sexta-feira, 14 de agosto de 2009

In Pursuit of Other Things

XX

Quem vem lá, ansioso, rude, místico, nu?
Como retiro forças da carne que me alimenta?

Em todo o caso, o que é um homem? Quem sou eu? Quem és tu?

Tudo o que assinalo meu chamarás teu,
Ou então perderias tempo a escutar-me.

Não lamento o que o mundo lamenta,
Que os meses são vazios e a terra apenas lodoçal e imundície.

O queixume e a humilhação juntam-se aos remédios para os inválidos, o
conformismo vai até à quarta geração,
Eu uso o chapéu como me apetece, dentro ou fora de casa.

Porque é que devia rezar? E venerar e ser cerimonioso?

Tendo examinado os estratos, analisando-os ao pormenor, consultando os
mestres, calculando com rigor,
Não encontro gordura mais agradável do que a que tenho agarrada aos meus
próprios ossos.

Em toda a gente vejo-me a mim mesmo, ninguém é mais do que eu, nem um
grão de cereal menos,
E o bem e o mal que digo de mim digo deles.

Sei que sou sólido e são,
Os objectos do universo convergem eternamente para mim,
Tudo foi escrito para mim e devo decifrar o seu sentido.
Sei que sou imortal,
Sei que esta minha órbita não pode ser traçada pelo compasso de um
carpinteiro,
Sei que não me apagarei como o fogo do archote que uma criança leva pela noite.

Sei que sou majestoso,
Não atormento o espírito para quem se defenda ou explique,
Sei que as leis elementares nunca se desculpam,
(No fim de contas, reconheço que o meu orgulho não é mais alto que o nível
onde edifico a minha casa).

Existo como sou, e isso basta,
Se mais ninguém no mundo o sabe fico satisfeito,
E se todos e cada um o sabem fico satisfeito.

Há um mundo que o sabe e é sem dúvida o mais vasto para mim, e esse sou
eu próprio,
E se o reconheço hoje ou dentro de dez mil ou dez milhões de anos,
Alegremente o posso aceitar agora, ou alegremente posso esperar.

O apoio do meu pé é entalhado em granito,
Rio-me daquilo que chamas dissolução,
E conheço a amplitude do tempo.

Walt Whitman
in Canto de Mim Mesmo
Assírio & Alvim, 1999

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Várakozás (1964) · Wait

Ode à indolência

Eles não trabalham,
nem fiam.

S. Mateus, VI, 28



Surgiram, numa manhã, diante de mim três formas
de perfil, com cabeças inclinadas e as mãos juntas.
Uma atrás das outras, serenamente, elas passavam
com silenciosas sandálias, ornadas apenas dos seus vestidos
brancos;
assim caminhavam como as figuras inscritas numa urna de
mármore
enquanto a voltamos, para que nos mostre a sua outra face.
E, de novo, apareceram: como se principiássemos a deslocar
mais uma vez a urna e, depois, olhássemos as mesmas
imagens.
Eram para mim desconhecidas; também para os que não
ignoram
a arte de Fídias, por vezes são misteriosas as figuras de cada
vaso.

Sombras, porque me foi impossível reconhecer-vos?
Porque surgistes ocultas por essa máscara de silêncio?
Foi, acaso, graças a um acordo secreto e furtivo
que vos esquivastes, deixando que sem destino se percam
os meus dias inúteis? Amadurecida estava a hora que se
desprendeu;
o ditoso nevoeiro que nasce da indolência estival
afogou-me os olhos; o meu pulso ficou ainda mais lento;
a dor já não me feria e a grinalda do prazer perdeu as suas flores.
Oh, porque não vos desvanecestes, deixando a minha
consciência
vazia de qualquer desígnio, a não ser o do nada.

Porque viestes de novo, tão lentas, ao meu encontro?
O meu sono fora tecido com imagens obscuras;
era a minha alma semelhante a uma planície aspergida
de flores, sombras agitadas e indistintas luzes;
as nuvens permaneciam sobre a manhã, mas a chuva não
caiu
apesar de se verem nas suas pálpebras as suaves lágrimas de
Maio;
pela janela aberta, junto de uma vinha cheia de novas folhas,
entrava a canção de uma ave, o calor das flores que nasciam.
Sombras! Foi este o momento em que vos despedistes
e, sobre a orla dos vossos vestidos, não desceu o meu
pranto

Vieram ainda uma terceira vez e, passando, cada uma
voltou para mim, durante um instante, a sua face.
Depois desapareceram; para persegui-las, sentia arder o
desejo
de ter asas, porque reconheci cheio de dor aquelas três
sombras.
A primeira era uma formosa donzela, e chamava-se Amor;
a segunda era a Ambição, de rosto pálido,
cujos olhos fatigados permaneciam sempre em vigília;
e a última, aquela que eu amei tão veementemente
apesar de todas as condenações, era a virgem indócil
em que reconheci a Poesia, meu demónio.

Assim desapareceram e, naquele momento, como queria ter
asas.
Ó loucura! Que significa o Amor, e onde encontrá-lo?
E a Ambição, que nasce apenas dum acesso de febre
e atravessa, sem se demorar, o coração estreito do homem.
Nem sequer te desejo, Poesia: a mim, nunca vieste mostrar
a alegria, tão suave como os meios-dias sonolentos
ou o anoitecer molhado pelo mel da indolência.
Ah! como gostaria de viver protegido de todos os desgostos
até esquecer qual é o movimento das luas
ou deixar de ouvir as vozes dos outros, sensatas e diligentes.

Adeus, três sombras, adeus! Não podereis fazer com que
levante
a minha cabeça, apoiada sobre a erva florida e tão fresca,
porque não quero ser, como numa parábola, o cordeiro que
todos vêm acariciar,
ou que se transformem os elogios no meu alimento.
Desaparecerei suavemente diante dos meus olhos, e mais
uma vez
transformai-vos em personagens obscuras sobre a urna do
sonho.
Adeus! Para a noite existem dentro de mim outras visões
e, para o dia, guardo ainda indistintas imagens.
Sombras, dissipai-vos agora. Longe da indolência do meu
espírito
caminhai para as nuvens, e nunca mais regresseis...

Keats
in Poesia Romântica Inglesa (Byron, Shelley, Keats)
Relógio D'Água, 1992
Trad: Fernando Guimarães

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

A gata 'Salva' na livraria



para acompanhar a história da 'Salva' ver http://bazardosronrons.blogspot.com/

XVII

Quanto mais claro
Vejo em mim, mais escuro é o que vejo.
Quanto mais compreendo
Menos me sinto compreendido. Ó horror
[…]paradoxal deste pensar...


Fernando Pessoa
in Poemas Dramáticos
Edições Ática,



Homem-Guarda-Chuva - 1954

“Uma coisa é escrever cartas a uma mulher que não se conhece, e outra inteiramente diferente é visitá-la e fazer-lhe amor”.
(pp. 91)

“Dantes pensava que um pássaro não podia voar se molhasse as asas”
(pp.30)


Henry Miller
in Trópico de Câncer
“O poeta não é o que nomeia as coisas, mas sim o que dissolve os nomes, o que descobre que as coisas não têm nome e que os nomes com que as chamas não são seus”


Octávio Paz
in O Macaco Gramático
pp. 88

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Portishead - Roads

XXVI



Agora só me resta ouvir,
Para juntar o que oiço a este canto, para deixar que os sons contribuam para
ele.

Oiço bravuras de pássaros, o rumor do trigo que cresce, o crepitar das
chamas, o crepitar da lenha com que cozinho,
Oiço o som que amo, o som da voz humana,
Oiço todos os sons, juntos, combinados, fundidos ou seguindo-se,
Sons da cidade e sons fora da cidade, sons do dia e da noite,
Jovens conversando com quem gostam, o alto risco dos trabalhadores quando
almoçam,
Os irados sons da amizade quebrada, a voz débil dos doentes,
O juiz com as mãos agarradas à secretária, com os lábios pálidos ditando uma
sentença de morte,
As elevadas vozes dos estivadores descarregando os navios junto ao molhe,
o refrão dos que levantam a âncora,
As sirenes de alarme que tocam, o grito de fogo, o zumbido imediato dos
motores de dos carros dos bombeiros com as sirenes e as luzes de
cores,
O silvo do vapor, o sólido rodar da caravana de carroças que se aproximam,
A marcha lenta tocada à cabeça do grupo que avança aos pares,
(Vão a algum funeral, as bandeiras estão cobertas de musselina negra).

Oiço o violoncelo, (é o lamento de um coração jovem),
Oiço a corneta de chaves penetrando velozmente nos meus ouvidos,
Fazendo estremecer o meu ventre e o meu peito num doce espasmo.

Oiço o coro da ópera,
Ah, isto sim, é música - isto está em harmonia comigo.

Grandiosa e fresca como a criação enche-me a voz do tenor,
A órbita flexível da sua boca derrama-se e sacia-me.

Oiço a perfeita soprano (que vale o meu canto comparado com o seu?)
A orquestra conduz-me em círculos mais largos que os de Urano,
Desperta-me ardores de que nunca suspeitara,
Faz-me navegar, tocar águas com os pés nus, as ondas que os lambem
indolentemente,
O granizo bate-me com toda a fúria, perco o ânimo,
Mergulho na doce morfina, estrangulam-me os falsos sinais da morte,
Por fim, de novo me ergo para sentir o enigma dos enigmas,
Isso a que chamamos Ser.


Walt Whitman
in Canto de Mim Mesmo
Assírio & Alvim, 1999

I


Celebro-me e canto-me,
E aquilo que assumo tu deves assumir,
Pois cada átomo que a mim pertence a ti pertence também.

Vagueio e convido a minha alma,
À vontade vagueio e inclino-me a observar a erva do Verão.
A minha língua, cada átomo do meu sangue, composto deste solo, deste ar,
Aqui nascido de pais aqui nascido de outros pais aqui nascido, e dos seus
pais também
Eu, aos trinta e sete anos, de perfeita saúde começo,
Esperando que só a morte me faça parar.

Suspensos os credos e as escolas,
Retiro-me por certo tempo, deles saturado mas não esquecido,
Sou o porto do bem e do mal, e seja como for falo,
Natureza sem obstáculos com a sua energia original.


Walt Whitman
in Canto de Mim Mesmo
Assírio & Alvim, 1999

domingo, 9 de agosto de 2009



recebe-me, coração espesso de sangue,

papel, com quem (medido e franco, como era seu costume:
«a alma dilacero», pensou, e retomou a pena:)

até ao fim, terei as mãos pousadas
não em ti, mas no ar puro que o vento
leva à leve corola do teu corpo,

meu filho. Recebe-me

folha que o tempo dobra ao fim da tarde, («como se a frase
trouxesse, fria e dócil, uma esperança de trazer por casa;
deste cigarro a outro, alguma coisa se perdeu»)

tu, terra negra, húmida de arbustos,
coisa desmazelada para servir, de casa em casa, quando
o cântaro se quebra,

terra minha, feita de sangue e ossos e
o vácuo chão da carne,
meus olhos até ao fim abertos, esses que nada esperam

nada viram senão
o simples sopro, a folha - recebe-me, alegria sem
idade de razão,

inteira vida a cada instante eterno, (pousava dor e mágoa,
a luz dos instrumentos na espessura;
e retomava a pena:)

nos hoje sentados, em cadeiras errantes, nós que não merecemos a tua
[alegria nem
o choro sobre um cartão, desenhado a lápis,
nós que cerrámos os ombros e as portas e ficámos a ver passar

águas sem barcos,
um dia ou outro em Madagáscar, gente pequena, no Sodré sem cais
recebe-nos

não pelo mérito das bocas lavadas e das camisas brancas
e do rojão que cabe a cada um, não pela virtude
não pela viagem, em muitos mundos partida nunca chegada

não pelo vício menor do sofrimento, não pela sede que grita água! quando
todas as folhas ardem, não pelo fogo pois
só vemos o fumo e não vemos, só cegos, só o

sangue que passa, uma vez mais, no coração («virás no teu sangue»,
lembrou - casa, colina, árvore, céu, sempre - não,
«viverás no teu sangue»:)

(...)

António Franco Alexandre
in Poemas
Assírio & Alvim, 1996

Sodade

sábado, 8 de agosto de 2009

Jim Morrison Posing in Front of Red and Yellow Psychedelic Backdrop

Luggala

Para Garech Browne

Uma e outra vez, em sonhos, regresso àquela margem. Há um vento que se levanta, uma gaivota tenta rasar os pinheiros, as ondas murmuram e rebentam ao longo da clara foice da pequena praia.
Abrindo caminho por entre juncos e caniços, saltando um riacho lamacento, aproximo-me do templo à beira de água, santuário da morte, pedra angular da tua tristeza. Fico de pé lá dentro, junto de um dos pilares do mausoléu, observo a água na taça de pedra. Quando assa a ondulação do vento, surge uma calma superfície, como um espelho ou um cristal. E nela se ergue a tua face, triste para além das palavras, triste com a aceitação de uma sequência cega, implacável. É que há três túmulos junto deste templo cinzento, de um irmão mais novo, de uma meia-irmã e de um irmão adulto, morto aos vinte e um anos. Os seus monumentos de granito de Wicklow são aqui tão naturais como as rochas dispersas, mas não há qualquer promessa de ressurreição, apenas silêncio derradeiro do lugar, a face xistosa e desfeita do cascalho, as escuríssimas águas do lago glacial.


John Montague
in Uma Luz Diferente
Quetzal Editores, 1993

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

The girl of Otaheite ( an ode)

_("O! dis-moi, tu veux fuir?")_

[Bk. IV, vii., Jan. 31, 1821.]


Forget? Can I forget the scented breath
Of breezes, sighing of thee, in mine ear;
The strange awaking from a dream of death,
The sudden thrill to find thee coming near?
Our huts were desolate, and far away
I heard thee calling me throughout the day,
No one had seen thee pass,
Trembling I came. Alas!
Can I forget?

Once I was beautiful; my maiden charms
Died with the grief that from my bosom fell.
Ah! weary traveller! rest in my loving arms!
Let there be no regrets and no farewell!
Here of thy mother sweet, where waters flow,
Here of thy fatherland we whispered low;
Here, music, praise, and prayer
Filled the glad summer air.
Can I forget?

Forget? My dear old home must I forget?
And wander forth and hear my people weep,
Far from the woods where, when the sun has set,
Fearless but weary to thy arms I creep;
Far from lush flow'rets and the palm-tree's moan
I could not live. Here let me rest alone!
Go! I must follow nigh,
With thee I'm doomed to die,
Never forget!

Victor Hugo
in Poems, 1888
Translated by Clement Scott


"Desde que me cansei de procurar,
aprendi a encontrar;
Desde que o vento começou a soprar-me na face,
velejo com todos os ventos."

Nietzche (1887)
in A Gaia Ciência

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

A tarde

As tardes que serão e têm sido
são uma só, inconcebivelmente.
São um claro cristal, só e dolente,
inacessível ao tempo e seu olvido.
São os espelhos dessa tarde eterna
que num céu se entesoura.
Naquele céu então o peixe, a aurora
a balança, a espada e a cisterna.
Um e todos os arquétipos. Assim Plotino
nos ensina nos seus livros, que são nove;
pode bem ser que a nossa vida breve
seja um reflexo fugaz do divino.
A tarde elementar ronda a casa.
A de ontem, a de hoje, a que não passa.

Jorge Luis Borges (1985)
in Os conjurados
Editora Difel, 2 ª ed.
Tradução de Maria Piedade M. Ferreira e
Salvato Teles de Meneses

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Teresa morta na terra

Uma menina chamava-se Teresa.
Tinham-lhe arrancado o coração.
Estava morta.
A mãe e o pai e o avô e a avó e a tia
choravam.
A menina tinha saudades da praia.
Debaixo da terra estava quente e o sangue foi para a
terra.
Depois, na cabeça, nasceu uma flor preta.
Estava com pena.
E as pessoas passavam e não sabiam que estava ali
aquela menina.
Só os pássaros sabiam. E o sol sabia, porque está no
céu e vê tudo.

maria da conceição
6 anos


Colectânea de textos Infantis por
Maria Rosa Colaço
Edições Itau

Choose Love - Rita Redshoes

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Amor, de tarde

Es una lástima que no estés conmigo
cuando miro el reloj y son las cuatro
y acabo la planilla y pienso diez minutos
y estiro las piernas como todas las tardes
y hago así con los hombros para aflojar la espalda
y me doblo los dedos y les saco mentiras.

Es una lástima que no estés conmigo
cuando miro el reloj y son las cinco
y soy una manija que calcula intereses
o dos manos que saltan sobre cuarenta teclas
o un oído que escucha cómo ladra el teléfono
o un tipo que hace números y les saca verdades.

Es una lástima que no estés conmigo
cuando miro el reloj y son las seis.
Podrías acercarte de sorpresa
y decirme « Qué tal?» y quedaríamos
yo con la mancha roja de tus labios
tú con el tizne azul de mi carbónico.

Mario Benedetti
in El amor, las mujeres y la vida
Santillana Ediciones Generales, 2009

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Poema

Faz-se luz pelo processo
de eliminação de sombras
Ora as sombras existem
as sombras têm exaustiva vida própria
não dum e doutro lado da luz mas no próprio seio dela
intensamente amantes loucamente amadas
e espalham pelo chão braços de luz cinzenta
que se introduzem pelo bico nos olhos do homem

Por outro lado a sombra dita a luz
não ilumina realmente os objectos
os objectos vivem às escuras
numa perpétua aurora surrealista
com a qual não podemos contactar
senão como amantes
de olhos fechados
e lâmpadas nos dedos e na boca.


Mário Cesariny
in Pena Capital
Assírio & Alvim, 1999

Ode à melancolia

Não, não te aproximes do rio Letes, nem queiras
recolher
o vinho venenoso do acónito, cujas raízes estão entrelaçadas;
evita que a tua fonte pálida se deixe beijar
pela beladona, as vermelhas bagas de Prosérpina;
não teças o teu rosário com as sementes dos cipestres,
nem deixes que o escravelho ou a borboleta nocturna
sejam a tua fúnebre Psique, ou que se torne o mocho,
de penugem tão macia, o confidente da tua dor misteriosa
- porque, unida às outras sombras, uma sombra virá
cheia de torpor
e há-de extinguir, dentro da tua alma, uma angústia vigilante.

Mas se, inesperado, o acesso de melancolia descer
do céu, como se fossem as lágrimas de uma nuvem
que reanima as flores, cujas hastes tristemente pendiam,
e as verdes colinas oculta sob um véu primaveril,
então, deixa que se tranquilize a tua dor sobre uma rosa
matinal,
sobre o arco-íris que surge junto às vagas e à areia salgada
ou sobre o esplendor esférico das peónias;
ou se, cheia de delícia, aquela que tu amas se exalta,
pega na sua mão delicada, deixa que ela delire
e bebe nos seus incomparáveis olhos, longamente.

Como ela vive a beleza - a beleza que deve morrer,
e a alegria cuja mão se leva aos lábios
para dizer adeus; e, próximo, fica o doloroso prazer
que se transforma em veneno quando as abelhas dos lábios o
aspiram.
Sim, no interior do próprio templo da alegria
está o altar soberano da melancolia, coberta de véus,
apenas visível para aquele que consegue provar
as uvas da alegria, com um impetuoso e puro desejo;
mas o seu espírito depois há-de sentir amargamente
o poder que ela tem ao ficar entre os seus troféus
nebulosos...

Keats
in Poesia Romântica Inglesa (Byron, Shelley, Keats)
Relógio D'Água, 1992
Trad: Fernando Guimarães

terça-feira, 21 de julho de 2009

O homem de barbas grisalhas, crespas pela humidade do suor, dos passos chegados do deserto - entrou na taberna.Tirou um banco de uma mesa de madeira e sentou-se a ler a cela ocupada por homens - todos eles finíssimos exemplares de mediocridade. Alguns não eram mais do que avestruzes, com incontinência urinária e escassez existencial. Olhando em redor, ali vagueavam orações tiranas ao sabor de ginja, dos rosés, e água ardente. O homem de barbas, rodou o corpo, dirigiu-se ao balcão e pediu num tom grave, o chamado vinho de mesa. Espreitou os bolsos das calças de linho manchadas de tristeza, a apalpar o dinheiro e encontrou três migalhas de pão. Com um gesto medido deixou as esmolas de pão, ali, naquele balcão barrento e chegaram não pombos, mas animais necrófagos atraídos pelo odor da morte. Essa (a morte) adiantou-se, e veio ver os homens podres dentro da cela. O homem de barbas ouviu com o coração o grito dos corvos - o som do ar assombrado debaixo das montanhas; porém, permutando entre o ar e a luz difusa, os risos zombeteiros, os homens na cela ouviram o rugido do jaguar - o cântico nos olhos daquele Homem e, como que subitamente vexados, verteram-se ao silêncio. Não saberiam dizer, mas todos sentiram a passagem do pó vindo do deserto, e na manhã seguinte urinaram sangue, para espanto das lavadeiras do rio de águas puras e cristalinas.

A melhor maneira de viajar é sentir

Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente,
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas
E toda a realidade é um excesso, uma violência,
Uma alucinação extraordinariamente nítida
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.

Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
Quanto mais personalidade eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.
Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,
Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo,
E fora d'Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco.

Cada alma é uma escada para Deus,
Cada alma é um corredor-Universo para Deus,
Cada alma é um rio correndo por margens de Externo
Para Deus e em Deus com um sussurro soturno.

Sursum corda! Erguei as almas! Toda a Matéria é Espírito,

Porque Matéria e Espírito são apenas nomes confusos
Dados à grande sombra que ensopa o Exterior em sonho
E funde em Noite e Mistério o Universo Excessivo!
Sursum corda! Na noite acordo, o silêncio é grande,
As coisas, de braços cruzados sobre o peito, reparam

Com uma tristeza nobre para os meus olhos abertos
Que as vê como vagos vultos noturnos na noite negra.
Sursum corda! Acordo na noite e sinto-me diverso.
Todo o Mundo com a sua forma visível do costume
Jaz no fundo dum poço e faz um ruído confuso,

Escuto-o, e no meu coração um grande pasmo soluça.

Sursum corda! ó Terra, jardim suspenso, berço
Que embala a Alma dispersa da humanidade sucessiva!
Mãe verde e florida todos os anos recente,
Todos os anos vernal, estival, outonal, hiemal,
Todos os anos celebrando às mancheias as festas de Adônis
Num rito anterior a todas as significações,
Num grande culto em tumulto pelas montanhas e os vales!
Grande coração pulsando no peito nu dos vulcões,
Grande voz acordando em cataratas e mares,
Grande bacante ébria do Movimento e da Mudança,
Em cio de vegetação e florescência rompendo
Teu próprio corpo de terra e rochas, teu corpo submisso
A tua própria vontade transtornadora e eterna!
Mãe carinhosa e unânime dos ventos, dos mares, dos prados,
Vertiginosa mãe dos vendavais e ciclones,
Mãe caprichosa que faz vegetar e secar,
Que perturba as próprias estações e confunde
Num beijo imaterial os sóis e as chuvas e os ventos!

Sursum corda! Reparo para ti e todo eu sou um hino!
Tudo em mim como um satélite da tua dinâmica intima
Volteia serpenteando, ficando como um anel
Nevoento, de sensações reminescidas e vagas,
Em torno ao teu vulto interno, túrgido e fervoroso.
Ocupa de toda a tua força e de todo o teu poder quente
Meu coração a ti aberto!
Como uma espada traspassando meu ser erguido e extático,
Intersecciona com meu sangue, com a minha pele e os meus nervos,
Teu movimento contínuo, contíguo a ti própria sempre,

Sou um monte confuso de forças cheias de infinito
Tendendo em todas as direções para todos os lados do espaço,
A Vida, essa coisa enorme, é que prende tudo e tudo une
E faz com que todas as forças que raivam dentro de mim
Não passem de mim, nem quebrem meu ser, não partam meu corpo,
Não me arremessem, como uma bomba de Espírito que estoira
Em sangue e carne e alma espiritualizados para entre as estrelas,
Para além dos sóis de outros sistemas e dos astros remotos.

Tudo o que há dentro de mim tende a voltar a ser tudo.
Tudo o que há dentro de mim tende a despejar-me no chão,
No vasto chão supremo que não está em cima nem embaixo
Mas sob as estrelas e os sóis, sob as almas e os corpos
Por uma oblíqua posse dos nossos sentidos intelectuais.

Sou uma chama ascendendo, mas ascendo para baixo e para cima,
Ascendo para todos os lados ao mesmo tempo, sou um globo
De chamas explosivas buscando Deus e queimando
A crosta dos meus sentidos, o muro da minha lógica,
A minha inteligência limitadora e gelada.

Sou uma grande máquina movida por grandes correias
De que só vejo a parte que pega nos meus tambores,
O resto vai para além dos astros, passa para além dos sóis,
E nunca parece chegar ao tambor donde parte...

Meu corpo é um centro dum volante estupendo e infinito
Em marcha sempre vertiginosamente em torno de si,
Cruzando-se em todas as direções com outros volantes,
Que se entrepenetram e misturam, porque isto não é no espaço
Mas não sei onde espacial de uma outra maneira-Deus.

Dentro de mim estão presos e atados ao chao
Todos os movimentos que compõem o universo,
A fúria minuciosa e dos átomos,
A fúria de todas as chamas, a raiva de todos os ventos,
A espuma furiosa de todos os rios, que se precipitam,

A chuva com pedras atiradas de catapultas
De enormes exércitos de anões escondidos no céu.

Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio
De estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh'alma.
Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, sacode,
Freme, treme, espuma, venta, viola, explode,
Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge,
Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida,
Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes,
Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e fogos,
Sobrevive-me em minha vida em todas as direcções!

Álvaro de Campos
in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa

EPIPSYCHIDION (5)

.............................................

Existia um Ser que o meu espírito
tantas vezes encontrava, lá no alto, entre os sonhos
ao despontar a manhã clara e dourada da juventude;
sobre as ilhas encantadas, com luminosas clareiras
entre montanhas maravilhosas, e as cavernas
do sono divino; sobre a ondulação aérea
de sonhos cheios de prodígio, cujo oscilante chão
suportava os seus ligeiros passos, e numa margem
imaginada sob a pálida falésia de qualquer promontório,
-esse Ser vinha ao meu encontro, vestido de tal esplendor
que se tornava para mim invisível. Com a solidão,
a sua voz veio até mim dos bosques sussurrantes,
chegou com o canto das fontes, com o profundo aroma
das flores, como se os próprios lábios do sonho
murmurassem os suaves beijos que a adormecem
e, na atmosfera enamorada, apenas falassem do seu nome;
chegou com o maior ou menor rumor das brisas,
com as chuvas que caem de todas as nuvens,
com a harmonia dos pássaros do estio,
com todos os sons, e o silêncio. Nas palavras
de poemas antigos e de lendas - na sua forma,
sonoridade, cor - , em tudo o que pacifica aquela
Tempestade
que sufoca o passado com o presente destruído,
nesta suprema filosofia, cujos indícios
são o destino que conduz a nossa dolorosa vida
a um glorioso, ardente martírio,
ficava o seu espírito, a harmonia da verdade.
Erguia-me das cavernas onde sonhava a minha juventude
e encaminhava-me, com sandálias de fogo,
em direcção ao astro do meu único desejo,
voava perturbado como uma falena, cujo movimento
é igual a uma folha morta numa luz crepuscular
quando vai procurar junto de Vésper
uma morte luminosa, um radioso sepulcro,
como se fosse a lâmpada duma chama terrestre.

Shelley
in Poesia Romântica Inglesa (Byron, Shelley, Keats)
Relógio D'Água, 1992
Tradução de Fernando Guimarães
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