sábado, 23 de novembro de 2024

Solidão



Ó solidão! À noite, quando, estranho,
Vagueio sem destino, pelas ruas,
O mar todo é de pedra… E continuas.
Todo o vento é poeira… E continuas.
A Lua, fria, pesa… E continuas.
Uma hora passa e outra… E continuas.
Nas minhas mãos vazias continuas,
No meu sexo indomável continuas,
Na minha branca insônia continuas,
Paro como quem foge. E continuas.
Chamo por toda a gente. E continuas.
Ninguém me ouve. Ninguém! E continuas.
Invento um verso… E rasgo-o. E continuas.
Eterna, continuas… Mas sei por fim que sou do teu tamanho!

mortandade

saturnália

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Que Pena (Ele Já Não Gosta Mais De Mim)

 «Um homem que é incapaz de suportar a dor de amar uma mulher, uma mulher que é incapaz de suportar a dor de amar um homem, devem ir alegremente à procura de outros parceiros, e assim descobrir uma forma de reforçarem a lealdade nos seus corações.»

Yasunari Kawabata. O Som da Montanha. Tradução de Francisco Agarez. D. Quixote., p. 16

sarrabiscos

 ''Se não cometes erros, não estás realmente a tentar.''

Coleman Hawkins

La décadanse

terça-feira, 19 de novembro de 2024

 


''nenhuma morte é tão longa quanto a vida''

 José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 194

 « O amor, ditam os frios de coração, é ruinoso

qualquer momento em chamas

denunciará a imprecisa inquietação que nos toma


Os inocentes que se amam dizem

teu corpo está a nevar

tua alma é uma flor

um prado tranquilo sua noite »


 José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 193

''um branco lunar''

 José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 190

Consuelo e Antoine de Saint Exupéry


 

'' o amor é uma noite a que se chega só ''

 José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 179

Tremoceiro-das-folhas-estreitas

 ''ponho a mão na boca
para suster um grito''

José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 164

''como os dias nos pedem a dureza''

 

José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 162

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

domingo, 17 de novembro de 2024

O Indesejado (António, Rei)

“Eu ia para a varanda conversar com o Papagaio Verde, não para lhe contar desditas que claramente não entrevia, mas para comungar numa idêntica solidão acorrentada.”


Jorge de Sena,
Conto «Homenagem ao papagaio verde»

sexta-feira, 15 de novembro de 2024


Portrait of Anna May Wong

 

 ONO NO KOMACHI (834? – ?)

O meu desejo de ti

é forte para contê-lo –

assim ninguém vai culpar-me

se à noite for ter contigo

pela estrada de meus sonhos.

 

Não há como vê-lo

nesta noite sem luar –

estou deitada e desperta,

os seios ardendo em desejo

e o coração em chamas.

 

 

Pensei ter colhido

a flor do esquecimento [*]

só para mim mesma;

mas encontrei-a a crescer

também no coração dele.

 

[*] wasuregusa, a palavra japonesa do poema que significa “flor do esquecimento” é o equivalente inglês de “forget-me-not” ou do português “amor-perfeito” – a subtileza decorrente da duplicidade do sentido do poema consoante seja lido na sua literalidade de metáfora ou na significação do real, é um exemplo esplendoroso da beleza inspirada desta poesia onde a concisão se desdobra numa multiplicidade de emoções e sentimentos.

 

 

Escolho agora de ISUMI SHIKIBU (974? – 1034?) apenas alguns poemas de solidão e desejo, com uma que outra amarga reflexão, deixando de fora poemas onde a presença do efémero na natureza transmite, de forma singular, a vulnerabilidade do viver:

 

Se o cavalo dele

tivesse sido domado

pela minha mão –

eu tê-lo-ia ensinado

a não seguir mais ninguém.

 

 

Mesmo quando um rio

de lágrimas atravessa

e molha este corpo,

não chega para apagar

todo o fogo do amor.

 

 

Porque não terei

pensado nisto já antes?

Este corpo meu

ao recordar tanto o teu

tem a marca que deixaste.

 

 

Penso: “nos meus sonhos

poderemos encontra-nos” …

Virando a almofada,

eu ando às voltas na cama

incapaz de adormecer.

 

 

Consumi o corpo

a desejar o regresso

do que não voltou.

É agora um vale profundo

o que foi meu coração

 

Deixada aqui

a envelhecer no mundo

sem ti ao meu lado,

as flores perdem a beleza

tingidas de negra cor.

 

Os poemas encontram-se no livro  O Japão no Feminino – I – Tanka  poesia dos séculos IX a XI, publicado por Assírio & Alvim  em 2007 com organização e versão portuguesa de Luísa Freire.

surripiado aqui
 41

Enquanto contemplo
a forte chuva a cair,
meu coração também morre
na cor que não será vista
nas flores desta Primavera.


Ono No Komachi, in O Japão no Feminino I. Tanka, trad. Luísa Freire, ed. Assírio & Alvim


 

eurocracia

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

O poder foi-se-te.

José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 147

 


1.
que não teve princípio nem há de ter fimque dura muito
2.
figurado perpétuoincessante

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Sei que vai morrer de tristeza.

 «Sei que vai morrer de tristeza. Hoje em dia chamam-lhe depressão, mas aqui sempre foi morrer de tristeza.»


Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p.109


Josephine Cardin

 

''Que sofra em morto o que devia ter sofrido em vida.''

 Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p 70

 « Nós, as mulheres desta família, enviuvamos depressa. Os nossos homens consomem-se como os círios das igrejas, pouco tempo depois de nos termos casado tudo o que resta deles é uma nódoa nos lençóis que não sai mesmo que desfaçamos as mãos a esfregá-la.»

Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p.69

 «Enviai os vossos anjos sobre eles, secai os campos, fazei com que a cevada fique sem grão e a vinha sem uvas, não lhes deis descanso mesmo depois de mortos.»

Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p 64

''ouvia-se o murmurinho da sexta-feira das dores''

Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p 64

 ''Não sei porque razão vemos o que vemos''

Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p 63


Nan Goldin, Falling buildings, Rome (2004)

 

  «Desgraçada, se não estivesses morta matava-te, dizia a velha, mas não servia de grande coisa, como se pode ameaçar uma sombra que se arrastou até aqui vinda sabemos lá de que inferno.»

Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p 62

O Pedro não queria casar comigo, mas nunca mo disse.

  «Casámo-nos de noite e sem convidados. Não houve convites, naquela desonra não havia nada para celebrar. A minha mãe costurou-me o vestido, negro por causa do luto e largo por conta da vergonha.»

 Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p 57

os indesejados

malcriadez

 «A dor continuou a aumentar, sentia que a cabeça estava cheia de vidros, cheia de tesouras.»

  Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p 40

domingo, 10 de novembro de 2024


 

Get Your Head Out

Liberdade, a insuportável.

 José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 144

 « Que os biliões nos não matem, a nós, os dos biliões.
Nós que estamos milénios atrasados de Nós mesmos.»


José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 135
 Não uses palavras
qualquer palavra que me digas há-de doer
pelo menos mil anos

José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 160
 Lançaste ao fogo cidades
afogaste os exércitos
no vermelho mar da sua ira
hipotecaste terras tão preciosas
para estares junto de mim


José Tolentino Mendonça.
 A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 157


 

UMA VELA ACESA

 Onde nada ameaça
sobrevém inesperado o temor:
um coração desce
à morada de outro coração



José Tolentino Mendonça.
 A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 152
 Um dia acordamos tristes da sua tristeza
pois o fortuito significado dos campos
explica por outras palavras
aquilo que tornava os olhos incomparáveis


José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 148
 é assim que rodo
à volta de lugares desconhecidos
nenhum corte me doeu
nunca estive sozinha

José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 131

CALLE PRINCIPE, 25

 Perdemos repentinamente
a profundidade dos campos
os enigmas singulares
a claridade que juramos
conservar

mas levamos anos 
a esquecer alguém 
que apenas nos olhou


José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 102

FOGUEIRAS E GELOS

 Contra o coração
abraçava ramos de flores magras e azuis
sentimentos muito triviais
e por vezes a maior escuridão

Perseguia sem cessar certos gestos
que na paz
seriam seus 

José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 85

The Cure - Alone

mas tu não, tu nunca choraste 
por amores que se perdem


José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 84

A CASA ONDE ÀS VEZES REGRESSO

 Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração


José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 83

O amor que as águas não podem apagar.

 verso Daniel Faria

sábado, 9 de novembro de 2024

“As pessoas que não fumam deviam ser cinzeiros”

curta-metragem de Pablo Roso, “Alqueive” (2023)

 « Quando acabámos de comer lavei os pratos, apaguei as velas às santas porque nunca se deve deixar nada perigoso ao alcance de um santo e subi para o quarto. A velha já dormia com aqueles seus roncos semelhantes aos de um cão cansado. A minha roupa estava espalhada pelo chão do quarto, apanhei-a toda excepto a que via sair debaixo da cama porque quando caímos uma vez numa armadilha não é culpa nossa mas se caímos quatro ou cinco vezes sim, precisei de algum tempo para aprender isto mas agora já cumpro esta máxima.»

Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p.19

 «Na cozinha a velha tinha preparado a mesa. Sobre a toalha de plástico havia três pratos, três copos e três nacos de pão. Pus um prato para a tua mãe porque a sinto inquieta, disse a velha. Não me lembro da minha mãe. A minha avó mostrou-me as fotografias centenas de vezes, tira-as da caixa de bolachas onde as guarda sempre que a pena ou o rancor, que nesta casa são uma e a mesma coisa, lhe formam um nó na garganta.»

Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p.18


 

« 1.º JOVEM - Não é possível: enquanto uns dormem outros estão acordados. Enquanto uns vivem outros já estão mortos.»

José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 126

''petiza em camisa de dormir cor-de-rosa''


José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 114

Perdão é um sentimento. E tu mataste em mim todos os sentimentos para contigo, os bons e os maus.

 « - A MULHER - Falas sem perdão.
      O HOMEM - Perdão só vale nas contas pequenas, de pessoa a pessoa. Na grande conta, além das pessoas há também o destino, e o destino tem prazos improrrogáveis, irrecomeçáveis, onde os sentimentos não se gastam mas podem morrer em vida das pessoas. Perdão é um sentimento. E tu mataste em mim todos os sentimentos para contigo, os bons e os maus.»

José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 114

El Amor brujo: Quadre Primer: Cancíon del amor dolido

 


Emma Summerton, Vogue. Natalie Portman

 « SEREIA - Nunca estás contente. Rastaparta!

 MARINHEIRO - Se não queres há mais madamas.»


José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 92

 « O que eu buscava e tu mo inspiraste não foram contas hereditárias que não se saldam, animais conflitos milenários que impedem fêmea e macho de serem mulher e homem. Fiquei logo isento de lutas de sexo. Tu, mulher, não reconheces o sentimento que tu mesma me inspiraste. Assombra-te o sentimento que em mim inspiraste. Tu que tinhas para o mundo uma altura que não sabes ter para a vida! Eu deixo-te passar e eu estou-te reconhecido, mulher. Tu deste-te e não te tive, mas deixaste-me inteiro o que eu buscava.»

José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 89

inação

 « Só estás presente quando não te chamam. Estavas ausente quando eu me dava a ti. Escrevias números na Lua. Sim. Ausente. Estavas ausente quando me despedia de ti. Como um desconhecido, como um estranho, deixaste-me ir embora. Deixaste que eu te fugisse. Consentiste que eu te deixasse. Estavas ausente nos dois momentos mais decisivos da vida: quando eu me dava e quando eu te fugia. Deixa-me passar!»

José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 87/8


Sue Barnes, 'Untitled' (Bath Series 27), c1976

 

Deixei-te livre. Sem sentimentos póstumos.

 « Nunca te mandei fantasmas com recados que assustam. Deixei-te livre. Sem sentimentos póstumos.»

José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 87

 « ELE - Tu matas e não deixas morrer. Matar é ficar satisfeito. Tu queres que viva a tua ideia porque me matas. Tu queres morto o que não serviu a tua ideia. Ideia e o que não serviu ficaram emaranhados no teu caminho. Deixa morrer o que não serviu. Se fores capaz.»

ELA - (Mostrando-lhe as costas da mão esquerda.) Já não espero ninguém.»

José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 85

desavinda

«Em amor não há senão vassalos.»

José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 73

 « ELE - Verás: serei vingado. A vingança será para sempre o teu novo amor. Quando vier não o destrinçarás do amor que mataste. Queres singular e encontrarás plural. Sempre meio vivo e meio morto, nada que satisfaça. Tu mesma capaste em tia a tua perfectibilidade. Castrada de amor, não de sexo. A ânsia de amor não morrerá em ti, e em ti o amor ficará sempre adiado.»

José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 72/3

Como eu me dava no primeiro dia nunca foi igual depois.

 «Como eu me dava no primeiro dia nunca foi igual depois. Deixas-me igual em sítio nenhum. Os nossos destinos não eram com o outro.»

José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 72

 «ELA - Se no primeiro dia não fui logo tua foi porque estavas ausente.»

José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 72


Michael Druks,' Off-On', 1973

Um de nós morreu. Um de nós morreu para o outro. Escolhe: eu ou tu.

 « ELE - Peço-te.
ELA - (Voz sereníssima.) Sentinela à vista.
ELE - Já sei. Acabou-se tudo. Mas espera.
ELA - Que mais há depois do fim?
ELE - Não sei qual seja a minha cobardia: se deva deixar-te, se deva matar-te!
ELA - É o único que ainda poderás de mim: matares-me. Precisamente o contrário do que de mim queiras. Querias-me para a vida. Para sempre: na vida e na morte. Ter-me-ás  para sempre apenas na morte. Não era deste modo que também me querias na morte. É tudo quanto ainda podes de mim. E este final será tudo e o único que houve entre nós.
(A criada desce a escada e sai por onde veio a primeira vez. A mulher senta-se outra vez. Ele também.)
ELE - Um de nós morreu. Um de nós morreu para o outro.
Escolhe: eu ou tu. Se me matas, já estava morto para mim. É um estranho quem me mata. Um desconhecido. Um intruso. Um morto que me tira a vida.
(Pausa.)
ELA - Dois desconhecidos podem frente  afrente ficar encontrados um primeiro dia. Nós não: mesmo frente a frente não há encontro possível.
ELE - Não há já encontro possível, nem comigo nem com ninguém. É a ti que a minha intransigência não deixará viver. Ficarás eternamente sozinha com todos, pública e in-ti-ma-men-te!
(Ela levanta-se bruscamente. Ele também.)
ELA - O que seja. O que for será. Se acaso passa por ti o meu destino, ponto final. A tua parte cumpriu-se. Como gente que sou, tenho direito a recusar acasos que não desejo.
(Dando passos atrás para se lhe dirigir melhor.)
ELA - Sou eu mesmo a surpreendida: primeiro desmaiei. Ignorava tanto da minha fragilidade. Foi-se-me a luz quando nada tinha que iluminar. E, ao despertar, o sangue corria à vontade por minhas veias e artérias.»


José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 70/71

Por onde é que se sai deste inferno?

 « A MULHER VESTIDA DE NOIVA - (Às companheiras.) Por onde é que se sai deste inferno? (As companheiras rodeiam-na e vão levando-a pelo fundo.)


José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 68

deslegitimar

cubro-me de flores aziagas de remorsos brandos

 « Sento-me agora aos pés do seu túmulo
cubro-me de flores aziagas de remorsos brandos »


José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 58

Asclépio

 na mitologia grega e na mitologia romana, é o deus da medicina e da cura.

lamacento

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Ahoo Daryaei | Iranian woman

 Ahoo Daryaei is a young Iranian woman who protested by walking in public in Iran wearing only her bra and panties.[1] She displayed her defiance of compulsory hijab in front of Tehran's Islamic Azad University.[2] The university has confirmed her detention. She is currently (as of November 2024) in jail in the Islamic Republic.




Meditação do Duque de Gândia



Nunca mais
A tua face será pura limpa e viva
Nem o teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.


Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.


Nunca mais amarei quem não possa viver
Sempre,
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória, a luz e o brilho do teu ser,
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência,
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.


Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
Nunca mais te darei o tempo puro
Que em dias demorados eu teci
Pois o tempo já não regressa a ti
E assim eu não regresso e não procuro
O deus que sem esperança te pedi.




sábado, 26 de outubro de 2024

''Quando não se sabe fazer uma coisa ao natural, aprende-se a fazer com técnica.»

 

José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 65
« ELA - Porque a mulher disse com os seus botões: afinal não sou só eu a curiosa.
ELE - Quem chamou o outro? O homem ou a mulher?
ELA - O acaso não traz nada de seu: encontra a cada um como está.
ELE - O homem e a mulher andavam acaso à procura um do outro?
ELA - A resposta vem  no fim.
ELE - E começa por a mulher ter sorrido para ela mesma.
ELA - Por acaso sorri-me. Mas a história já tinha começado.
ELE - Para o homem a história começou no sorriso.
ELA - Estava atrasado.»

José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 57


                                                                   Among the Daffodils
Nell Dorr (1893-1988)

Powered By Blogger