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sábado, 30 de janeiro de 2021

MOÇAMBIQUICIDA

Das incursões bem sucedidas aos povoados
sobressaem na paisagem as patrícias
sacarinas capulanas de fumaça
e uma fervura de cinco
tabuadas e uns onze
- ou talvez só dez -
cadernos e um giz
espólio das escolas destruídas.


Sobrevivos moçambiquicidas
imolam-se mesclados
no infuturo.

José Craveirinha

REZA, MARIA

Suam no trabalho as curvadas bestas
e não são bestas
são homens, Maria!

Corre-se a pontapés os cães na fome dos ossos
e não são cães
são seres humanos, Maria!

Feras matam velhos, mulheres e crianças
e não são feras, são homens
e os velhos, as mulheres e as crianças
são os nossos pais
nossas irmãs e nossos filhos, Maria!

Crias morrem á míngua de pão
vermes na rua estendem a mão a caridade
e nem crias nem vermes são
mas aleijados meninos sem casa, Maria!

Do ódio e da guerra dos homens
das mães e das filhas violadas
das crianças mortas de anemia
e de todos os que apodrecem nos calabouços
cresce no mundo o girassol da esperança

Ah! Maria
põe as mãos e reza.
Pelos homens todos
e negros de toda a parte
põe as mãos
e reza, Maria!

José Craveirinha

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

A MÃO NO ARADO

Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará

Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição
É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se concede às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua

É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solitário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã

Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente

Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente.

Poema Ruy Belo

sábado, 13 de junho de 2020

A noite abre meus olhos

Caminhei sempre para ti sobre o mar encrespado
na constelação onde os tremoceiros estendem
rondas de aço e charcos
no seu extremo azulado

Ferrugens cintilam no mundo,
atravessei a corrente
unicamente às escuras
construí minha casa na duração
de obscuras línguas de fogo, de lianas, de líquenes

A aurora para a qual todos se voltam
leva meu barco da porta entreaberta

o amor é uma noite a que se chega só

domingo, 10 de maio de 2020

«(...) Caliça que não se cumpre, al-
voroço da espera. As portas também
esperam algo, como as pessoas. Desvi-
os. Próximos, e a recusa da ausência:
alluvione, registro, excesso, esteira do
tempo. No fim de tudo há amor? Mas,
ele, amor, retorcido, nega-se.»

Inimigo Rumor. Manuel Ricardo de Lima. Livros Cotovia., p. 101

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Três poemas de Carlos Bessa

Linha do horizonte
 
Crescer, sair de casa
para os fantasmas da rua e
envelhecer, na tortura
da meteorologia. Do que muda.
 
O medo, qual linha contínua,
porque a infância, os sonhos,
o peso da genealogia.
 
Dores e rugas, ruas e mais ruas,
com os seus becos e paredes sujas.
O medo sempre, essa moldura.
 
O medo de demolir, o medo do novo,
de não estar à altura.
O medo da tradição e do ridículo.
 
E mesmo assim querer. Querer muito.
Um lugar no tempo,
um quinhão do negócio,
um lugar na comitiva.

*

Religião
 
Às vezes o ódio, algodão doce,
os pequenos tons.
O nojo em todo o seu esplendor.
 
A tradição de passar por baixo,
porque há um código de bem servir,
porque o vazio tem o dom de encher.
 
Dizem, és sábio. E sorriem,
como é próprio do reconhecimento
entre lobos.
 
Os nomes são apenas isso, operações,
maneiras de transformar o medo,
de conduzir os rebanhos.
 
Todos os impérios se servem do mesmo.
Todos soçobram com estrondo.
Apêndices, adereços, notas de rodapé.

*

Dissimulação
 
A dor tem capítulos, muitos. Um cúmulo eloquente,
sonoro. Durante.
Dá nas vistas? Sim e não,
porque alcança, porque se perde.
E permanece, precisa de provar o arrependimento,
precisa de louvar a festa.
A dor, contraditória, elegante.
Persistente.

segunda-feira, 30 de março de 2020

"Queima a tua língua.
Bebe o sal que lavre
a tua garganta
as ervas que cresceram
desde o último nome
e fala. Agora que não consegues
fala
com um silêncio que desperte o mundo."

Ada Salas em O lugar da derrota e ilustração de Sara Belo

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

O deserto inominável


O deserto é um silêncio depois do mar,
é o êxtase da luz sobre o coração da areia.
Vai-se e volta-se e nada se esquece.
Tudo se oculta para depois se dar e se ver
no ponto em que os ventos se cruzam
e as almas gritam no fundo dos poços.
Os cestos sobem e descem prometendo água,
uma frescura que derrete a febre.
Não são as tâmaras que adoçam a boca,
é a beleza das mulheres dissimulando
o desejo como um pecado sob a escuridão dos véus.
As serpentes assobiam ou cantam
conforme o veneno que lhes molda o sangue.
Enroscam-se sobre as pedras
como fragmentos de lua à espera da manhã.
E a sombra alonga-se nas dunas
ondulando rente às palmeiras
como a última cobra do medo das crianças.
Não há ruído maior que este silêncio
que se serve com tâmaras e com chá
na mesa rasteira, sobre a terra molhada.
É no que não se nomeia que está o infinito.


José Jorge Letria. Os Mares Interiores. Editorial Teorema, Lisboa, 2001., p. 66

Sobre a natureza humana

Ao filho expulso do círculo da virtude
não se pede nem clemência nem pureza.
Deixa-se que o tempo lavre e molde,
que as águas passem e deixem, residual,
um sedimento de areia fina,
quase uma promessa de ouro
sobre o lenço de linho, sem mácula.
Ao filho que chora aos pés do trono
não se dá piedade nem ternura.
Deixa-se que o poder, entronizando-o,
o alivie das terrenas mágoas
que tornam um homem igual
aos outros homens quando sofrem.
Tudo isto está escrito nas linhas e nas telas
para que a natureza humana, sinuosa,
não seja, pelo esquecimento burilada,
apenas um cesto de romãs na cesta dos eternos retornos.

José Jorge Letria. Os Mares Interiores. Editorial Teorema, Lisboa, 2001., p. 36
«Eu nunca tive medo dos cães, juro,
nem mesmo quando as papoilas
salpicavam de sangue as toalhas
em que se deita a Primavera.»


José Jorge Letria. Os Mares Interiores. Editorial Teorema, Lisboa, 2001., p. 34

domingo, 5 de janeiro de 2020

A dádiva de outra paixão

A ferida tem o seu tempo, a sua febre,
a existência líquida e ardente do que é excessivo,
do que cresce com a carne, martirizando-a.
Há feridas comovidas como esta, que se abrem
e se fecham com a dor lá dentro
para que ninguém possa devassá-las.
Há as feridas da melancolia
e as do músculo seccionado pelo gume
de uma raiva mitigada e ancestral.
Nem só os animais lambem as chagas
para as pôr ao abrigo do pó e do vento.
Também os cavaleiros de coisa nenhuma
lambem o coração retalhado na peleja
à espera que o afago da brisa
lhes traga a dádiva de outra paixão.


José Jorge Letria. Os Mares Interiores. Editorial Teorema, Lisboa, 2001., p. 33

Tudo são hipóteses


É redonda a dor como as cobras
que desafiam a surdez das casas
onde os mortos dão as mãos
para congeminarem o regresso à vida.
Tudo são hipóteses. Dançam em roda
abocanhando as rosas, devorando
a placenta matinal dos partos, partindo.
Tudo se renova, até o mundo.
E há um poderio fatal que se ergue 
dos cânticos e dos espelhos, em espiral, 
das sarças queimadas e das preces,
e há um cavalo decapitado relinchado 
no terreiro dos medos ancestrais, fatais,
enquanto as carpideiras choram
o destino ultrajante dos meninos
que perderam a fé na cama da heroína,
misturando o pó e o sangue
sobre os mapas do desespero dos crentes.
Tudo são hipóteses. Até a vida.


José Jorge Letria. Os Mares Interiores. Editorial Teorema, Lisboa, 2001., p. 22

''Mariposas exaustas com a violência da luz.''


José Jorge Letria. Os Mares Interiores. Editorial Teorema, Lisboa, 2001., p. 21
«As mulheres oferecem-se ao tacto
em bandejas de lua, sem alento.»

José Jorge Letria. Os Mares Interiores. Editorial Teorema, Lisboa, 2001., p. 19

sábado, 4 de janeiro de 2020

«Perde um anzol na boca das cores
e um fio de horizonte no cansaço dos olhos.»

José Jorge Letria. Os Mares Interiores. Editorial Teorema, Lisboa, 2001., p. 13

Sem nunca avisar que chego

Poiso na tua casa como as gaivotas brancas,
com restos de comida e farrapos de sonho,
sem nunca avisar que chego, intruso quase,
sem nunca anunciar que parto, herege sempre,
sem nunca te dizer quanto te quero, imperfeito.
Doem-me as feridas onde me dói a alma,
no mesmo círculo de pele calcinada
por soporíferos, querelas e adagas. Tanta dor.
Fica um aroma de jasmim nas roupas,
um hálito de espuma nos lábios
que soletram as canções antigas. Lembras-te?
Cruzámos o destino das casas na esquina
sem sol de uma mesma rua, nómadas,
mangas arregaçadas para descobrir ouro
nas caves, no cimento das fundações.
O ouro do amor perdido, entenda-se.
Passa-se tanto tempo à espera
que um poema resuma um projecto,
uma existência sonegada à feira dos olhares.
Toco-te à porta e sei que estás, afortunado,
como a pedra altaneira que amansa e acolhe
a fúria passageira do mar. Vou amarelecendo 
com a idade nos retratos e nas histórias.
Tu bem sabes que o tempo, sempre o tempo,
só é inclemente e severo se nós deixarmos.


José Jorge Letria.
Os Mares Interiores. Editorial Teorema, Lisboa, 2001., p. 11
«Acorrerei sem dor ao teu chamamento,
quando a última lua iluminar, ao crepúsculo,
o cesto dos alperces no terreiro da casa.»

José Jorge Letria. Os Mares Interiores. Editorial Teorema, Lisboa, 2001., p. 11

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020


« Na infância, no assim denominado tempo de estudante; sim, ainda nos anos dos amores precoces: muito especialmente então. Durante uma Missa do Galo, a criança encontrava-se assentada entre os seus, na igreja da sua terra apinhada de gente, ofuscante luz, ressoando com os bem conhecidos cantos de Natal, envolta em oradores de panos e de cera, e foi acometida pela fadiga, com o ímpeto de uma moléstia.»


Peter Handke. Para uma Abordagem da Fadiga. Tradução de Isabel de Almeida e Sousa. Difel, Lisboa, 1989., p. 9

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019


« No ar sobe o fogo.
Jardim depois da trovoada. Árvores à beira da 
água.»

João Miguel Fernandes JorgeO Roubador de Água. Assírio & Alvim, Lisboa. 1981., p. 120

Cum vero reversus esset


(...)

«Cum vero reversus esset.
Fiquemos por aqui.
Pela parte do demónio.»

João Miguel Fernandes JorgeO Roubador de Água. Assírio & Alvim, Lisboa. 1981., p. 110
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