o coração
domingo, 10 de novembro de 2024
A CASA ONDE ÀS VEZES REGRESSO
o coração
sábado, 9 de novembro de 2024
« Quando acabámos de comer lavei os pratos, apaguei as velas às santas porque nunca se deve deixar nada perigoso ao alcance de um santo e subi para o quarto. A velha já dormia com aqueles seus roncos semelhantes aos de um cão cansado. A minha roupa estava espalhada pelo chão do quarto, apanhei-a toda excepto a que via sair debaixo da cama porque quando caímos uma vez numa armadilha não é culpa nossa mas se caímos quatro ou cinco vezes sim, precisei de algum tempo para aprender isto mas agora já cumpro esta máxima.»
Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p.19«Na cozinha a velha tinha preparado a mesa. Sobre a toalha de plástico havia três pratos, três copos e três nacos de pão. Pus um prato para a tua mãe porque a sinto inquieta, disse a velha. Não me lembro da minha mãe. A minha avó mostrou-me as fotografias centenas de vezes, tira-as da caixa de bolachas onde as guarda sempre que a pena ou o rancor, que nesta casa são uma e a mesma coisa, lhe formam um nó na garganta.»
Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p.18''petiza em camisa de dormir cor-de-rosa''
Perdão é um sentimento. E tu mataste em mim todos os sentimentos para contigo, os bons e os maus.
O HOMEM - Perdão só vale nas contas pequenas, de pessoa a pessoa. Na grande conta, além das pessoas há também o destino, e o destino tem prazos improrrogáveis, irrecomeçáveis, onde os sentimentos não se gastam mas podem morrer em vida das pessoas. Perdão é um sentimento. E tu mataste em mim todos os sentimentos para contigo, os bons e os maus.»
« O que eu buscava e tu mo inspiraste não foram contas hereditárias que não se saldam, animais conflitos milenários que impedem fêmea e macho de serem mulher e homem. Fiquei logo isento de lutas de sexo. Tu, mulher, não reconheces o sentimento que tu mesma me inspiraste. Assombra-te o sentimento que em mim inspiraste. Tu que tinhas para o mundo uma altura que não sabes ter para a vida! Eu deixo-te passar e eu estou-te reconhecido, mulher. Tu deste-te e não te tive, mas deixaste-me inteiro o que eu buscava.»
José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 89« Só estás presente quando não te chamam. Estavas ausente quando eu me dava a ti. Escrevias números na Lua. Sim. Ausente. Estavas ausente quando me despedia de ti. Como um desconhecido, como um estranho, deixaste-me ir embora. Deixaste que eu te fugisse. Consentiste que eu te deixasse. Estavas ausente nos dois momentos mais decisivos da vida: quando eu me dava e quando eu te fugia. Deixa-me passar!»
José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 87/8Deixei-te livre. Sem sentimentos póstumos.
« Nunca te mandei fantasmas com recados que assustam. Deixei-te livre. Sem sentimentos póstumos.»
José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 87« ELE - Tu matas e não deixas morrer. Matar é ficar satisfeito. Tu queres que viva a tua ideia porque me matas. Tu queres morto o que não serviu a tua ideia. Ideia e o que não serviu ficaram emaranhados no teu caminho. Deixa morrer o que não serviu. Se fores capaz.»
ELA - (Mostrando-lhe as costas da mão esquerda.) Já não espero ninguém.»
José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 85«Em amor não há senão vassalos.»
José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 73
« ELE - Verás: serei vingado. A vingança será para sempre o teu novo amor. Quando vier não o destrinçarás do amor que mataste. Queres singular e encontrarás plural. Sempre meio vivo e meio morto, nada que satisfaça. Tu mesma capaste em tia a tua perfectibilidade. Castrada de amor, não de sexo. A ânsia de amor não morrerá em ti, e em ti o amor ficará sempre adiado.»
José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 72/3Como eu me dava no primeiro dia nunca foi igual depois.
«Como eu me dava no primeiro dia nunca foi igual depois. Deixas-me igual em sítio nenhum. Os nossos destinos não eram com o outro.»
José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 72
Um de nós morreu. Um de nós morreu para o outro. Escolhe: eu ou tu.
ELA - (Voz sereníssima.) Sentinela à vista.
ELE - Já sei. Acabou-se tudo. Mas espera.
ELA - Que mais há depois do fim?
ELE - Não sei qual seja a minha cobardia: se deva deixar-te, se deva matar-te!
ELA - É o único que ainda poderás de mim: matares-me. Precisamente o contrário do que de mim queiras. Querias-me para a vida. Para sempre: na vida e na morte. Ter-me-ás para sempre apenas na morte. Não era deste modo que também me querias na morte. É tudo quanto ainda podes de mim. E este final será tudo e o único que houve entre nós.
(A criada desce a escada e sai por onde veio a primeira vez. A mulher senta-se outra vez. Ele também.)
ELE - Um de nós morreu. Um de nós morreu para o outro.
Escolhe: eu ou tu. Se me matas, já estava morto para mim. É um estranho quem me mata. Um desconhecido. Um intruso. Um morto que me tira a vida.
(Pausa.)
ELA - Dois desconhecidos podem frente afrente ficar encontrados um primeiro dia. Nós não: mesmo frente a frente não há encontro possível.
ELE - Não há já encontro possível, nem comigo nem com ninguém. É a ti que a minha intransigência não deixará viver. Ficarás eternamente sozinha com todos, pública e in-ti-ma-men-te!
(Ela levanta-se bruscamente. Ele também.)
ELA - O que seja. O que for será. Se acaso passa por ti o meu destino, ponto final. A tua parte cumpriu-se. Como gente que sou, tenho direito a recusar acasos que não desejo.
(Dando passos atrás para se lhe dirigir melhor.)
ELA - Sou eu mesmo a surpreendida: primeiro desmaiei. Ignorava tanto da minha fragilidade. Foi-se-me a luz quando nada tinha que iluminar. E, ao despertar, o sangue corria à vontade por minhas veias e artérias.»
Por onde é que se sai deste inferno?
« A MULHER VESTIDA DE NOIVA - (Às companheiras.) Por onde é que se sai deste inferno? (As companheiras rodeiam-na e vão levando-a pelo fundo.)
cubro-me de flores aziagas de remorsos brandos
cubro-me de flores aziagas de remorsos brandos »
quarta-feira, 6 de novembro de 2024
Ahoo Daryaei | Iranian woman
Ahoo Daryaei is a young Iranian woman who protested by walking in public in Iran wearing only her bra and panties.[1] She displayed her defiance of compulsory hijab in front of Tehran's Islamic Azad University.[2] The university has confirmed her detention. She is currently (as of November 2024) in jail in the Islamic Republic.
Meditação do Duque de Gândia
Nunca mais
A tua face será pura limpa e viva
Nem o teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.
Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.
Nunca mais amarei quem não possa viver
Sempre,
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória, a luz e o brilho do teu ser,
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência,
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.
Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
Nunca mais te darei o tempo puro
Que em dias demorados eu teci
Pois o tempo já não regressa a ti
E assim eu não regresso e não procuro
O deus que sem esperança te pedi.
sexta-feira, 1 de novembro de 2024
sábado, 26 de outubro de 2024
''Quando não se sabe fazer uma coisa ao natural, aprende-se a fazer com técnica.»
José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 65
ELE - Quem chamou o outro? O homem ou a mulher?
ELA - O acaso não traz nada de seu: encontra a cada um como está.
ELE - O homem e a mulher andavam acaso à procura um do outro?
ELA - A resposta vem no fim.
ELE - E começa por a mulher ter sorrido para ela mesma.
ELA - Por acaso sorri-me. Mas a história já tinha começado.
ELE - Para o homem a história começou no sorriso.
ELA - Estava atrasado.»
''altas fogueiras diziam a desolação''
José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 53
COISAS DA TRISTEZA
José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 48
OS INCÊNDIOS
sob os umbrais de uma morada
nos carreiros que vão dar aos montes
sairás ainda em súplica
quando os incêndios ignorarem a ameaça
da tua vassoura de giestas
'' o florir lento dos antúrios''
José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 13
sexta-feira, 25 de outubro de 2024
« ELE - Somos maus juízes dos nossos casos e acasos.»
José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 56
« ELA - Esta sou eu: a que teve a alegria de poder consentir-te. A que tinha medo, medo de estar sozinha e sem consentir dar-se a ninguém. A que te dei foi a única com quem se vive e se sonha alto. Para sempre. Eu não me enganei. Tu, sim.»
« ELA - Se consinto, não me querem. Se não consinto, querem-me. Consenti. Dei-me. Estou dada. Dada a quem não me recebe. Para onde querem que eu vá fugindo de mim sozinha? Tu consentiste que eu te quisesse. Não te prendas comigo. Segue o teu caminho. Só te peço não me digas palavras que te mintam. »
José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 47FREGUÊS - Para mim serás a minha.
VAMPA - A tua?
FREQUÊS - Sim. Ouve. Tenho um segredo para te contar: tenho uma corda.
VAMPA - Uma corda?
FREGUÊS - Uma corda feita por mim.
José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 42/3
«A Vampa que fala em público não é a mesma com um particular. O seu tique pessoal, quando fala a uma só pessoa, é confidencial, amaneirado à fadista, dando a cada palavra importância que por vezes não tem.»
José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 41'' é sempre melhor que sintam medo do que tenham pena de nós''
Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p 17
''não há justiça sem morte e não há morte sem penitência.''
Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p 17
« Na cozinha a velha tinha acendido o lume para lhe pedir qualquer coisa. Alimentava o fogo com ervas daninhas secas com caruma com papéis velhos. Tudo em pedacinhos para que o lume não ficasse guloso. Observava-o e sussurrava-lhe coisas. As rezas caíam-lhe dos dentes sem que eu as ouvisse mas eu sabia que ela pedia a Santa Bárbara decapitada pelo pai no cimo de uma montanha a Santa Cecília banhada em água a ferver a Santa Maria Goretti assassinada quando a tentavam violar a todas as santinhas mortas pelas mãos de homens raivosos.»
Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p.16
«E a minha avó deixou de rezar porque quem quereria que quatro louva-a-deus com enormes olhos e pinças na boca lhe surgissem na cama da filha? Agora rezamos a eles porque temos medo que trepem para o telhado e enfiem as antenas e as patas compridas pela chaminé.»
Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p.9
terça-feira, 15 de outubro de 2024
«- Mas estas coisas do amor não são equilibradas nem simétricas como o pretendem determinados tratadistas. Tanto assim é que a mulher sabe perfeitamente melhor o efeito que produz nos homens do que o homem nas mulheres. Porquê? Parece tão parva a pergunta como o de querer saber a razão de ser a mulher mais fraca do que o homem. É assim, e pronto! De modo que, conclusão: aquele que souber melhor o efeito que produz nos outros leva de facto esta vantagem sobre os outros.»
José Almada Negreiros. Nome de Guerra. Livros RTP. Editorial Verbo. p. 55
O sono para ela era cair fulminada pelo excesso e pela fadiga.
« A vida para ela era uma luta constante, ofensiva e defensiva, sem tréguas, sem repouso mais do que no dormir. E os seus próprios sonos não eram um repouso, a agitação continuava como se fosse o seu estado normal, como se fosse o próprio bater do coração em sinal de vida. O sono para ela era cair fulminada pelo excesso e pela fadiga. Apenas acordava, tudo lhe era hostil em redor. Os móveis do quarto, o vestido que despira ao deitar e que ficara metade no chão e metade na cadeira. os sapatos distantes um do outro, o chapéu na maçaneta da cama, as recordações da véspera, o sol a querer por força entrar pelas frinchas, o movimento da cidade que se ouvia lá fora, o dinheiro espalhado no mármore do toilette, o estômago, a bronquite, tudo, tudo contra ela, tudo lhe gritava, a uma, a mesma palavra: Guerra!»
José Almada Negreiros. Nome de Guerra. Livros RTP. Editorial Verbo. p. 48O Antunes decidia fazer convergir todos os seus passos num único fito: a escolha da sua companheira. O motivo desta resolução estava na lembrança do que era a sua vida ultimamente, sem progresso, sem explicação, parada, inútil, nula. A causa desta estagnação era a falta de uma companheira.»
José Almada Negreiros. Nome de Guerra. Livros RTP. Editorial Verbo. p. 38/9
Visito os amigos mortos,
Pensando que indo, estão vivos.
Entre a penumbra dos quadros,
Andam eles em sorrisos.
Pronuncio a frase antiga,
E dou comigo sozinha.
Oiço então o dia exacto,
Da estridente campainha.
Volto a casa, fecho o som,
Por dentro da persiana.
E então os retratos andam,
Á volta da minha cama.
Natércia Freire
«Sem lápides, sem chumbo, sem jazigo; | caixão de tábuas, derradeira casa, | onde repousarei, frágil abrigo, | até me libertar num golpe de asa. || Então, quando estiver a sós comigo, | que ninguém chore porque o choro atrasa, | mas que alguém, se quiser, num gesto amigo, | ponha roseiras sobre a campa rasa. || Será medo o que sinto? Não é medo. | Serei, não serei digna do Segredo? | Ah, meu Deus, para lá das nebulosas, || Mereça ou não a expiação, a dor, | entrego-Te a minha alma sem temor. | O que resta, o que sobrar, é para as rosas.»
Fernanda de Castro, «Testamento», em "70 Anos de Poesia", 1989.
Fernanda de Castro, no livro, "África Raiz" (1966):
África, no teu corpo rugem feras, uivam fomes e medos ancestrais, no teu sangue há marés, na tua pele há dardos e punhais.
Ventre de Continentes, és mater e matriz.
Ásia é semente, Europa é flor, outros serão essência ou tronco, tu, África, és raiz.
[...]
O África dos dias incendiados, o veneno do sol que te envenena é que te faz assim, bárbara, impura, sanguinária e morena.
Mas tão pura, tão cândida também!
Ó África madrasta, África Mãe! [pp. 9, 99]
«Na Primavera, a Árvore era um ninho de folhas palpitantes como pequenas asas verdes. No Estio, cobria-se de flores, cada ramo era um jardim suspenso. Vinha depois o Outono, as flores mortas eram leitos de pássaros. E as folhas partiam, esvoaçando, tal borboletas de oiro. Por fim, o Inverno; em vez de folhas, braços nus, troncos mortos, desolada solidão.
Mas um dia...
Um dia, a Primavera voltou com as suas folhas palpitantes como pequenas asas verdes. O Estio, com as suas flores, os seus jardins suspensos. O Outono, com os seus pomos e as borboletas de oiro das suas folhas a dançar ao vento.
O Inverno, com os seus musgos, seus descarnados braços nus.
Mas a Árvore, a bela Árvore, era sempre a mesma, na sua ilimitada confiança. Foi então que aprendi, da Árvore, a lição: A vida é uma longa paciência e uma longa esperança.»
Fernanda de Castro, em Asa no Espaço, Edições Ática, 1.ª edição, 1955
país de musas sorumbáticas e de poetas tristes
David Mourão-Ferreira sobre Fernanda de Castro
Fernanda de Castro. "Ao Fim da Memória", 1987
da noite,
a aspereza das estrelas
quando os olhos são recentes
e a gravitação é um poder
sucinto nas mãos.
Não esqueças sobretudo como os cereais
lavram os campos estafados, destilam
prodígio pelos sulcos da memória,
oferecem-te uma vida maior
em troca do sal
das pálpebras.
Não esqueças sobretudo de olhar devagar.
Vasco Gato, ''IMO'' no livro ''Contra Mim Falo''/Poesia Reunida (ed.Imprensa Nacional - Casa da Moeda).
segunda-feira, 14 de outubro de 2024
Sou invisível | Janet Frame
Sempre fui invisível
como a pobreza num país rico,
como os ricos nos seus quartos escondidos nas suas casas com muitos quartos,
como as pulgas, os piolhos, como o que cresce debaixo da terra,
os mundos para além do céu, o vento, o tempo, as ideias -
o catálogo da invisibilidade é inesgotável
e, dizem, não é boa poesia.
Como as decisões.
Como qualquer outro lugar.
Como as instituições afastadas da estrada que se chama Scenic Drive.
Chega de comparações. Sou invisível.
Num mundo cheio de gente com visão binocular feitas as contas faço parte da maioria
enquanto tu e eu caminhamos com a nossa pequena lua crescente visitando a nossa obscuridade pessoal
através de um mundo no qual as decisões de ser ou não ser
são controladas pela luz
assistidas pelas lágrimas e o sonho da desatenção ou a morte.
Sou invisível.
Os amantes atravessam a minha vida para se tocarem,
a chuva que cai sobre mim atravessa-me como sangue sobre a terra.
Nenhuma cabeça me concebe como conhecimento.
Para dizer a verdade,
outorgo liberdade àqueles que dançam.
Assim é. Não há ninguém aqui para observar nem escutar dissimuladamente,
e então aprendo mais do que tenho direito a saber.
O palhaço
A sua cara está manchada por lágrimas maquilhadas.
Eu e os outros aplaudimo-lo, sabendo
que é de bom tom aprovar quando um palhaço chora
e de mau tom quando o faz uma cara persistentemente
dorida sejam ou não pintadas as suas lágrimas.
Também é de bom tom, entre guerras,
dizer que o ódio é amor e o amor é ódio,
argumentar que tudo é mais complexo do que sonhámos
e depois dizer que não o sonhámos
sempre o soubemos e somos sensatos.
Caro palhaço choroso caro velho infantil
caro assassino gentil caro e inocente culpado
cara simplicidade odeio-vos por causarem que eu finja
que há vários mundos para uma verdade quando
eu sei, eu sei que não há. Pessoas como eu e vocês, meus caros,
que têm mau hálito, que adormecem e de intestinos
ruidosos que controlam a fé
que chegam à casa vazia ou entre a família,
cara família, caro homem solitário no mundo despedaçado de nin-
guém,
será para essa desolação que acumulámos palavras durante tantos
milhões de anos, desde o primeiro, gememos
e olhamos para as estrelas. Oh oh o céu é demasiado amplo para
dormir debaixo!
domingo, 13 de outubro de 2024
quinta-feira, 10 de outubro de 2024
terça-feira, 8 de outubro de 2024
ANTÓNIO LOBO ANTUNES, in AS CRÓNICAS (D. Quixote, 2022)
The secret of a full life is to live and relate to others as if they might not be there tomorrow, as if you might not be there tomorrow. It eliminates the vice of procrastination, the sin of postponement, failed communications, failed communions. This thought has made me more and more attentive to all encounters. meetings, introductions, which might contain the seed of depth that might be carelessly overlooked. This feeling has become a rarity, and rarer every day now that we have reached a hastier and more superficial rhythm, now that we believe we are in touch with a greater amount of people, more people, more countries. This is the illusion which might cheat us of being in touch deeply with the one breathing next to us. The dangerous time when mechanical voices, radios, telephones, take the place of human intimacies, and the concept of being in touch with millions brings a greater and greater poverty in intimacy and human vision. ~Anaïs Nin
“I can never read all the books I want; I can never be all the people I want and live all the lives I want. I can never train myself in all the skills I want. And why do I want? I want to live and feel all the shades, tones and variations of mental and physical experience possible in my life. And I am horribly limited.”
























