domingo, 29 de setembro de 2024
Um Adeus Português
Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor
Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver
Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual
Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal
Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser
Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti
Há palavras que nos beijam
Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)
Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
*
O amor é o amor
O amor é o amor - e depois?!
vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?..
O meu peito contra o teu peito,
cortando o mar, cortando o ar.
num leito
há todo o espaço para amar!
Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor,
e trocamos - somos um? somos dois? -
espírito e calor!
o amor é o amor - e depois?!
ETÉREA ALTERIDADE
democraticamente livre
e quando aterra, urbana, fuça em contentores
e pasce lixo vulgar, e é enxotada
pelo guarda-chuva do mundo,
assim como a escuna, bico ufano avançando
por massas de água limpa,
e num estaleiro torpe, romba, é aviltada
por toda a sorte de mãos indignas
desse corpo belo e inalcançável,
assim te crês de Reia e Cronos filho,
e sobrinho de Oceano,
mas és de Andreia e Joaquim nascido
e o teu tio é um tal Ribeiro,
fulanos benzidos por sacerdotes comuns.
Assim do empíreo desces, em que te crias,
e vens por vão de escada à terra, abrupto,
um anjo que acorda num desmaio
e extinta vê a luz do seu fanal,
sábado, 28 de setembro de 2024
cansando-me do cansaço da vida
Insalubre, reato relações com a natureza mediada da cidade
e, cansando-me do cansaço da vida, miro cisnes
assomando o seu periscópio, noivos de noiva nenhuma.»
A crise da meia-idade gera
incontinentes e continentes
e tu, matrona, com as tuas colinas cansadas
olharás com acinte a ninfa: o teu espelho passado.
Aproxima-te. Eu sou um touro.
Eu sou um touro, belo, manso, branco.»
Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 112
''Quando Marga amou Juan Rámon''
Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 106
As cadeiras abraçam a mesa e isso é Púchkin
redundando-se, cadeia de ouro sobre o tronco.
A obra pende da parede,
o criador está morto, o curador vivo.
A cebola é uma orbe de lágrima sobre lágrima,
mudando-se o fuso
como um pião sem a corda emocional
que o fez rodopiar e sumindo-se o parou.
O amor é a sonata da chuva
crepitando na vidraça -
o samovar absolutamente central
como um totem de prata
para uma ausência -
Eu vejo os seus pequenos dedos percutindo
a trasparência da lágrima, neutro vidro,
límpida rede sobre a falta,
branca página da noite.
Tudo na saleta ou no salão,
as efígies arremedando
a pura obsidiana da ausência.
E estas palavras que eu cravo na terra
desprendem-se do seu orbe
como moscas viajando para a noite.
'' Oh quando poderei eu viver mais do que a vida?''
Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 99
''Amaste o gelo, os sóis, os poços fundos''
Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 93
OUTROS CÃES
enlouquecido pela sífilis
no estertor venéreo dos seus dias
se torna a Pietà da rapariga que
seduz - corre derradeira - às pias lágrimas
e isso é-nos mostrado no quadro de
Hogarth
para estudo e consolo.
Ele era, a bem dizer, um satirista.
À parte isso, retratou
outros cães.
''Não singraste, sangraste.''
Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 80
''As mães são mais difíceis no Outono.''
Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 79
A PROKOFIEV
Assim que, Serguei, fosses um grande ulmeiro
tombando, abafado sob a grande sombra
(e o som tem a sua sombra) de tortuoso carvalho.
Naquele 5 do 3 de 53, a plaina irracional da vida
levou um compositor e um ditador
que até na morte esmagou o primeiro
e o abafou abrupto como um estampido do tampo
sobre as cordas, martelo sobre martelos.
Assim as delicadas nervuras, caneluras, tessituras
das tuas tocatas batessem mais uma vez
contra o tecto baixo de um ditado rítmico,
arranhadas pelos plectros do titânico bigode.
E uma sombra póstuma, mais uma vez, Serguei,
te viste esmagado pela bruteza de um estado policial
que esqueceu o músico e honrou o assassino.
Diz-se que uma humilhação mais se quis póstuma:
que o teu corpo ficasse retido na casa funerária
na hora de ponta fúnebre que congestionou a tua última marcha.
E agora, não só a notícia ou a memória ou a opressão,
também na morte te ensurdeceu e obnubilou
o ditador em esquife saindo abafando
com estrondo a tampa meio aberta do pianista.
E cá para nós, Serguei, o artista fará sempre vénia ao opressor.
Já para não falar de Joseph tinha mais dedos do que tu.
Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 78
TENDA À BEIRA DA ESTRADA
Quem vier será uma revelação. O nosso coração está
preparado para todo o tipo de feridos, mas a nossa
farmácia, não.
Quem vem lá? - Se vierem cobertos de fatos cor de lama
quarente e cinco quilos de municões às costas, máscaras
de astronauta, por dentro homens, virão da guerra do Iraque.
Grandes feridas escondidas rasgadas pelas bocas das AK-quarenta e sete.
Para eles, temos laser e penicilina depurada, e tudo passará
como previsto. Diante da televisão, não sofrem nada. E contudo
não são soldados do Iraque, não. Os pássaros que trazem à cintura
não foram atingidos por petróleo bruto. Voam.
Quem vem lá?- Estamos preparados. Se vierem protegidos
por capotes longos, chapéus de ferro e máscaras antigás, é possível que
estejam a regressar da Batalha de Verdun. Se assim for, para as feridas
produzidas pelas lâminas de baionetas e munições de rifles
temos morfinas, opiáceos, agulhas grossas passadas pelo fogo.
Beberão vinho para serem amputados, e serão estóicos. Foram instruídos
pelos manuais do super-homem, tal como Nietzsche dixit.
Mas não vieram das planuras de Verdun. Os pássaros que os seguem
não são os corvos da França de mil novecentos e dezasseis, não.
quinta-feira, 26 de setembro de 2024
de notícias sobre o armistício de uma guerra, numa terra onde
nunca esteve nem estará, como se fosse uma pátria sua, não
se usa. Desusadamente, abro a porta aos ventos que trazem
desgraçados do outro lado do mar, e isso não se usa.»
Lídia Jorge. O Livro das Tréguas. Poesia. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 2019.,p. 46
terça-feira, 24 de setembro de 2024
''Para os homens, / Eu sou só um delírio da noite.''
Eu sou só um delírio da noite.
Parece que eu vivo só a noite fantástica desses homens!
E quando eles acordam,
Vem o dia.
Então sinto que vou ser sempre a noite
E nunca o dia de alguém.
Eu espero um dia ser o dia de alguém.”
Gabriela Medeiros
domingo, 22 de setembro de 2024
A meu favor
tenho o verde secreto dos teus olhos
algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
o tapete que vai partir para o infinito
esta noite ou uma noite qualquer
A meu favor
as paredes que insultam devagar
certo refúgio acima do murmúrio
que da vida corrente teime em vir
o barco escondido pela folhagem
o jardim onde a aventura recomeça.
sábado, 21 de setembro de 2024
lepidopterólogo
nome masculino
[
A MORTE DE UMA ACTRIZ PORNOGRÁFICA
(...)
''A indústria dir-se-á chocada,
assim replicando os valores da sociedade
sita embora numa ou noutra produtora
onde não distantes jaguares
atalham vias rápidas em segurança
e vão do ponto a ao ponto b
com os seus bigodes intocados
e devemo-lo a visionários preservacionistas,
a um verde lobbying,
entre barcos-pirata ecologistas
flutuando num mar de plástico.
A roda em que apodrecemos
Já há um, então comité.
Também já existe, uma subcomissão.''
Ricardo Araújo Pereira, humorista
INSTALAÇÃO
Pássaro pousado
em arame farpado.
O DESEMBARQUE DAS ONDAS
onda sobre onda
(
esta amortalhando a anterior.
).
o mar é um enterro.
quarta-feira, 18 de setembro de 2024
Carne Doce - Artemísia
«Não é de espantar que sejas bela,
que voes só para outros e não para ti.
Não passas de uma lagarta de visom
incendiando paixões de terceira idade,
tudo ilusão, vaidade, pretensão,
escapando sob pós de perlimpimpim
dos dedos mágicos de criança.»
''crisálida do entomólogo''
Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 38
segunda-feira, 16 de setembro de 2024
''Não há mortos que morram tanto como os nossos''
Gonçalo M. Tavares
domingo, 15 de setembro de 2024
«Para conseguirem que María adormecesse nessa primeira noite, tiveram de lhe injectar um sonífero. Ao romper do dia, quando a vontade de fumar a acordou, viu-se amarradas pelos pulsos e tornozelos às grades da cama. Ninguém acudiu aos seus gritos.»
Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto ''Só vim fazer um telefonema (1978)'' Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 101
«Alguma coisa se passou então no espírito de María fazendo-a compreender porque é que as mulheres do autocarro se moviam como se estivessem no fundo de um aquário. Na realidade, estavam sedadas com tranquilizantes, e aquele palácio de sombras, com espessos muros de cantaria e escadas geladas, era na realidade um hospital de doentes mentais.''
Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto ''Só vim fazer um telefonema (1978)'' Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 100/101''aguaceiros primaveris''
Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto ''Só vim fazer um telefonema (1978)'' Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 91
'' - Só a poesia é clarividente - disse ele.''
Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto ''Alugo-me para Sonhar (1980)'' Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 91
Alugo-me para Sonhar (1980)
Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto ''Alugo-me para Sonhar (1980)'' Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 83
''na primavera anterior eu lera um belo romance de Yasunari Kawabata sobre os velhos burgueses de Quioto que pagavam somas enormes para passarem a noite a contemplar as raparigas mais belas da cidade, despidas e narcotizadas, enquanto agonizavam de amor ao lado delas, na mesma cama.''
Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto ''A Santa''. Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 80/1''anel de um noivado efémero''
Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto ''A Santa''. Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 80
''quanto mais velho mais duro é o corno - disse o papa''
Herberto Helder. Letra Aberta. Poemas inéditos escolhidos por Olga Lima. Porto Editora, 2016., p. 58
''sopra-me na boca''
Herberto Helder. Letra Aberta. Poemas inéditos escolhidos por Olga Lima. Porto Editora, 2016., p. 52
a ferida da memória,
mas por trás o sangue tão devagar dói,
tão fundo dói, e passa
um dia ainda, com sua noite adjunta, e desemboca,
o sangue impuro que uma vez mais se purifica
até um outro dia, e esse já não, que com certeza,
e então espero mais vinte e quatro horas de mais nada
que como quando
um dia em que penso ou não penso,
um que não passa tão certamente desatento,
errático, diz alguém não sei onde e quando,
que só aqui e só agora digo,
mas não faço,
enfim: não morro por enquanto,
só um pouco mais tarde, porque afinal um homem é de ferro
sábado, 14 de setembro de 2024
“A vida é feita de escolhas. E cada escolha, por mais insignificante que pareça, traz consigo consequências que não podemos prever. Ninguém pode evitar o impacto das suas decisões. Caminhamos por um terreno incerto, e a cada passo, moldamos o nosso destino, quer queiramos ou não. A única certeza é que o passado não pode ser desfeito, e o futuro é a soma de cada um desses passos.”
domingo, 1 de setembro de 2024
sábado, 31 de agosto de 2024
a ferida da memória,
mas por trás o sangue tão devagar dói,
tão fundo dói, e passa
um dia ainda, com a sua noite adjunta, e desemboca,
o sangue impuro que uma vez mais se purifica
até um outro dia, e esse já não, que com certeza,
e então espero mais vinte e quatro horas de mais nada
que como quando
um dia em que penso ou não penso,
um que não passa tão certamente desatento,
errático, diz alguém não sei onde e quando,
que só aqui e só agora digo,
mas não faço,
enfim: não morro por enquanto,
só um pouco mais tarde, porque afinal um homem é de ferro
quarta-feira, 28 de agosto de 2024
Auberge Ravoux
A tristeza vai durar para sempre.
Do crocitar dos corvos sobre os campos
Abre-se um abismo sem fim.
Ó estrelas de prata
Estrelas do anseio pela liberdade
Como passou o vosso jovem sopro!
Caio na noite sem fim
Longe do sol que fez de mim um girassol enlouquecido.
A tristeza vai durar para sempre.
SOLIDÃO
É o panorama duma cidade
O casario mudo sob um céu abrasado.
São duas linguagens emaranhadas
Que não se desentrançam
Um toque que não aflora
Numa coxa querida.
Aqui do alto
Como são minúsculos os corpos
Vãos os laivos de vida
Que se desenham no
Labirinto do espanto.
Perfilam-se as memórias
Na superfície diáfana dos olhos
E as cidades baralham-se
Desabam, reerguem-se
À sombra da inquietude
E da inconsciência humana.
A solidão é a geografia desesperada
De um mundo sem língua.
Repousa dormente
E as folhas
Num murmuro tépido
Fazem as suas vozes brancas
Assomar do leito do adeus.
Delicados luzeiros cativos
Transplantados para as cidades
Onde, por sobre as lajes
Alumiais as cabeças fatigadas
Da turba com as vossas
Luzes frias.
Pirilampos sem memória
Cobertos de cera
Entristecem, entontecem
A pele das estrelas.
''eu deito-me sobre ti e aguardo o oblívio''
Tomás Sottomayor. Auberge Ravoux. Edições Língua Morta, 2021., p. 45
Taciturno sorvo o leite negro
De tudo o que se perdeu.
Ajoelho-me sob o peso da tua mão
E aguardo o sinal para que a minha
Se mova sem hesitação
Para arquear um novo céu.
Tenho um desejo insular
Por mundos invisíveis.
A CADELA ROMENA
Na margem do Danúbio
Num dia de beleza e desolação.
Correu ao meu encontro plena de ternura
Com os olhos alumiados de pureza.
Parti piedoso, triste, furioso
Com a imagem da pobreza
À flor dos olhos:
A cadela sarnenta
Com as tetas túmidas da solidão.