terça-feira, 8 de outubro de 2024

 ANTÓNIO LOBO ANTUNES, in AS CRÓNICAS (D. Quixote, 2022)

NÃO ENTRES POR ENQUANTO NESSA NOITE ESCURA
Fosse qual fosse a idade que tinhas eras tão nova ainda. Não sei bem o que dizer do teu sorriso porém, quando me olhavas, dava-me ideia de principiar na minha boca e estender-se depois pelas paredes da casa, até iluminar a tua como certos freixos, certas crianças, certas rosas. Ou pássaros. As cotovias por exemplo, em Abrigada, atrás de quem corrias sempre, segura de voar. Tão poucas chaminés, tão poucos telhados então, e tantas árvores na serra, comovidas com o cheiro das giestas, árvores que à noite ladravam como cães, espreitando-te em cada porta, correndo no quintal, escondendo-se do que a lua consentia na grande paz da horta. Nem todas as coisas possuíam um nome nesse tempo: faltavam páginas no dicionário do avô e existia um espaço sem copos no aparador para a sede esquiva do gato. Moravam grandes mistérios nas gavetas: a irmã que não chegaste a conhecer, selos, herbários, lâmpadas fundidas, olhos murchos de cegos que iluminavam o escritório. A estatuazinha de gesso no muro que a cada inverno ia perdendo dedos. O piloto da barra dos Açores de que ouvias falar, enchendo de naufrágios o teu espanto. E de alciões pairando sobre a espuma. O tio José nas Caldas da Rainha com as algibeiras gordas de migalhas para os cisnes do parque, o bigode que impedia a ternura e as palavras. Fosse qual fosse a idade que tinhas eras tão nova ainda: o gosto das amoras depois da chuva sabia sempre a manhã e, às vezes, chegavam cartas de Lisboa e o jornal do meio-dia com as espantosas políticas do mundo, acontecimentos da outra margem da tristeza, palavras cujo sentido ignoravas dado que o vento detinha o exacto tamanho do teu corpo e não consentia qualquer sombra no sangue, qualquer inquietação que desviasse os dedos do caminho do sol. As pedras sim. As ervas sim. E tu de pé, na brancura de março das acácias. Se eu pudesse falar-te. Se as minhas mãos, se a minha voz te tocasse: não me escutas, é ainda demasiado cedo para que saibas que existo. Só conheces o sol e poucas vozes, alguns rumores essenciais, a água, as folhas do ulmeiro às seis da tarde, a volta dos rebanhos confundida com o peso do silêncio do teu pai.
Faltavam no relógio as horas de seres grande. Nunca serias grande mesmo depois dos filhos dado que a cada filho recomeçava a tua vocação de amora sangrando para dentro e os domingos alongavam-te os braços. Pintavas as pálpebras da mesma forma que em pequena acrescentavas pestanas ao desenho do sol. E bochechas. E cabelo. E uma nuvem repleta de cerejas. Por ser assim de facto a íntima verdade: não existe sol sem pestanas nem nuvens sem cerejas. Nuvens com cerejas sim: de qualquer nuvem
(toda a criança o explica e é natural)
podemos retirar o necessário para habitar a terra pelo lado da pele. No outro lado mora o feio baldio do que ignoramos: entulho como pátria, como ossos, como os amargos cadáveres da inveja, tudo aquilo em que nunca tropeçaste, de que nunca adivinhaste, por um momento, o rastro: eras tão nova ainda, serás sempre tão nova mesmo agora que em redor do teu nome é tudo cinza e ninguém se demora junto a ti. Mas agrada-me pensar que continuas a crescer nos limoeiros de outro verão e te debruças em Angola para escutar a terra. Lembras-te? Usavas o cabelo muito curto um vestido de chita e as pessoas paravam para olhar-te: não as vias, tão atenta ao coração da terra, ao lume no capim, à tua filha. E os teus ombros, ao andar, assemelhavam-se aos ombros dos navios.
Assim te foste embora mas não entres, não entres por enquanto nessa noite escura, não nos deixes aqui onde estes cardos até o mar magoam. E as lágrimas, compreendes, espinhos também. A única forma de te ser fiel é costurar a vida, lentamente, do avesso da dor, inventar um peito onde possas deitar-te, cobrir com lenços grandes os espelhos a fim de que nada impeça o teu regresso. Como não quis ver-te partir estarei aqui no dia da chegada. Também eu vim da guerra quando ninguém sabia dos meus passos. Em novembro, de manhã, tão de manhã que os mortos do meu sangue nem sequer tiveram tempo de acordar. Dormiam como dormes.
E cá estão. Fazem parte de ti, de mim, do mundo. De onde tornas a renascer.
Imensamente.
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“Um texto belo, poético e comovente. A imensa saudade da Zé, sua primeira mulher.”
Nota de Emília Vicente
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Fotografia: António Lobo Antunes e a mulher, Maria José Xavier da Fonseca e Costa, pais de Maria José Lobo Antunes.
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