. Editorial Estampa, Lisboa, 1980., p. 48

superstições

 
«Não entendo as mulheres. Sem causa aparente, Adriana Maria passou da animação ao cansaço.»
 
 
 
Adolfo Bioy Casares. dormir ao sol. Tradução de António Sabler. Editorial Estampa, Lisboa, 1980., p. 44

''My Week with Marilyn"

ETRA (reflectindo) - Talvez haja momentos em que as coisas se soltam da mentira,  como os frutos se desprendem do ramos que os sustinha.  E vão rolando até ao sol, no meio da estrada, sob os olhares de todos. E não há nisso acção  de deuses nem de humanos, mas tão-só a passagem da própria natureza. E uma vez caído o fruto, nunca mais ninguém conseguirá uni-lo à árvore. (Para Helena) A partir do instante em que eu to diga, tudo será diferente. Queres saber?



Hélia Correia. O Rancor. Exercício sobre Helena. Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2000., p. 80/1

ETRA - A vingança não quer o sofrimento. Quer a humilhação. Eu humilhei-me.



Hélia Correia. O Rancor. Exercício sobre Helena. Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2000., p. 78
«(...) Nunca um filho amou tanto a sua mãe como Orestes naquele momento em que a matou.»


Hélia Correia. O Rancor. Exercício sobre Helena. Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2000., p. 71

Schiu!

segunda-feira, 22 de julho de 2013


deusa-mulher

''escorregando na maciez do sangue''

«HELENA - Chega! Mas como tu és cansativo! Que cansativos se tornaram todos os homens desta terra, desde os reis ao mais enlouquecido vagabundo! A falta que lhes faz a guerra! O mais parecido que agora acharam para se entreterem é insultarem as mulheres!»



Hélia Correia. O Rancor. Exercício sobre Helena. Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2000., p. 64/5
«ORESTES - É um grito que o tempo, por si só, nunca terá poder para apagar. É o grito do homem que morre atraiçoado pela própria mulher. O que se houve em Micenas não é a dor da carne que a faca dilacera. É a do coração. E essa perdura. Como se o ar em volta da cidade fosse de bronze e o grito não achasse saída. Embate às cegas, fere-se, recua, e atravessa os ouvidos de cada cidadão.»




Hélia Correia. O Rancor. Exercício sobre Helena. Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2000., p. 63

engodo

 
«Dentro da solidão os espantalhos (não lhes fora dada
A companhia dos pássaros)
 
 
 
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 289

«As pessoas que nos querem bem têm direito a odiar-nos de vez em quando.»

 
 
Adolfo Bioy Casares. dormir ao sol. Tradução de António Sabler. Editorial Estampa, Lisboa, 1980., p. 40
 
«Repare como é a minha senhora. Até na sua loucura se mostrava vivaça e tem resposta para tudo.»
 
 
 
Adolfo Bioy Casares. dormir ao sol. Tradução de António Sabler. Editorial Estampa, Lisboa, 1980., p. 24
«Diana falava com tal velocidade que se eu não mostrava discordar, as afirmações dela iam por ali fora e eu tinha de fazê-la tornar atrás para as discutirmos. E depois, estava tão nervosa (e eu tinha-lhe tanto amor) que, para não a contrariar, muitas vezes não a desenganei. Se a tivesse contrariado, pobre de mim. É muito severa quando se irrita e garanto-lhe que não faz as pazes enquanto a gente se não tiver arrastado de remorso e pedido perdão até ao esgotamento.»
 
 
 
 
Adolfo Bioy Casares. dormir ao sol. Tradução de António Sabler. Editorial Estampa, Lisboa, 1980., p. 24

''vantagens e inconvenientes da coleira de adestramento''

Adolfo Bioy Casares. dormir ao sol. Tradução de António Sabler. Editorial Estampa, Lisboa, 1980., p. 20

 «Esclareço que, até ultimamente, as piores  coisas tinham sido disputas com Diana e acessos de ciúmes por deslizes que apenas existiram na minha imaginação.»



Adolfo Bioy Casares. dormir ao sol. Tradução de António Sabler. Editorial Estampa, Lisboa, 1980., p. 20

«Também não nego que várias vezes eu e a minha senhora nos zangámos e que uma noite - receio que toda a viela tenha ouvido o alvoroço -,  pensando a sério ir-me embora, desarvorei até Los Incas, à espera do autocarro, que por sorte tardou e me deu tempo para reconsiderar. Provavelmente muitos casais conhecem semelhantes aflições. É a vida moderna, a velocidade. Posso é dizer-lhe que a nós os azedumes e as diferenças não chegaram para separar-nos.»



Adolfo Bioy Casares. dormir ao sol. Tradução de António Sabler. Editorial Estampa, Lisboa, 1980., p.12

domingo, 21 de julho de 2013


«ETRA (com malícia) - Vê como falas. Mesmo que isso seja verdade, é uma das verdades que nunca se declaram. Não podia viver-se num mundo em que as palavras não passassem primeiro pelo crivo do bom senso.»


Hélia Correia. O Rancor. Exercício sobre Helena. Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2000., p. 55

Somente as inocentes enlouquecem.

« HELENA (insistindo) - Veio agarrado a mim todo este sangue, escorreu-me pelas pernas à medida que eu ia caminhando. Olha ali, olha, a marca de uma sandália minha. Está o meu rasto a sangue em toda a parte.

ETRA - Estás a ver tanto sangue como eu. Helena, pára.  Só estou eu aqui. Já não caio nessa história há muito tempo.

HELENA  (parando, olha para Etra como uma criança) - O sangue está em toda a parte. Em toda a parte. Nunca mais deixa de escorrer por mim abaixo.

ETRA - Ela e as suas grandes atitudes! Imitas muito bem as loucas, querida. Mas não conseguirás enlouquecer. Somente as inocentes enlouquecem. (Tira-lhe o balde com violência)



Hélia Correia. O Rancor. Exercício sobre Helena. Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2000., p. 48
(...) Pirro agride e domina Helena, numa ambiguidade de intenções

PIRRO - O meu pai! O meu pai não é para aqui chamado. Julgas que não se sabe que também ele te desejou que nem um doido?  Tu porque não o aceitaste, tu, que dormiste com todo o cão vadio?

HELENA - Deixa-me. Que queres tu? Fazer-me medo? Se é o medo que tu amas, nunca, mas nunca, ouviste? o verás  nos meus olhos.»



Hélia Correia. O Rancor. Exercício sobre Helena. Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2000., p. 46

pau-mandado

« HELENA (rindo) - Que bebedeira, que exagero, ó deuses! A falta que lhe fez a mão da mãe assente a tempo próprio no focinho.»


Hélia Correia. O Rancor. Exercício sobre Helena. Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2000., p. 38

displicência


nome feminino

1. estado de quem se acha triste ou aborrecido
2. desprazer; desgosto
3. tédio; sensaboria
4. indiferença
5. indolência

(Do latim displicentĭa-, «desprazer; desgosto»)

pasmaceira

por dá cá aquela palha

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