sexta-feira, 24 de abril de 2015
«Nem eu nem Clarisse falávamos, mas cada um de nós ia, decerto, com os nervos saturados do diálogo irritadiço dessa tarde, das frases que haviam ficado por dizer, reagrupando agora esses fragmentos talvez para os suavizar ou azedar mais ainda.»
Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 168
«-Uma garota de nariz arrebitado. Caprichosa, volúvel, nem sempre fácil de aturar.
-Volúvel? - repetiu Clarisse, numa inflexão interrogativa mas sonâmbula, como se recitasse uma frase vazia de sentido.
-...E sobretudo uma garota que me puxa demasiadamente pela língua. Já devias saber que a loquacidade não está nos meus hábitos.»
Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 166
« - Às vezes tenho a impressão de que falo, ou que me escutas, de muito longe. E quando me calo, é como se nenhum de nós fosse real. - E emudeceu, a sopesar a verdade do que dizia.
-Ao menos tu, serás real?
Que podia eu dizer-lhe, sem a crosta dos hábitos a defender-me? Segui-lhe no rosto a minha própria emoção.
-Deves ter razão em duvidar. Para te falar franco, chego a julgar que me inventaste - e apertei os dentes, atravessado por uma dor instantânea.
-Mas eu não invento a tua frieza.
Bem vi que outros pensamentos lhe galopavam de encontro às têmporas. Não lhes daria voz, porém. Pelo menos, a todos. Clarisse preferia não esticar, além de certos limites, as cordas do meu enfado. Picava-me, apenas. Ia aceitando, gradualmente, embora com espanto, fúria e terror, o pouco que eu lhe poderia oferecer.
- Nunca quiseste saber nada de mim. Vá, que sabes tu do meu passado?
Escorei-me nos antebraços. Procurei um cigarro nos bolsos. Media, à régua, as palavras que iria dizer.
-Que te sentavas num café com esse arzinho provocante...E se falássemos de outras coisas? A propósito, Clarisse: usavas um gracioso colete de bombazina. Veste-o um dia destes. Ficava-te muito bem.
Ela fixava-me, dorida, a desvendar um estranho.
-Escuta, Jorge, agora escuta-me. Quero sentir que estás, realmente, aqui. Tu poderás compreender que eu deseje tanto que saibas tudo de mim? Só assim poderei pertencer-te, como eu quero. - Ela fazia pontaria ao meu mutismo, para o estilhaçar. Mas logo uma ira crispada lhe borbulhava nas narinas frementes. - Dá-me às vezes a impressão de que és um saco de areia. Dou um murro, a mão amolga o saco, mas não se ouve a pancada. E o saco, claro, fica na mesma. Será inútil repetir o murro.»
Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 164/5
-Ao menos tu, serás real?
Que podia eu dizer-lhe, sem a crosta dos hábitos a defender-me? Segui-lhe no rosto a minha própria emoção.
-Deves ter razão em duvidar. Para te falar franco, chego a julgar que me inventaste - e apertei os dentes, atravessado por uma dor instantânea.
-Mas eu não invento a tua frieza.
Bem vi que outros pensamentos lhe galopavam de encontro às têmporas. Não lhes daria voz, porém. Pelo menos, a todos. Clarisse preferia não esticar, além de certos limites, as cordas do meu enfado. Picava-me, apenas. Ia aceitando, gradualmente, embora com espanto, fúria e terror, o pouco que eu lhe poderia oferecer.
- Nunca quiseste saber nada de mim. Vá, que sabes tu do meu passado?
Escorei-me nos antebraços. Procurei um cigarro nos bolsos. Media, à régua, as palavras que iria dizer.
-Que te sentavas num café com esse arzinho provocante...E se falássemos de outras coisas? A propósito, Clarisse: usavas um gracioso colete de bombazina. Veste-o um dia destes. Ficava-te muito bem.
Ela fixava-me, dorida, a desvendar um estranho.
-Escuta, Jorge, agora escuta-me. Quero sentir que estás, realmente, aqui. Tu poderás compreender que eu deseje tanto que saibas tudo de mim? Só assim poderei pertencer-te, como eu quero. - Ela fazia pontaria ao meu mutismo, para o estilhaçar. Mas logo uma ira crispada lhe borbulhava nas narinas frementes. - Dá-me às vezes a impressão de que és um saco de areia. Dou um murro, a mão amolga o saco, mas não se ouve a pancada. E o saco, claro, fica na mesma. Será inútil repetir o murro.»
Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 164/5
UMA SEMANA DE BONDADE
"O molar solitário de uma prostituta,
que morrera no aonimato,
tinha uma aplicação de ouro.
Os restantes, como por mudo acordo tácito,
tinham caído.
O funcionário da morgue arrancou-o,
pô-lo no prego e foi dançar.
É que, dizia ele,
só o que é terra à terra deve voltar."
que morrera no aonimato,
tinha uma aplicação de ouro.
Os restantes, como por mudo acordo tácito,
tinham caído.
O funcionário da morgue arrancou-o,
pô-lo no prego e foi dançar.
É que, dizia ele,
só o que é terra à terra deve voltar."
- Gottfried Benn -
-"Expressionismo Alemão: Antologia Poética"
- Gottfriend Benn/ Georg Trakl / Ernst Stadler/ Georg Heym...
- Tradução: João Barrento
- Gottfriend Benn/ Georg Trakl / Ernst Stadler/ Georg Heym...
- Tradução: João Barrento
quinta-feira, 23 de abril de 2015
«A minha convivência nos desatinos e excessos de Clarisse traduzia apenas a solidariedade que se deve a um ser humano desesperado. E, sobretudo, solitário no seu desespero. Era este o disco entorpecente que fazia girar dentro do meu amor-próprio. E seria amor o que ela sentia?»
Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 145
«Talvez não seja inteiramente sincero ao dizer isto, pois, as mais das vezes, eu procurava muito mais interpretar-me, iludir as minhas acusações, do que ajudar Clarisse a libertar-se do pavor do dia seguinte. «Nada tenho dentro de mim a não ser o medo.» Ela bem o percebia, bem percebia o meu egoísmo. «Os homens são tão ciosos da sua invulnerabilidade! Tão estupidamente egoístas! (...)»
Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 144
''grandiloquências românticas''
Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 144
''nuns monossílabos acerbos que ele se dispensava de ouvir''
Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 143
''encurralava-me nas grades do meu mutismo''
Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 143
quarta-feira, 22 de abril de 2015
Quando a mãe se abeirou da cova
o corpo inerte pediu-lhe colo
numa língua que só as mães podem escutar
e a mulher mergulhou no sangue do seu sangue
coalhado
e que ainda assim continua a correr-lhes nas veias
como um membro amputado que mantém a presença num formigueiro inexistente
e no momento em que tornaram a cortar-lhe o cordão umbilical
não se ouviu o grito de choro da cria
apenas os guinchos que explodiam da garganta dilacerada da mãe
o horror
mantendo a boca aberta sem emitir som
cobriu com o seu corpo vivo o outro que jazia
deixando escorrer a baba que lhe escapava sem intenção
o dique descontrolado de fluídos
nessa barbárie de máquinas aplicada ao corpo
o corpo que obedecia a ordens continuando a manter funções
quando deveria ser esmagado
†
a mãe viu o pedaço de vidro ao lado do morto
um destroço da explosão deixado em divina correspondência
pegou na lâmina e cravou-a no pescoço
esguichou-se por inteiro até ao esvaziamento
a poça encarnada abarcou a família
e toda a descendência.
o corpo inerte pediu-lhe colo
numa língua que só as mães podem escutar
e a mulher mergulhou no sangue do seu sangue
coalhado
e que ainda assim continua a correr-lhes nas veias
como um membro amputado que mantém a presença num formigueiro inexistente
e no momento em que tornaram a cortar-lhe o cordão umbilical
não se ouviu o grito de choro da cria
apenas os guinchos que explodiam da garganta dilacerada da mãe
o horror
mantendo a boca aberta sem emitir som
cobriu com o seu corpo vivo o outro que jazia
deixando escorrer a baba que lhe escapava sem intenção
o dique descontrolado de fluídos
nessa barbárie de máquinas aplicada ao corpo
o corpo que obedecia a ordens continuando a manter funções
quando deveria ser esmagado
†
a mãe viu o pedaço de vidro ao lado do morto
um destroço da explosão deixado em divina correspondência
pegou na lâmina e cravou-a no pescoço
esguichou-se por inteiro até ao esvaziamento
a poça encarnada abarcou a família
e toda a descendência.
Na guerra só há razão. A barbárie alimenta-se de crânios.
Cláudia Lucas Chéu. in 70 Poemas Para Adorno, Vários Autores, Nova Delphi Editora, Funchal, 2015.
terça-feira, 21 de abril de 2015
Misantropia
nome feminino
1. ódio, aversão ao ser humano
2. aversão à convivência social
3. disposição sombria do espírito; melancolia profunda
segunda-feira, 20 de abril de 2015
«Ser uma vítima dócil, para sua comodidade?»
Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 98/9
«Eis a ponta do cigarro a queimar-me os dedos.»
Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 86
«Mas com grande espanto seu, Vassili Andréitch não pôde prosseguir porque os olhos se lhe encheram de lágrimas e o lábio inferior se lhe pôs a tremer convulsivamente. Deixou de falar, esforçando-se por abafar o soluço que lhe subia à garganta.»
Leão Tolstoi. Senhor e Servo. Antologia dos Amigos do Livro. Tradução de José Marinho. Inquérito Lisboa, p. 106
domingo, 19 de abril de 2015
''Tinha razões subterrâneas para acusar-nos.''
Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 76
«(...) de cigarro a acobrear-lhe os dedos nodosos,»
Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 75
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«Que, ao menos, na floresta das palavras, eu saiba escolher apenas as necessárias.»
Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 73
«Esse mutismo deixou-a por momentos irresoluta, após o que decidiu dispensar o contraponto das minhas palavras.
- Não tem o direito de me iludir. Nem a mim nem a ninguém.
Esmaguei o cigarro com irritação. Os olhos ainda lacrimejavam.
-Sabe o que está a dizer?
-Sei muito bem. Posso repeti-lo.»
Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 70
- Não tem o direito de me iludir. Nem a mim nem a ninguém.
Esmaguei o cigarro com irritação. Os olhos ainda lacrimejavam.
-Sabe o que está a dizer?
-Sei muito bem. Posso repeti-lo.»
Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 70
«Dentro dele, o sofrimento levedava (...)»
Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 69
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