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sábado, 2 de julho de 2011

«Os seus sentidos sentiam de mais. Havia neles excesso. «Morro à míngua, de excesso», ele o disse.


João Gaspar Simões in Obras Completas de Mário de Sá-Carneiro. Poesias II. Colecção Poesia. Edições Ática., p. 25

«A poesia clássica contava; a poesia moderna sugere.»

  João Gaspar Simões in Obras Completas de Mário de Sá-Carneiro. Poesias II. Colecção Poesia. Edições Ática., p. 12

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

«As minhas conversas com Ricardo — pormenor interessante — foram logo, desde o início, bem mais conversas de alma, do que simples conversas de intelectuais.
Pela primeira vez eu encontrara efectivamente alguém que sabia descer um pouco aos recantos ignorados do meu espírito — os mais sensíveis, os mais dolorosos para mim. E com ele o mesmo acontecera — havia de mo contar mais tarde.
Não éramos felizes — oh não!As nossas vidas passavam torturadas de ânsias, e incompreensões, de agonias de sombra…»



Mário de Sá-Carneiro. A confissão de Lúcio., p.14
«A desconhecida estranha impressionara-me vivamente e, antes de adormecer, largo tempo a relembrei e à roda que a acompanhava.
Ah! como Gervásio tinha razão, como eu no fundo abominava essa gente —os artistas. Isto é, os falsos artistas cuja obra se encerra nas suas atitudes; que falam petulantemente, que se mostram complicados de sentidos e apetites, artificiais, irritantes, intoleráveis. Enfim, que são os exploradores da arte apenas no que ela tem de falso e de exterior.
Mas, na minha incoerência de espírito, logo me vinha outra ideia: — Ora, se os odiava, era só afinal por os invejar e não poder nem saber ser como eles…»



Mário de Sá-Carneiro. A confissão de Lúcio., p.8
«— Acho que não devem discutir o papel da voluptuosidade na arte porque, meus amigos, a voluptuosidade é uma arte — e, talvez, a mais bela de todas. Porém, até hoje, raros a cultivaram nesse espírito. Venham cá, digam-me: fremir em espasmos de aurora, em êxtases de chama, ruivos de ânsia — não será um prazer bem mais arrepiado, bem mais intenso do que o vago calafrio de beleza que nos pode proporcionar uma tela genial, um poema de bronze? Sem dúvida, acreditem-me. Entretanto o que é necessário é saber vibrar esses espasmos, saber provocá-los.
E eis o que ninguém sabe; eis no que ninguém pensa. Assim, para todos, os prazeres dos sentidos são a luxúria, e se resumem em amplexos brutais, em beijos húmidos, em carícias repugnantes, viscosas. Ah! mas aquele que fosse um grande artista e que, para matéria-prima, tomasse a voluptuosidade, que obras irreais de admiráveis não alteraria!… Tinha o fogo, a luz, o ar, a água, e os sons, as cores, os aromas, os narcóticos e as sedas — tantos sensualismos novos ainda não explorados… Como eu me orgulharia de ser esse artista!… E sonho uma grande festa no meu palácio encantado, em que os maravilhasse de volúpia… em que fizesse descer sobre vós os arrepios misteriosos das luzes, dos fogos multicolores — e que a vossa carne, então, sentisse enfim o fogo e a luz, os perfumes e os sons, penetrando-a a dimaná-los, a esvaí-los, a matá-los!… Pois nunca atentaram na estranha voluptuosidade do fogo, na perversidade da água, nos requintes viciosos da luz?.. Eu confesso-lhes que sinto uma verdadeira excitação sexual — mas de desejos espiritualizados de beleza — ao mergulhar as minhas pernas todas nuas na água de um regato, ao contemplar um braseiro incandescente, ao deixar o meu corpo iluminar-se de torrentes eléctricas, luminosas… Meus amigos, creiam-me, não passam de uns bárbaros, por mais requintados, por mais complicados e artistas que presumam aparentar!»




Mário de Sá-Carneiro. A confissão de Lúcio., p.6
Não foi um falhado porque teve a coragem de se despedaçar.

Mário de Sá-Carneiro. A confissão de Lúcio., p.4
«— Sabe, meu caro Lúcio — dissera-me o escultor, muita vez —, não sou eu
nunca que possuo as minhas amantes; elas é que me possuem…»


Mário de Sá-Carneiro. A confissão de Lúcio., p.4

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

«...Esses dez anos esvoaram-se-me como dez meses. É que, em realidade, as horas não podem mais ter ação sobre aqueles que viveram um instante que focou toda a sua vida. Atingido o sofrimento máximo, nada já nos faz sofrer. Vibradas as sensações máximas, nada já nos fará
oscilar. Simplesmente, este momento culminante raras são as criaturas que o vivem. As que o viveram ou são, como eu, os mortos-vivos, ou — apenas — os desencantados que, muita vez, acabam no suicídio.»

Mário de Sá-Carneiro. A confissão de Lúcio., p.2

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

XIV

hoje, dia de todos os demónios
irei ao cemitéio onde repousa Sá-Carneiro
a gente às vezes esquece a dor dos outros
o trabalho dos outros o coval
dos outros

ora êste foi dos tais a quem não deram passaporte
de forma que embarcou clandestino
não tinha política tinha física
mas nem assim o passaram
e quando a coisa estava a ir a mais
tzzt...uma poção de estricnina
deu-lhe a molesa foi dormir

preferiu umas dores no lado esquerdo da alma
uns disparates com as pernas na hora apaziguadora
herói à sua maneira recusou-se
a beber o pátrio mijo
deu a mão ao Antero, foi-se, e pronto,
desembarcou como tinha embarcado

Sem Jeito Para o Negócio Itálico


Mário Cesariny. manual de prestidigitação. Assírio & Alvim, 1981. Lisboa., p.102

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Era difícil, complicada a empresa; tão complicada que Deus não a pôde simplificar...Não pôde...nem soube. O filho, quando nasce, martiriza, tortura a mãe...mata-a muitas vezes...e não ri ao chegar ao mundo...Não ri...chora...grita...

Eu vivo. Nunca fiz vida. Fui mais sensato, gozei apenas...

Procriar é uma malvadez: é fazer desgraçados. É um crime matar, preceituam as leis. Crime muito maior é formar assassinos.

O filho devia amaldiçoar os pais. Foram eles que o condenaram à existência...ao suplício eterno...

Só há uma coisa pior que a vida: é a morte.

Se a humanidade fosse inteligente, se porfiasse, acabaria com os homens. Ventura suprema! Suprema superioridade! Demonstraria que tinha mais força do que o Criador: destruiria a sua obra infame.
Mas ninguém quer domar os sentidos; com os sentidos, ninguém quer ser hipócrita...

A morte era a recompensa da vida. Os homens que estragam tudo, estragam também essa recompensa: inventaram a alma, o Inferno e o Céu.

Só se compreende o compreensível. O Universo é incompreensível para os homens. Por isso estes o admiram, pasmam alarvamente diante dessa chocha «maravilha»...

A vida faz doer. E a morte?


Mário de Sá-Carneiro. Loucura. Publicações Europa-América, .p. 54/5
- Saber quem uma pessoa é; é conhecer a sua alma, penetrar nos seus pensamentos; saber como pensa, como executa. Numa noite, não se pode fazer tanto. A maioria das vezes, nem ao cabo de muitos anos se logra conhecer um companheiro de muitos anos. Por isso à tua pergunta «Quem é?», respondi: «Não sei». O seu nome, sei-o: Marcela, a filha da condessa.


Mário de Sá-Carneiro. Loucura. Publicações Europa-América, .p.17

sábado, 21 de agosto de 2010

- Meu amigo - confessou o escultor -, já não penso o mesmo acerca da literatura. Considerava-a dantes como uma futilidade, apenas digna dos espíritos fracos. Hoje compreendo que laborava num erro. A escultura faz corpos: eu faço corpos. A literatura faz almas: tu fazes almas.
Se pudéssemos conjugar as nossas duas artes faríamos vida. Felizmente é possível...


Mário de Sá-Carneiro. Loucura. Publicações Europa-América, .p.12
Pensando em Raul, dizia para mim próprio: «Será apenas um original que se deseja salientar, que faz galas nas suas originalidades; ou será um louco?»
Um louco, parecia-me a hipótese mais verdadeira. Mas no espírito do meu amigo havia tais incoerências que eu, vacilando, terminava por concluir: «É uma criatura incompreensível...um excelente rapaz...um grande artista...»


Mário de Sá-Carneiro. Loucura. Publicações Europa-América, .p.9/10
-Foi por isso justamente que me armei em escultor: faço estátuas. As minhas estátuas não são como as outras, meu velho, têm vida...Vida, percebes?...Em vez de fazer carne com a minha carne, faço vida com as minhas mãos; isto é, com o meu cérebro, que as conduz. Faço vida, o tempo passa sobre as minhas estátuas, não passa sobre mim...
(...)
-Pateta...Mulheres?Para quê?Não tenho as minhas estátuas, não tenho mármore?...Dizem vocês os literatos cretinos, descrevendo o corpo de uma mulher ideal: «As suas pernas bem torneadas e nervosas, eram duas colunas de rijo mármore; o seu colo alabrastro puro.» Sim, apesar da vossa grande imbelicidade , vocês compreendem que a suprema beleza da carne está em parecer pedra ...Ora eu tenho pedra; para que hei-de querer carne, pateta? E a dizer isto, acariciava os seios de uma maravilhosa dançarina grega.


Mário de Sá-Carneiro. Loucura. Publicações Europa-América, .p.8/9
Raul era dotado de um bizarro carácter; ora alegre, ora triste; ora falador - sem poder estar um minuto calado - , ora conservando-se largo tempo silencioso, imerso em profunda meditação. Por coisas insignificantes, assaltavam-no às vezes terríveis cóleras: lembro-me de que um dia , só por não querer adoptar uma opinião sua, me atirou com um insulto obsceno, acompanhado de um pesado tinteiro de vidro que, se me acertasse, podia muito bem dar cabo de mim. Mas as suas cóleras logo abrandavam; a chorar, pedia perdão. Eu perdoava-lhe sempre...
Frequentemente tinha ideias esquisitas, de uma esquisitice sinistra. Por exemplo, uma noite - depois de um dos seus costumados períodos de mutismo -. exclamou de súbito:
-Gostava que morresse toda a gente...todos os animais e que só eu ficasse vivo...
-Para quê? - perguntei espantado.
-Para experimentar o medo de ver completamente só, num mundo cheio de cadáveres. Devia ser delicioso! Que calafrio de horror!...



Mário de Sá-Carneiro. Loucura. Publicações Europa-América, .p.5

terça-feira, 25 de maio de 2010

Como eu não possuo

Olho em volta de mim. Todos possuem
Um afecto, um sorriso ou um abraço.
Só para mim as ânsias se diluem
E não possuo mesmo quando enlaço.

Roça por mim, em longe, a teoria
Dos espasmos golfados ruivamente;
São êxtases da cor que eu fremiria,
Mas a minh’alma pára e não os sente!

Quero sentir. Não sei... perco-me todo...
Não posso afeiçoar-me nem ser eu:
Falta-me egoísmo para ascender ao céu,
Falta-me unção pra me afundar no lodo.

Não sou amigo de ninguém. Pra o ser
Forçoso me era antes possuir
Quem eu estimasse – ou homem ou mulher,
E eu não logro nunca possuir!...

Castrado d’alma e sem saber fixar-me,
Tarde a tarde na minha dor me afundo...
– Serei um emigrado doutro mundo
Que nem na minha dor posso encontrar-me?


*
* *

Como eu desejo a que ali vai na rua,
Tão ágil, tão agreste, tão de amor...
Como eu quisera emaranhá-la nua,
Bebê-la em espasmos d’harmonia e cor!...

Desejo errado... Se a tivera um dia,
Toda sem véus, a carne estilizada
Sob o meu corpo arfando transbordada,
Nem mesmo assim – ó ânsia! – eu a teria...

Eu vibraria só agonizante
Sobre o seu corpo d’êxtases dourados,
Se fosse aqueles seios transtornados,
Se fosse aquele sexo aglutinante...

De embate ao meu amor todo me ruo,
E vejo-me em destroço até vencendo:
É que eu teria só, sentindo e sendo
Aquilo que estrebucho e não possuo.


Paris 1913 – Maio


Mário de Sá-Carneiro. Dispersão. Lisboa, 1914 p. 15/7

Álcool

Guilhotinas, pelouros e castelos
Resvalam longemente em procissão;
Volteiam-me crepúsculos amarelos,
Mordidos, doentios de roxidão.

Batem asas d’auréola aos meus ouvidos,
Grifam-me sons de cor e de perfumes,
Ferem-me os olhos turbilhões de gumes,
Descem-me a alma, sangram-me os sentidos.

Respiro-me no ar que ao longe vem,
Da luz que me ilumina participo;
Quero reunir-me, e todo me dissipo –
Luto, estrebucho... Em vão! Silvo pra além...

Corro em volta de mim sem me encontrar...
Tudo oscila e se abate como espuma...
Um disco de ouro surge a voltear...
Fecho os meus olhos com pavor da bruma...

Que droga foi a que me inoculei?
Ópio d’inferno em vez de paraíso?...
Que sortilégio a mim próprio lancei?
Como é que em dor genial eu me eterizo?


Nem ópio nem morfina. O que me ardeu,
Foi álcool mais raro e penetrante:
É só de mim que ando delirante –
Manhã tão forte que me anoiteceu.



Paris 1913 – Maio 4


Mário de Sá-Carneiro. Dispersão. Lisboa, 1914., p. 8

domingo, 23 de maio de 2010

Dispersão

Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...

Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.

(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:

Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família)

O pobre moço das ânsias...
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que te abismaste nas ânsias.

A grande ave doirada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.

Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.

Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que projecto:
Se me olho a um espelho, erro-
Não me acho no que projecto.

Regresso dentro de mim
Mas nada ma fala, nada!
Tenho a alma amortalhada.
Sequinha, dentro de mim.

Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.

Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi... mas recordo

A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.

(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que não sonhei!...)

E sinto que a minha morte-
Minha dispers ão total-
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.

Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.

Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos

Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas pra se dar...
Ninguém mas quis apertar...
Tristes mãos longas e lindas...

Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...

Desceu n'alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.

Alcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal.

Perdi a morte e a vida.
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida
Eu sigo-a, mas permaneço...
... ... ... ... ... ... ... ... ...

Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba...


Mário de Sá-Carneiro. Dispersão.Lisboa, 1914., p.10
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