quarta-feira, 31 de julho de 2024
''O tédio esmagava-a na solidão.''
José Almada Negreiros. Nome de Guerra. Livros RTP. Editorial Verbo. p. 49
«O sono para ela era cair fulminada pelo excesso e pela fadiga. Apenas acordava, tudo lhe era hostil em redor. Os móveis do quarto, o vestido que despira ao deitar e que ficara metade no chão e metade na cadeira, os sapatos distantes um do outro, o chapéu na maçaneta da cama, as recordações da véspera, o sol a querer por força entrar pelas frinchas, o movimento da cidade que se ouvia lá fora, o dinheiro espalhado no mármore do toilette, o estômago, a bronquite, tudo, tudo contra ela, tudo lhe gritava, a uma, a mesma palavra: Guerra!»
José Almada Negreiros. Nome de Guerra. Livros RTP. Editorial Verbo. p. 48«Ele tinha deixado passar a vez natural de todas as suas idades. Não foi criança na idade de ser criança, não foi selvagem na idade de ser selvagem, não foi violento na idade de ser violento, não errou em todas as idades de errar, por culpa da sua educação em que o quiseram levar a bom fim, mas na qual ficou, afinal, encalhado a meio da vida!»
José Almada Negreiros. Nome de Guerra. Livros RTP. Editorial Verbo. p. 45''Havia uma grande lacuna na sua vida, e sentia-se apartado do resto do mundo, como se tivesse crescido a maré e ele ficasse no mar em cima de um rochedo sem ligação com a terra. Ele estava efectivamente na idade de juntar-se. Ia muito seguro no que pensava e bem atento, por isso soube agarrar uma ideia feliz que lhe veio de repente:
- A mulher!''
José Almada Negreiros. Nome de Guerra. Livros RTP. Editorial Verbo. p. 39
O Antunes decidia fazer convergir todos os seus passos num único fito: a escolha da sua companheira. O motivo desta resolução estava na lembrança do que era a sua vida ultimamente, sem progresso, sem explicação, parada, inútil, nula. A causa desta estagnação era a falta de uma companheira. ''
José Almada Negreiros. Nome de Guerra. Livros RTP. Editorial Verbo. p. 38/9
''Entre ele e a mulher nua e a sua educação punha uma distância que não era destruída pelo desejo da carne. A sua educação obriga-o a uma posição vertical, com os braços bem juntos ao corpo, a cabeça direita e os olhos em frente, para ser um homem diferente de um animal!''
José Almada Negreiros. Nome de Guerra. Livros RTP. Editorial Verbo. p. 38
Estou desejosa de que chegue Novembro, os dias de chuva, a geada, tudo que não seja este Verão interminável.
Frederico García Lorca. A Casa de Bernarda Alba. Publicações Europa-América, Lisboa, p. 83
''piranhas-metálicas''
Natália Correia. Antologia Poética. Organização, selecção e prefácio Fernando Pinto do Amaral. 4ª Edição. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2019., p. 194
Colour Grey Poem by Herta Müller
1.
I grow time, beans, the colour gray
And stitch the shadows of a dying day
They make a woman, rather a girl
Lost in the ocean like a grain of pearl
The swans of Coole fly over me
Will they rest for a while by me!
Maybe it's my turn now.
Deep in the frost where my eyes shall never go
The leopard will print his paw
And with a sudden leap break free
All the chimes of poetry
Maybe it's my turn now.
The rough beast was never born
Though we devised a cage for his morn
Maybe it's my turn now.
I have a tale to tell I shall also ring the bell
When you start believing
When you start hearing
Maybe it's my turn now.
2.
These days I don't think of you
But after the soot covers me
I begin to wonder where those
Evenings have gone, those wanderings
In the spacious lawns of enchantment
That smacked of no design, though
We were bent on making a sense
The early birds get their worms
I lie in the tireless ticking of my old watch
Counting the bits of frozen blood,
Listening to the worms
That are in all of us
Then I begin to crawl towards the womb
That threw me off a long way back
And look for the dark, the black hole
To suck me up.
3.
I was nice to him
He was nice to me
Only
Our doors, our windows
Kept closed
Lest we smell each other.
Translated into English by Roger Woodhouse
CORO DOS ÓRFÃOS
Nós, órfãos,
Queixamo-nos do mundo:
Deceparam nosso ramo
E lançaram-no ao fogo –
Transformaram em lenha quem nos protegia –
Nós, órfãos, jazemos nos campos da solidão.
Nós, órfãos,
Queixamo-nos do mundo:
Na noite nossos pais brincam conosco de esconde-esconde –
Por detrás das negras dobras da noite
Fitam-nos seus rostos,
Falam suas bocas:
Fomos lenha seca na mão de um lenhador –
Mas nossos olhos tornaram-se olhos de anjos
E olham para vós,
Por entre as negras dobras da noite
Eles olham –
Nós, órfãos,
Queixamo-nos do mundo:
Pedras tornaram-se nosso brinquedo,
Pedras têm rostos, rostos de pai e mãe,
Não murcham como flores, não mordem como bichos –
E não ardem como lenha seca quando lançadas no forno –
Nós, órfãos, queixamo-nos do mundo:
Mundo por que nos tiraste as ternas mães
E os pais que dizem: Tu te pareces comigo!
Nós, órfãos, não nos parecemos com ninguém mais no mundo!
Ó Mundo,
Nós te acusamos!
EM MEU QUARTO
Em meu quarto,
onde fica minha cama
uma mesa uma cadeira
o fogão
o universo está ajoelhado como em toda parte
para ser salvo
da invisibilidade –
Eu traço uma linha
escrevo o alfabeto
pinto o lema suicida na parede
de onde brotam imediatamente os renascimentos
já prendo as constelações à verdade
então a terra começa a martelar
a noite se afrouxa
desprende-se
dente morto da dentadura –
A VÓS, QUE CONSTRUÍS A NOVA MORADA
Há pedras como almas.
Rabbi Nachman
Fogão, catre, mesa e cadeira –
Não os enfeites com tuas lágrimas, os que partiram
Que não mais habitarão contigo
Na pedra
Nem na madeira –
Senão haverá choro no teu sono
No curto sono que ainda tens de dormir.
Não suspires ao estenderes teu lençol –
Senão misturam-se teus sonhos
Com o suor dos mortos.
Ah, paredes e utensílios
São sensíveis como harpas eólicas
E como um campo onde viceja tua dor,
E sentem o que em ti é parente do pó.
Constrói enquanto escorre a clepsidra
Mas não chores os minutos que correm
Junto com o pó
Que encobre a luz.
Façanhas da memória
Há uma casa,
uma casa
que fechou
suas portas.
Foi
morrendo
em nome
e graça
da mesmíssima
vida.
Esta casa
abandonou
o salão
solenemente,
sem deixar
fotografias,
nem fantasmas
cochilando
por aí
pelas escadas;
nem sequer
um resplendor
de vozes
se gestando
nos quartos
de serviço
ofendidas na sombra
chorando
seu direito
à memória
Esta casa
onde não há
antepassados
escalando
o tempo,
enredando
parentes
terra
adentro
onde vão se
s o m a n d o.
Tardança
Foram juntando
palavras intencionadas
uma
a
uma
iam entrando
pela fissura da porta
onde aparecem cartas
algumas vezes
quando a casa
está
desabitada.
Teresa Calderón (Causas perdidas, 1984)
Exílio
I.
Ontem te chamei
e minha própria sombra
respondeu no telefone
II.
Adeus eu disse docemente
e a rua cresceu cresceu
como a noite
III.
Seu corpo luta na parede.
Meu quarto
não pode te deixar ir
sem me ferir
IV.
Fantasma tresnoitado do amanhecer
cantando seu próprio tango
de pé chorando
sobre o balcão de uma mulher
também fantasma.
Roteiro dos desaparecidos
Reconstruir a luz para os que nunca mais a verão
a luz que nasce deles
asilada luz permanecente no
sótão da visão
desaparecida
riscada
é o roteiro reconstituído dessa morte
não de todo vivida
porque volta inconclusa a aparecer
a vigiar a vida de longe.
Roteiro do pensamento invertido na faceta subliminar
à margem de qualquer quimera subvertida
Roteiro desse sótão e sua persistência
escura
quando a cidade virada em seu próprio ofertório
se converte em santuário
Onde emergem os mortos resplandecentes
Pelo brilho ameaçante dos cactos
seus olhos veem os vivos lascivamente.
Mas há mais: eles colocam grandes placas de vidro
opacas
para resistir ao cruzamento dos edifícios
sem defesa.
Desafiando a cor do sol
com seu penetrante verde subterrâneo
inundam a cidade.
Cresce então sua antiga primavera
na qual os vivos submergem como num sonho
implacável.
Eugenia Brito (Vía pública, 1984)
domingo, 28 de julho de 2024
sexta-feira, 26 de julho de 2024
ANIVERSÁRIO
(Excerto)
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
(…)
O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes…
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio…
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos…
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim…
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui…
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos…
(…)
Poesias dos Outros Eus. Álvaro de Campos