quarta-feira, 8 de janeiro de 2020
O deserto inominável
O deserto é um silêncio depois do mar,
é o êxtase da luz sobre o coração da areia.
Vai-se e volta-se e nada se esquece.
Tudo se oculta para depois se dar e se ver
no ponto em que os ventos se cruzam
e as almas gritam no fundo dos poços.
Os cestos sobem e descem prometendo água,
uma frescura que derrete a febre.
Não são as tâmaras que adoçam a boca,
é a beleza das mulheres dissimulando
o desejo como um pecado sob a escuridão dos véus.
As serpentes assobiam ou cantam
conforme o veneno que lhes molda o sangue.
Enroscam-se sobre as pedras
como fragmentos de lua à espera da manhã.
E a sombra alonga-se nas dunas
ondulando rente às palmeiras
como a última cobra do medo das crianças.
Não há ruído maior que este silêncio
que se serve com tâmaras e com chá
na mesa rasteira, sobre a terra molhada.
É no que não se nomeia que está o infinito.
José Jorge Letria. Os Mares Interiores. Editorial Teorema, Lisboa, 2001., p. 66
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