domingo, 10 de novembro de 2024

A CASA ONDE ÀS VEZES REGRESSO

 Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração


José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 83

O amor que as águas não podem apagar.

 verso Daniel Faria

sábado, 9 de novembro de 2024

“As pessoas que não fumam deviam ser cinzeiros”

curta-metragem de Pablo Roso, “Alqueive” (2023)

 « Quando acabámos de comer lavei os pratos, apaguei as velas às santas porque nunca se deve deixar nada perigoso ao alcance de um santo e subi para o quarto. A velha já dormia com aqueles seus roncos semelhantes aos de um cão cansado. A minha roupa estava espalhada pelo chão do quarto, apanhei-a toda excepto a que via sair debaixo da cama porque quando caímos uma vez numa armadilha não é culpa nossa mas se caímos quatro ou cinco vezes sim, precisei de algum tempo para aprender isto mas agora já cumpro esta máxima.»

Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p.19

 «Na cozinha a velha tinha preparado a mesa. Sobre a toalha de plástico havia três pratos, três copos e três nacos de pão. Pus um prato para a tua mãe porque a sinto inquieta, disse a velha. Não me lembro da minha mãe. A minha avó mostrou-me as fotografias centenas de vezes, tira-as da caixa de bolachas onde as guarda sempre que a pena ou o rancor, que nesta casa são uma e a mesma coisa, lhe formam um nó na garganta.»

Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p.18


 

« 1.º JOVEM - Não é possível: enquanto uns dormem outros estão acordados. Enquanto uns vivem outros já estão mortos.»

José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 126

''petiza em camisa de dormir cor-de-rosa''


José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 114

Perdão é um sentimento. E tu mataste em mim todos os sentimentos para contigo, os bons e os maus.

 « - A MULHER - Falas sem perdão.
      O HOMEM - Perdão só vale nas contas pequenas, de pessoa a pessoa. Na grande conta, além das pessoas há também o destino, e o destino tem prazos improrrogáveis, irrecomeçáveis, onde os sentimentos não se gastam mas podem morrer em vida das pessoas. Perdão é um sentimento. E tu mataste em mim todos os sentimentos para contigo, os bons e os maus.»

José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 114

El Amor brujo: Quadre Primer: Cancíon del amor dolido

 


Emma Summerton, Vogue. Natalie Portman

 « SEREIA - Nunca estás contente. Rastaparta!

 MARINHEIRO - Se não queres há mais madamas.»


José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 92

 « O que eu buscava e tu mo inspiraste não foram contas hereditárias que não se saldam, animais conflitos milenários que impedem fêmea e macho de serem mulher e homem. Fiquei logo isento de lutas de sexo. Tu, mulher, não reconheces o sentimento que tu mesma me inspiraste. Assombra-te o sentimento que em mim inspiraste. Tu que tinhas para o mundo uma altura que não sabes ter para a vida! Eu deixo-te passar e eu estou-te reconhecido, mulher. Tu deste-te e não te tive, mas deixaste-me inteiro o que eu buscava.»

José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 89

inação

 « Só estás presente quando não te chamam. Estavas ausente quando eu me dava a ti. Escrevias números na Lua. Sim. Ausente. Estavas ausente quando me despedia de ti. Como um desconhecido, como um estranho, deixaste-me ir embora. Deixaste que eu te fugisse. Consentiste que eu te deixasse. Estavas ausente nos dois momentos mais decisivos da vida: quando eu me dava e quando eu te fugia. Deixa-me passar!»

José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 87/8


Sue Barnes, 'Untitled' (Bath Series 27), c1976

 

Deixei-te livre. Sem sentimentos póstumos.

 « Nunca te mandei fantasmas com recados que assustam. Deixei-te livre. Sem sentimentos póstumos.»

José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 87

 « ELE - Tu matas e não deixas morrer. Matar é ficar satisfeito. Tu queres que viva a tua ideia porque me matas. Tu queres morto o que não serviu a tua ideia. Ideia e o que não serviu ficaram emaranhados no teu caminho. Deixa morrer o que não serviu. Se fores capaz.»

ELA - (Mostrando-lhe as costas da mão esquerda.) Já não espero ninguém.»

José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 85

desavinda

«Em amor não há senão vassalos.»

José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 73

 « ELE - Verás: serei vingado. A vingança será para sempre o teu novo amor. Quando vier não o destrinçarás do amor que mataste. Queres singular e encontrarás plural. Sempre meio vivo e meio morto, nada que satisfaça. Tu mesma capaste em tia a tua perfectibilidade. Castrada de amor, não de sexo. A ânsia de amor não morrerá em ti, e em ti o amor ficará sempre adiado.»

José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 72/3

Como eu me dava no primeiro dia nunca foi igual depois.

 «Como eu me dava no primeiro dia nunca foi igual depois. Deixas-me igual em sítio nenhum. Os nossos destinos não eram com o outro.»

José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 72

 «ELA - Se no primeiro dia não fui logo tua foi porque estavas ausente.»

José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 72


Michael Druks,' Off-On', 1973

Um de nós morreu. Um de nós morreu para o outro. Escolhe: eu ou tu.

 « ELE - Peço-te.
ELA - (Voz sereníssima.) Sentinela à vista.
ELE - Já sei. Acabou-se tudo. Mas espera.
ELA - Que mais há depois do fim?
ELE - Não sei qual seja a minha cobardia: se deva deixar-te, se deva matar-te!
ELA - É o único que ainda poderás de mim: matares-me. Precisamente o contrário do que de mim queiras. Querias-me para a vida. Para sempre: na vida e na morte. Ter-me-ás  para sempre apenas na morte. Não era deste modo que também me querias na morte. É tudo quanto ainda podes de mim. E este final será tudo e o único que houve entre nós.
(A criada desce a escada e sai por onde veio a primeira vez. A mulher senta-se outra vez. Ele também.)
ELE - Um de nós morreu. Um de nós morreu para o outro.
Escolhe: eu ou tu. Se me matas, já estava morto para mim. É um estranho quem me mata. Um desconhecido. Um intruso. Um morto que me tira a vida.
(Pausa.)
ELA - Dois desconhecidos podem frente  afrente ficar encontrados um primeiro dia. Nós não: mesmo frente a frente não há encontro possível.
ELE - Não há já encontro possível, nem comigo nem com ninguém. É a ti que a minha intransigência não deixará viver. Ficarás eternamente sozinha com todos, pública e in-ti-ma-men-te!
(Ela levanta-se bruscamente. Ele também.)
ELA - O que seja. O que for será. Se acaso passa por ti o meu destino, ponto final. A tua parte cumpriu-se. Como gente que sou, tenho direito a recusar acasos que não desejo.
(Dando passos atrás para se lhe dirigir melhor.)
ELA - Sou eu mesmo a surpreendida: primeiro desmaiei. Ignorava tanto da minha fragilidade. Foi-se-me a luz quando nada tinha que iluminar. E, ao despertar, o sangue corria à vontade por minhas veias e artérias.»


José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 70/71

Por onde é que se sai deste inferno?

 « A MULHER VESTIDA DE NOIVA - (Às companheiras.) Por onde é que se sai deste inferno? (As companheiras rodeiam-na e vão levando-a pelo fundo.)


José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 68

deslegitimar

cubro-me de flores aziagas de remorsos brandos

 « Sento-me agora aos pés do seu túmulo
cubro-me de flores aziagas de remorsos brandos »


José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 58

Asclépio

 na mitologia grega e na mitologia romana, é o deus da medicina e da cura.

lamacento

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Ahoo Daryaei | Iranian woman

 Ahoo Daryaei is a young Iranian woman who protested by walking in public in Iran wearing only her bra and panties.[1] She displayed her defiance of compulsory hijab in front of Tehran's Islamic Azad University.[2] The university has confirmed her detention. She is currently (as of November 2024) in jail in the Islamic Republic.




Meditação do Duque de Gândia



Nunca mais
A tua face será pura limpa e viva
Nem o teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.


Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.


Nunca mais amarei quem não possa viver
Sempre,
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória, a luz e o brilho do teu ser,
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência,
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.


Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
Nunca mais te darei o tempo puro
Que em dias demorados eu teci
Pois o tempo já não regressa a ti
E assim eu não regresso e não procuro
O deus que sem esperança te pedi.




sábado, 26 de outubro de 2024

''Quando não se sabe fazer uma coisa ao natural, aprende-se a fazer com técnica.»

 

José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 65
« ELA - Porque a mulher disse com os seus botões: afinal não sou só eu a curiosa.
ELE - Quem chamou o outro? O homem ou a mulher?
ELA - O acaso não traz nada de seu: encontra a cada um como está.
ELE - O homem e a mulher andavam acaso à procura um do outro?
ELA - A resposta vem  no fim.
ELE - E começa por a mulher ter sorrido para ela mesma.
ELA - Por acaso sorri-me. Mas a história já tinha começado.
ELE - Para o homem a história começou no sorriso.
ELA - Estava atrasado.»

José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 57


                                                                   Among the Daffodils
Nell Dorr (1893-1988)

Arvo Pärt : Silentium

 recolhida ave nocturna
assim o seu coração
se ocultava do dia

José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 53

''altas fogueiras diziam a desolação''

José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 53

 « e às vezes é aterrador
esse fundo de deserto»

José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 51

Dragoeiro

COISAS DA TRISTEZA

José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 48

 « só existe 
um pecado imperdoável.
A crueldade premeditada.»

Truman Capote

 Se fechar meus braços outro os abrirá
no escuro da roda as orações são perpétuas
os vagabundos coroam até a pequena irmã
que na sua loucura
incessante procura o poço da quinta

José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 42



Among the Daffodils #6
Nell Dorr (1893-1988)
 A mão preferida pelo silêncio
folheia o livro dos incêndios
torna-se irremediavelmente suja
sobre o muro traça os vincos
os primeiros versos

José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 40

OS INCÊNDIOS

 Não devidas empurrar fogo tão solitário
sob os umbrais de uma morada
nos carreiros que vão dar aos montes
sairás ainda em súplica
quando os incêndios ignorarem a ameaça
da tua vassoura de giestas

a sombra uma vez avulsa
não retorna a mesma

não despertes o que não podes calar

José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 39

O amor separar-nos-á

 Diz-me se 
toda a imagem é engano


José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 16

 

Diz-me apenas 
a altura das searas
perto do rio
se o vento tornou
a encher de folhas
o pátio da casa
verde

 José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 15

'' o florir lento dos antúrios''

 José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 13

 Nesse tempo
ainda era possível
encontrar Deus 
pelos baldios


José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 10


Alfredo Cunha, Bragança,1988

 

 “Um país ideal, não possível, é-o. Ou seja, para se ser português no país que, a partir das ruínas da fantasia de um outro e daquele que há de vir, tento inventar, basta ser-se”

Manuel Fúria

mortificação

Amor Fúria

 editora discográfica 

Manuel Fúria

Cruz Vermelha Sobre Fundo Branco

 Manuel Fúria é um músico e compositor português

sexta-feira, 25 de outubro de 2024




Among the Daffodils #3
Nell Dorr (1893-1988)

I See a Darkness

« ELE - Somos maus juízes dos nossos casos e acasos.»

José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 56

 « ELA - Esta sou eu: a que teve a alegria de poder consentir-te. A que tinha medo, medo de estar sozinha e sem consentir dar-se a ninguém. A que te dei foi a única com quem se vive e se sonha alto. Para sempre. Eu não me enganei. Tu, sim.»


José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 48

 « ELA - Se consinto, não me querem. Se não consinto, querem-me. Consenti. Dei-me. Estou dada. Dada a quem não me recebe. Para onde querem que eu vá fugindo de mim sozinha? Tu consentiste que eu te quisesse. Não te prendas comigo. Segue o teu caminho. Só te peço não me digas palavras que te mintam. »

José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 47

 « ELA - Mas tu dizes sempre a mesma coisa. Sempre, sempre, sempre a mesma coisa.»


José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 47

 

Among the Daffodils #2
Nell Dorr (1893-1988)

Merce Lemon - The Moon is Calling the Shots

«VAMPA  - Sou uma para cada pessoa.
FREGUÊS - Para mim serás a minha.
VAMPA - A tua?
FREQUÊS - Sim. Ouve. Tenho um segredo para te contar: tenho uma corda.
VAMPA - Uma corda?
FREGUÊS - Uma corda feita por mim.
VAMPA - Feita por ti?
FREGUÊS - Fi-la eu para ti.
VAMPA - Para mim?
FREGUÊS - Eu passo a corda pela tua cintura.
VAMPA - Pela minha cintura?
FREGUÊS - Dou um nó.
VAMPA - Um nó.
FREGUÊS - E tu ficas minha.
VAMPA - Tua?
FREGUÊS - Sim.
VAMPA - E se eu desatar o nó?
FREGUÊS - Se o desatares não és minha.
VAMPA - (Com a mão em pistola contra ele.) E não me matas?
FREGUÊS - Não é preciso. É muito pior do que matar.
VAMPA - Pior do que matar?
FREGUÊS - Sim.
VAMPA - O que será?
FREGUÊS - É nem vida nem morte.»

 

José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 42/3

 «A Vampa que fala em público não é a mesma com um particular. O seu tique pessoal, quando fala a uma só pessoa, é confidencial, amaneirado à fadista, dando a cada palavra importância que por vezes não tem.»

José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 41

«Dizem que deixou de ser mulher. Tiraram-lhe tudo, tudo, tudo. Vazia como casca d'ostra.»


José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 39

Merce Lemon - Will You Do Me A Kindness


 

´´panelas da matança''

  Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p 17

'' é sempre melhor que sintam medo do que tenham pena de nós''

  Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p 17

''não há justiça sem morte e não há morte sem penitência.''

 Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p 17

   « Na cozinha a velha tinha acendido o lume para lhe pedir qualquer coisa. Alimentava o fogo com ervas daninhas secas com caruma com papéis velhos. Tudo em pedacinhos para que o lume não ficasse guloso. Observava-o e sussurrava-lhe coisas. As rezas caíam-lhe dos dentes sem que eu as ouvisse mas eu sabia que ela pedia a Santa Bárbara decapitada pelo pai no cimo de uma montanha a Santa Cecília banhada em água a ferver a Santa Maria Goretti assassinada quando a tentavam violar a todas as santinhas mortas pelas mãos de homens raivosos.»

Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p.16

ramerrame

Hollis Howard - Crickets


Sveta Kaverina, I am the Sea


 

 «Diziam que tinham visto a velha a cavar no cemitério à procura de ossos, a falar com os mortos quando não havia mais ninguém em casa.»

Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p.15

 «E a minha avó deixou de rezar porque quem quereria que quatro louva-a-deus com enormes olhos e pinças na boca lhe surgissem na cama da filha? Agora rezamos a eles porque temos medo que trepem para o telhado e enfiem as antenas e as patas compridas pela chaminé.»

Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p.9

 «Nesta casa não se herda dinheiro nem anéis de ouro nem lençóis bordados com iniciais, aqui os mortos deixam-nos camas e rancores.»

Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p 8

 Ler à sombra.

Ler assombra.


Filipa Leal, ADRENALINA, Assírio&Alvim.

 «Aqui caem-nos os dentes e o cabelo e as carnes e, se não tivermos cuidado, damos por nós a arrastar-nos de um lado para o outro ou prostradas na cama para nunca mais nos levantarmos.»

Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p 7

 O meu coração desce,
Um balão apagado...
-Melhor fora que ardesse,
Nas trevas, incendiado.

Camilo Pessanha, in Clepsidra, ed. Ática.

Zaho de Sagazan - Dis-moi que tu m'aimes

terça-feira, 15 de outubro de 2024


 

 «- Mas estas coisas do amor não são equilibradas nem simétricas como o pretendem determinados tratadistas. Tanto assim é que a mulher sabe perfeitamente melhor o efeito que produz nos homens do que o homem nas mulheres. Porquê? Parece tão parva a pergunta como o de querer saber a razão de ser a mulher mais fraca do que o homem. É assim, e pronto! De modo que, conclusão: aquele que souber melhor o efeito que produz nos outros leva de facto esta vantagem sobre os outros.»

José Almada Negreiros. Nome de Guerra. Livros RTP. Editorial Verbo. p. 55

 XXI

NÃO SABENDO BEM POR ONDE ANDA A REALIDADE,

O PROTAGONISTA COMEÇA A FAZER FOTOGRAFIAS

COM A IMAGINAÇÃO


José Almada Negreiros. Nome de Guerra. Livros RTP. Editorial Verbo. p. 50

O sono para ela era cair fulminada pelo excesso e pela fadiga.

 « A vida para ela era uma luta constante, ofensiva e defensiva, sem tréguas, sem repouso mais do que no dormir. E os seus próprios sonos não eram um repouso, a agitação continuava como se fosse o seu estado normal, como se fosse o próprio bater do coração em sinal de vida. O sono para ela era cair fulminada pelo excesso e pela fadiga. Apenas acordava, tudo lhe era hostil em redor. Os móveis do quarto, o vestido que despira ao deitar e que ficara metade no chão e metade na cadeira. os sapatos distantes um do outro, o chapéu na maçaneta da cama, as recordações da véspera, o sol a querer por força entrar pelas frinchas, o movimento da cidade que se ouvia lá fora, o dinheiro espalhado no mármore do toilette, o estômago, a bronquite, tudo, tudo contra ela, tudo lhe gritava, a uma, a mesma palavra: Guerra!»

 José Almada Negreiros. Nome de Guerra. Livros RTP. Editorial Verbo. p. 48


 

Toward Water

« O Antunes reconhecia que a sua imaginação estava doente. Esta doença era a falta da companheira da sua vida. Era o que lhe dizia hoje a realidade.
 O Antunes decidia fazer convergir todos os seus passos num único fito: a escolha da sua companheira. O motivo desta resolução estava na lembrança do que era a sua vida ultimamente, sem progresso, sem explicação, parada, inútil, nula. A causa desta estagnação era a falta de uma companheira.»


 José Almada Negreiros. Nome de Guerra. Livros RTP. Editorial Verbo. p. 38/9

 XV

CADA QUAL VÊ EVA PELA PRIMEIRA VEZ


«- Ó filho! Já me tiraram o medo há muito tempo!

Esta frase continha para o Antunes uma significação: perder o medo era ganhar o conhecimento da vida.»


José Almada Negreiros. Nome de Guerra. Livros RTP. Editorial Verbo. p. 38

 «Quem pensa sozinho não quer senão a verdade, as justificações são por causa dos outros.»


José Almada Negreiros. Nome de Guerra. Livros RTP. Editorial Verbo. p. 34

Totalitarismo


 The Wishing Tree (1976)
Director: Tengiz Abuladze

“A hora dos zorzais”



"Dá à tua tristeza todo o espaço e abrigo que é devido, pois se todos suportarem a sua tristeza com honestidade e coragem, a tristeza que agora enche o mundo diminuirá.”

Etty Hillesum


Visito os amigos mortos,
Pensando que indo, estão vivos.
Entre a penumbra dos quadros,
Andam eles em sorrisos.
Pronuncio a frase antiga,
E dou comigo sozinha.
Oiço então o dia exacto,
Da estridente campainha.
Volto a casa, fecho o som,
Por dentro da persiana.
E então os retratos andam,
Á volta da minha cama.



Natércia Freire

«Sem lápides, sem chumbo, sem jazigo; | caixão de tábuas, derradeira casa, | onde repousarei, frágil abrigo, | até me libertar num golpe de asa. || Então, quando estiver a sós comigo, | que ninguém chore porque o choro atrasa, | mas que alguém, se quiser, num gesto amigo, | ponha roseiras sobre a campa rasa. || Será medo o que sinto? Não é medo. | Serei, não serei digna do Segredo? | Ah, meu Deus, para lá das nebulosas, || Mereça ou não a expiação, a dor, | entrego-Te a minha alma sem temor. | O que resta, o que sobrar, é para as rosas.»


Fernanda de Castro, «Testamento», em "70 Anos de Poesia", 1989.


 

Fernanda de Castro, no livro, "África Raiz" (1966):

 

África, no teu corpo rugem feras, uivam fomes e medos ancestrais, no teu sangue há marés, na tua pele há dardos e punhais.

Ventre de Continentes, és mater e matriz.

Ásia é semente, Europa é flor, outros serão essência ou tronco, tu, África, és raiz.

[...]


O África dos dias incendiados, o veneno do sol que te envenena é que te faz assim, bárbara, impura, sanguinária e morena.

Mas tão pura, tão cândida também!

Ó África madrasta, África Mãe! [pp. 9, 99]



«Na Primavera, a Árvore era um ninho de folhas palpitantes como pequenas asas verdes. No Estio, cobria-se de flores, cada ramo era um jardim suspenso. Vinha depois o Outono, as flores mortas eram leitos de pássaros. E as folhas partiam, esvoaçando, tal borboletas de oiro. Por fim, o Inverno; em vez de folhas, braços nus, troncos mortos, desolada solidão.

Mas um dia...

Um dia, a Primavera voltou com as suas folhas palpitantes como pequenas asas verdes. O Estio, com as suas flores, os seus jardins suspensos. O Outono, com os seus pomos e as borboletas de oiro das suas folhas a dançar ao vento.
O Inverno, com os seus musgos, seus descarnados braços nus.

Mas a Árvore, a bela Árvore, era sempre a mesma, na sua ilimitada confiança. Foi então que aprendi, da Árvore, a lição: A vida é uma longa paciência e uma longa esperança.»

Fernanda de Castro, em Asa no Espaço, Edições Ática, 1.ª edição, 1955

país de musas sorumbáticas e de poetas tristes

«…Ela foi a primeira, neste país de musas sorumbáticas e de poetas tristes, a demonstrar que o riso e a alegria também são formas de inspiração, que uma gargalhada pode estalar no tecido de um poema, que o Sol ao meio-dia, olhado de frente, não é um motivo menos nobre do que a Lua à meia noite. Mas foi igualmente uma das primeiras a saber saltar, dentro da mesma estrofe e quase sem transição, do riso para as lágrimas e das lágrimas para o riso, de uma manhã de sol para uma tarde de chuva, de uma atmosfera de sombra para uma exclamação de euforia, de um traço de caricatura para um tom de aguarela, de um «allegro» para um «addagio». Ela foi ainda a primeira que soube ver Lisboa num pé de igualdade, de mulher para mulher, sem demasiados rigores nem exageradas complacências; e a primeira também que soube entender até ao âmago, até à raiz, a alma secreta do continente africano. Ela foi tudo isso e continua a ser tudo isso: aqui, justamente, é que está o milagre!»

David Mourão-Ferreira sobre Fernanda de Castro

Cinerária marítima

«Não poderei dizer quantas vezes abracei e beijei os troncos das árvores. As flores, não tinha a mais pequena dúvida, desabrochavam para mim, e se o espinho de uma rosa me picava, achava sinceramente que a culpa não era do espinho, que a culpa era minha por ter colhido a rosa.»

Fernanda de Castro. "Ao Fim da Memória", 1987
 Não esqueças sobretudo a armadura
da noite,
a aspereza das estrelas
quando os olhos são recentes
e a gravitação é um poder
sucinto nas mãos.

Não esqueças sobretudo como os cereais 
lavram os campos estafados, destilam
prodígio pelos sulcos da memória,
oferecem-te uma vida maior
em troca do sal
das pálpebras.

Não esqueças sobretudo de olhar devagar.


Vasco Gato, ''IMO'' no livro ''Contra Mim Falo''/Poesia Reunida (ed.Imprensa Nacional - Casa da Moeda).

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Tomberlin - unsaid


"Non dite che siamo pochi (“Do Not Say We Are Few”), Umberto Coa
 

Sou invisível | Janet Frame

Sou invisível.
Sempre fui invisível
como a pobreza num país rico,
como os ricos nos seus quartos escondidos nas suas casas com muitos quartos,
como as pulgas, os piolhos, como o que cresce debaixo da terra,
os mundos para além do céu, o vento, o tempo, as ideias -
o catálogo da invisibilidade é inesgotável
e, dizem, não é boa poesia.


Como as decisões.
Como qualquer outro lugar.
Como as instituições afastadas da estrada que se chama Scenic Drive.


Chega de comparações. Sou invisível.
Num mundo cheio de gente com visão binocular feitas as contas faço parte da maioria
enquanto tu e eu caminhamos com a nossa pequena lua crescente visitando a nossa obscuridade pessoal
através de um mundo no qual as decisões de ser ou não ser
são controladas pela luz
assistidas pelas lágrimas e o sonho da desatenção ou a morte.


Sou invisível.
Os amantes atravessam a minha vida para se tocarem,
a chuva que cai sobre mim atravessa-me como sangue sobre a terra.
Nenhuma cabeça me concebe como conhecimento.
Para dizer a verdade,
outorgo liberdade àqueles que dançam.
Assim é. Não há ninguém aqui para observar nem escutar dissimuladamente,


e então aprendo mais do que tenho direito a saber.


(Versão aqui partir do original e da tradução espanhola de Irene Artigas incluída em Sueños de lirios - Antología de poetas locos; selecção de Óscar Ayla; introdução de María Castrejón, Huerga & Fierro, Madrid, 2018, pp. 199-200).

O palhaço


A sua cara está manchada por lágrimas maquilhadas.
Eu e os outros aplaudimo-lo, sabendo
que é de bom tom aprovar quando um palhaço chora
e de mau tom quando o faz uma cara persistentemente
dorida sejam ou não pintadas as suas lágrimas.


Também é de bom tom, entre guerras,
dizer que o ódio é amor e o amor é ódio,
argumentar que tudo é mais complexo do que sonhámos
e depois dizer que não o sonhámos
sempre o soubemos e somos sensatos.


Caro palhaço choroso caro velho infantil
caro assassino gentil caro e inocente culpado
cara simplicidade odeio-vos por causarem que eu finja
que há vários mundos para uma verdade quando
eu sei, eu sei que não há. Pessoas como eu e vocês, meus caros,
que têm mau hálito, que adormecem e de intestinos
ruidosos que controlam a fé
que chegam à casa vazia ou entre a família,
cara família, caro homem solitário no mundo despedaçado de nin-
guém,


será para essa desolação que acumulámos palavras durante tantos
milhões de anos, desde o primeiro, gememos
e olhamos para as estrelas. Oh oh o céu é demasiado amplo para
dormir debaixo!

janet frame
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de josé alberto oliveira
assírio & alvim
2001

domingo, 13 de outubro de 2024

Unhas Negras

 Livro de João da Silva Correia 

Bowery Electric - Passages

Mia Couto, in "Tradutor de Chuvas", 2013

 



''Algumas memórias nunca curam. Em vez de desaparecerem com o passar do tempo, essas memórias se tornam as únicas coisas que sobram quando tudo o mais é desgastado. O mundo escurece, como lâmpadas elétricas apagando uma a uma. Estou ciente de que não sou uma pessoa segura.''

Hang Hang 

''O tempo era uma onda quase cruel por ser tão implacável.''

Han Kang

A Flor Cadáver e outros poemas

Jorge Sousa Braga

''O jornalismo é a arbitragem da política.''

 Humorista Ricardo Araújo Pereira

ferida narcísica

quinta-feira, 10 de outubro de 2024



Gordes, 1955.
Photo by Willy Ronis



 Demócrito: “A amizade de um único ser humano inteligente é melhor do que a amizade de todos os insensatos.”

“Tenho muitas alegrias através da cor preta. Às vezes, por isso, é como se fosse encarnado.”

Amália Rodrigues

 “Amália” significa em árabe “trabalho de Deus”

malmequeres


“Na brancura da cal o traço azul / Alentejo é a última utopia. // Todas as aves partem para o sul / todas as aves: como a poesia”

 Manuel Alegre.


quarta-feira, 9 de outubro de 2024

terça-feira, 8 de outubro de 2024

 "Para cada um de nós e — em algum momento perdido na vida — anuncia-se uma missão a cumprir? Recuso-me porém a qualquer missão. Não cumpro nada: apenas vivo."

CLARICE LISPECTOR



 ANTÓNIO LOBO ANTUNES, in AS CRÓNICAS (D. Quixote, 2022)

NÃO ENTRES POR ENQUANTO NESSA NOITE ESCURA
Fosse qual fosse a idade que tinhas eras tão nova ainda. Não sei bem o que dizer do teu sorriso porém, quando me olhavas, dava-me ideia de principiar na minha boca e estender-se depois pelas paredes da casa, até iluminar a tua como certos freixos, certas crianças, certas rosas. Ou pássaros. As cotovias por exemplo, em Abrigada, atrás de quem corrias sempre, segura de voar. Tão poucas chaminés, tão poucos telhados então, e tantas árvores na serra, comovidas com o cheiro das giestas, árvores que à noite ladravam como cães, espreitando-te em cada porta, correndo no quintal, escondendo-se do que a lua consentia na grande paz da horta. Nem todas as coisas possuíam um nome nesse tempo: faltavam páginas no dicionário do avô e existia um espaço sem copos no aparador para a sede esquiva do gato. Moravam grandes mistérios nas gavetas: a irmã que não chegaste a conhecer, selos, herbários, lâmpadas fundidas, olhos murchos de cegos que iluminavam o escritório. A estatuazinha de gesso no muro que a cada inverno ia perdendo dedos. O piloto da barra dos Açores de que ouvias falar, enchendo de naufrágios o teu espanto. E de alciões pairando sobre a espuma. O tio José nas Caldas da Rainha com as algibeiras gordas de migalhas para os cisnes do parque, o bigode que impedia a ternura e as palavras. Fosse qual fosse a idade que tinhas eras tão nova ainda: o gosto das amoras depois da chuva sabia sempre a manhã e, às vezes, chegavam cartas de Lisboa e o jornal do meio-dia com as espantosas políticas do mundo, acontecimentos da outra margem da tristeza, palavras cujo sentido ignoravas dado que o vento detinha o exacto tamanho do teu corpo e não consentia qualquer sombra no sangue, qualquer inquietação que desviasse os dedos do caminho do sol. As pedras sim. As ervas sim. E tu de pé, na brancura de março das acácias. Se eu pudesse falar-te. Se as minhas mãos, se a minha voz te tocasse: não me escutas, é ainda demasiado cedo para que saibas que existo. Só conheces o sol e poucas vozes, alguns rumores essenciais, a água, as folhas do ulmeiro às seis da tarde, a volta dos rebanhos confundida com o peso do silêncio do teu pai.
Faltavam no relógio as horas de seres grande. Nunca serias grande mesmo depois dos filhos dado que a cada filho recomeçava a tua vocação de amora sangrando para dentro e os domingos alongavam-te os braços. Pintavas as pálpebras da mesma forma que em pequena acrescentavas pestanas ao desenho do sol. E bochechas. E cabelo. E uma nuvem repleta de cerejas. Por ser assim de facto a íntima verdade: não existe sol sem pestanas nem nuvens sem cerejas. Nuvens com cerejas sim: de qualquer nuvem
(toda a criança o explica e é natural)
podemos retirar o necessário para habitar a terra pelo lado da pele. No outro lado mora o feio baldio do que ignoramos: entulho como pátria, como ossos, como os amargos cadáveres da inveja, tudo aquilo em que nunca tropeçaste, de que nunca adivinhaste, por um momento, o rastro: eras tão nova ainda, serás sempre tão nova mesmo agora que em redor do teu nome é tudo cinza e ninguém se demora junto a ti. Mas agrada-me pensar que continuas a crescer nos limoeiros de outro verão e te debruças em Angola para escutar a terra. Lembras-te? Usavas o cabelo muito curto um vestido de chita e as pessoas paravam para olhar-te: não as vias, tão atenta ao coração da terra, ao lume no capim, à tua filha. E os teus ombros, ao andar, assemelhavam-se aos ombros dos navios.
Assim te foste embora mas não entres, não entres por enquanto nessa noite escura, não nos deixes aqui onde estes cardos até o mar magoam. E as lágrimas, compreendes, espinhos também. A única forma de te ser fiel é costurar a vida, lentamente, do avesso da dor, inventar um peito onde possas deitar-te, cobrir com lenços grandes os espelhos a fim de que nada impeça o teu regresso. Como não quis ver-te partir estarei aqui no dia da chegada. Também eu vim da guerra quando ninguém sabia dos meus passos. Em novembro, de manhã, tão de manhã que os mortos do meu sangue nem sequer tiveram tempo de acordar. Dormiam como dormes.
E cá estão. Fazem parte de ti, de mim, do mundo. De onde tornas a renascer.
Imensamente.
*
“Um texto belo, poético e comovente. A imensa saudade da Zé, sua primeira mulher.”
Nota de Emília Vicente
*
Fotografia: António Lobo Antunes e a mulher, Maria José Xavier da Fonseca e Costa, pais de Maria José Lobo Antunes.
*

 The secret of a full life is to live and relate to others as if they might not be there tomorrow, as if you might not be there tomorrow. It eliminates the vice of procrastination, the sin of postponement, failed communications, failed communions. This thought has made me more and more attentive to all encounters. meetings, introductions, which might contain the seed of depth that might be carelessly overlooked. This feeling has become a rarity, and rarer every day now that we have reached a hastier and more superficial rhythm, now that we believe we are in touch with a greater amount of people, more people, more countries. This is the illusion which might cheat us of being in touch deeply with the one breathing next to us. The dangerous time when mechanical voices, radios, telephones, take the place of human intimacies, and the concept of being in touch with millions brings a greater and greater poverty in intimacy and human vision. ~Anaïs Nin

Book: The Diary of Anaïs Nin

 “I can never read all the books I want; I can never be all the people I want and live all the lives I want. I can never train myself in all the skills I want. And why do I want? I want to live and feel all the shades, tones and variations of mental and physical experience possible in my life. And I am horribly limited.”

― Sylvia Plath, The Unabridged Journals of Sylvia Plath

segunda-feira, 7 de outubro de 2024


                                                   Francesca Woodman, Untitled, New York, 1979-1980

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