II
Ó pequena Cleis, emudeceu
a tua mãe e puxa-te para dentro
com brusquidão porque a visão do fogo
e os gritos, e as corridas dessa gente
sempre enlutada, sempre envelhecida
dentro dos panos negros, tudo aquilo
que irrompe pela noite deve ser
escondido das crianças, sobretudo
dessas crianças louras que tão raras
são nas ilhas do Leste.
Emudeceu a tua mãe. Esqueceu-se, aliás,
há muito de si mesma,
da nudez
e da glória dos seus versos,
das celebrações altas,
dos bons usos
da hospitalidade que também
continha a sua carga de erotismo,
sendo tudo um encontro, havendo em tudo
aquilo que gera e aquilo que devora.
E, enquanto os astros, como doces frutos,
se atiravam do céu para o horizonte,
para os recém-chegados acendiam-se
os fogos olorosos.
E o vinho, e a saliva, e as histórias
de antigos reis e venhas crueldades,
iam cobrindo a pele dos forasteiros
como a língua da mãe percorre as crias.
III
Ó, pequena Cleis, os forasteiros
causam-te susto, agora, e pouco falta
para que os apedrejem e os atirem
de novo para o mar.
Pois ficou suja,
ficou cheia, a ilha,
e como que deserta do seu espírito,
correm nela miasmas como quando
o desfavor dos deuses se exercia
e tudo se tornava feio e vil.
Não te debruces, Cleis, na varanda
que deita sobre a praça, sobre a linha
dourada do pinhal.
Nem te levantarei eu mais, criança,
nos braços estendidos, como alguém
que, grato, te mostrasse à natureza.
Pois, Cleis, não existe natureza
nem existe cidade.
Só os troncos
diamantinos de Eressos,
indiferentes, duros,
permanecem.
Hélia Correia. Acidentes. Relógio D'Água, novembro, 2020., p. 34/5