sábado, 28 de setembro de 2024

A PROKOFIEV

 Morrer não é boa ideia. Morrer no mesmo dia de Estaline, pior.
Assim que, Serguei, fosses um grande ulmeiro 
tombando, abafado sob a grande sombra
(e o som tem a sua sombra) de tortuoso carvalho.
Naquele 5 do 3 de 53, a plaina irracional da vida
levou um compositor e um ditador
que até na morte esmagou o primeiro
e o abafou abrupto como um estampido do tampo
sobre as cordas, martelo sobre martelos.
Assim as delicadas nervuras, caneluras, tessituras
das tuas tocatas batessem mais uma vez
contra o tecto baixo de um ditado rítmico,
arranhadas pelos plectros do titânico bigode.
E uma sombra póstuma, mais uma vez, Serguei,
te viste esmagado pela bruteza de um estado policial
que esqueceu o músico e honrou o assassino.
Diz-se que uma humilhação mais se quis póstuma:
que o teu corpo ficasse retido na casa funerária
na hora de ponta fúnebre que congestionou a tua última marcha.
E agora, não só a notícia ou a memória ou a opressão,
também na morte te ensurdeceu e obnubilou 
o ditador em esquife saindo abafando
com estrondo a tampa meio aberta do pianista.
E cá para nós, Serguei, o artista fará sempre vénia ao opressor.
Já para não falar de Joseph tinha mais dedos do que tu.


Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 78

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