domingo, 29 de setembro de 2024

ETÉREA ALTERIDADE

 Como esta gaivota que, voando, parece 
democraticamente livre
e quando aterra, urbana, fuça em contentores
e pasce lixo vulgar, e é enxotada
pelo guarda-chuva do mundo,
assim como a escuna, bico ufano avançando
por massas de água limpa,
e num estaleiro torpe, romba, é aviltada
por toda a sorte de mãos indignas
desse corpo belo e inalcançável,

assim te crês de Reia e Cronos filho,
e sobrinho de Oceano,
mas és de Andreia e Joaquim nascido
e o teu tio é um tal Ribeiro,
fulanos benzidos por sacerdotes comuns.
Assim do empíreo desces, em que te crias,
e vens por vão de escada à terra, abrupto,
um anjo que acorda num desmaio
e extinta vê a luz do seu fanal,
ante um aptério edifício de escritórios.

Porém, coragem, tu, e entesa a fibra de titã.
Para ter o Olimpo há que vomitar filhos
servidos em refeição como Tântalo,
beber das tetas caprinas como Zeus,
servir pedras aos pares.
E assim etéreo andes e soes como a lira pura
num ar tão rarefeito quanto irrespirável.
Se os deuses têm histórias de vergonha,
os anjos têm guelras para habituar a um céu
de etérea e rude humanidade.


Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 116/7

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