domingo, 13 de março de 2016

O Meças, psicopata, prisioneiro dos traumas da infância e de uma violência milenar para a qual não há palavras, cobarde com os fortes, prepotente com os fracos, é menos uma personagem do que um retrato de todos nós. Nós os portugueses, “tão original mistura de trafulhice e ingenuidade”, uma raça de gente que obceca o escritor José Rentes de Carvalho. Porque, apesar de ter saído de cá há mais de seis décadas, nunca deixou de se sentir profundamente português. Quase a fazer 86 anos, sobreviveu a um cancro que lhe dava apenas 10% de hipótese de continuar vivo, descobriu Deus, encontrou a paz de espírito que é aquilo a que chama felicidade e afirma: “Não me sinto velho. Sinto-me sem idade.” Além do novo romance, daqui a duas semanas vamos poder lê-lo semanalmente num jornal diário português.
Fui aluno do António José Saraiva no liceu de Viana do Castelo. Era o único a quem ele dava “ótimo” nos textos. Reencontrei-o em Paris uns vinte anos depois, já nos anos 60. Eu já vivia na Holanda e ele tinha-se exilado em Paris e vivia numa situação muito precária. Então eu, que já estava a lecionar na Universidade de Amesterdão, achei que o Saraiva era um bom candidato à cátedra de Língua Portuguesa que entretanto tinha ficado vaga. O catedrático espanhol insistia que o Saraiva era um pulha mas eu e o meu colega holandês não lhe demos ouvidos. Ele chegou e logo na aula inaugural, em vez de fazer um trabalho original, limitou-se a ler uma coisa de uma conferência que já tinha feito em França. A partir daí foi rodeado de uma corte de maoistas fanáticos como ele e como a Teresa Rita Lopes [com quem António José Saraiva vivia] e começámos a entrar em choque. Tudo começou no dia em que íamos pela rua de Amesterdão e a Teresa Rita Lopes parou na montra de uma loja de casacos de peles e perguntou ao Saraiva se não lhe comprava um. Aí eu não me contive e gritei-lhe: “Casaco de peles uma grandessíssima merda. Então você não é comunista?” A partir daí ele começou a tentar que eu fosse expulso da Universidade. No dia depois do 25 de Abril um jornal holandês escreveu que eu tinha sido preso em Lisboa porque era da PIDE. Quando voltei para Amesterdão percebi que tinha sido o Saraiva que tinha inventado aquela história. Movi-lhe um processo em tribunal e ele foi condenado por difamação. A Universidade decidiu demiti-lo, mas uns dias antes ele já tinha vindo para Lisboa onde tinha arranjado um lugar de professor na Universidade Nova. Mas este foi apenas uma das vezes em que quis ajudar, em que fui sincero e leal e levei um pontapé. [A história, em pormenor, pode ser lida no blogue de José Rentes de Carvalho O Tempo Contado.]
O meu primeiro casamento foi um erro crasso do qual rapidamente me apercebi, mas entretanto já tinham nascido três filhas. A Loekie também era casada com um brasileiro e vivia no Brasil. Quando ela se separou do marido e regressou a Amesterdão fomos jantar e percebemos que tínhamos sido feitos um para o outro. Desde essa noite nunca mais nos separámos. O difícil foi comunicar isto à família. Mas no final todos acabaram por aceitar. Só aquela senhoras velhinhas lá em Estevais é que às vezes ainda me perguntam: “Então e como é que vai a outra?” Sem a Loekie, a minha mulher, eu não funcionava na sociedade. Ela tem a capacidade de evitar que eu ceda ao meu temperamento. Ela guia-me. É a única pessoa no mundo de quem eu aceito a opinião. Mas temos quase 60 anos de vida em comum.


sexta-feira, 11 de março de 2016


''máquina dos meus ossos obscuros''


O Bebedor Nocturno. Antologias Universais. Versões de Herberto Helder. Portugália., p. 47

«Como fugir à tua Face, como evitar o teu Espírito?»


O Bebedor Nocturno. Antologias Universais. Versões de Herberto Helder. Portugália., p. 47

«Nada em mim te é estranho.
Adivinhas a palavra que se tece ainda em mim.
Estás em frente do meu rosto, estás atrás das
                minhas costas,
e pousaste a tua mão sobre a carne do meu
                ombro.»



O Bebedor Nocturno. Antologias Universais. Versões de Herberto Helder. Portugália., p. 47

«Devorou-me o amor da tua Casa longínqua''


O Bebedor Nocturno. Antologias Universais. Versões de Herberto Helder. Portugália., p. 45

O abismo tem sede de abismo


«Triste, lembro-me de haver caminhado para ti,
entre gritos delirantes de um povo na sua festa.
Que tens, ó minha alma, que estremeces de me-
                  lancolia?
Porquê gemer e não cantar Aquele
onde se apoia a tua face?

Sobre os montes do exílio tua lembrança me
                 enlouquece.
O abismo tem sede de abismo (...)»



O Bebedor Nocturno. Antologias Universais. Versões de Herberto Helder. Portugália., p. 43

Ruth Orkin, Lauren Bacall, St. Regis Hotel, New York City, 1950


«Quando verei aquele de que tenho tanta sede?»


O Bebedor Nocturno. Antologias Universais. Versões de Herberto Helder. Portugália., p. 42
«Ladra o tumulto dos cães. Sangrando de pés
                 e mãos,
rolo sobre um chão mortal.
Espalharam os meus ossos, dividiram minha
      túnica:»

O Bebedor Nocturno. Antologias Universais. Versões de Herberto Helder. Portugália., p. 42

«abre-te aos meus soluços. Que te atinja minha dor.»


O Bebedor Nocturno. Antologias Universais. Versões de Herberto Helder. Portugália., p. 40

maciços de canas

«como sentar-se à beira da embriaguez»


O Bebedor Nocturno. Antologias Universais. Versões de Herberto Helder. Portugália., p. 33
«Conheço-te, conheço o teu nome, conheço o nome
daquele que
    está no interior.»

O Bebedor Nocturno. Antologias Universais. Versões de Herberto Helder. Portugália., p. 28

Portrait of Ava Gardner, 1950's


coração imóvel

''fidelidade gramatical''

'' a saturação atmosférica do vocábulo''

''vertigem paranóica-idiomática''

«O cravo é cada vez menos cravo.»

Herberto Helder
«É um aventureiro completamente perdido, o meu poliglota cheio de malícias linguísticas.»

Herberto Helder

Roman Vishniac, Slime mold amoebae


Layla Alexander-Garrett: “Tarkovsky acreditava que o amor deve ser um acto, uma acção”

Layla Alexander-Garrett colaborou com Andrei Tarkovsky em alguns momentos da sua carreira, especialmente na rodagem de Offret (O Sacrifício, 1986), na qual foi sua intérprete e assistente pessoal (função para a qual Tarkovsky insistiu durante muito tempo que tinha de ser exercida por um homem…). Licenciada em Estudos Fílmicos pela Universidade de Estocolmo e há muitos anos sediada em Londres, é autora de Andrei Tarkovsky: The Collector of Dreams e do livro-álbum fotográfico Andrei Tarkovsky: A Photographic Chronicle of the Making of The Sacrifice, organizando também frequentemente ciclos e outras iniciativas relacionadas com a obra do Mestre russo. Terminou a entrevista, realizada por Skype, a dizer-me para continuar a ter paixão naquilo que faço e, um pouco à maneira de Tarkovsky, tocou-me, sem o saber, num momento particular.
Tarkovsky era uma das pessoas, uma daquelas raras pessoas, que deixava algo na alma dos outros. Ele era uma pessoa absolutamente inesquecível. A actriz principal de Zerkalo (O Espelho, 1975), Margarita Terekhova, disse que Tarkovsky criava uma espécie de “círculo mágico” e que as pessoas que entravam nesse círculo ficavam aí para sempre. Não havia muita gente a quem ele permitia que entrassem nesse círculo, mas, se entrassem, não mais saíam de lá. Tarkovsky queria trabalhar [na rodagem de Offret] com um intérprete masculino, porque a rodagem ia decorrer muito muito cedo, nas “noites brancas”, pelas 3h00 da manhã, e achava que uma mulher não ia aguentar. Ele entrevistou muitos homens para essa função e rejeitou-os porque eram intérpretes profissionais, estritamente profissionais. Ele estava à procura de uma espécie de alquimia com essa pessoa, alguém que sentisse próximo ou ligado a si. Eu não sou uma intérprete profissional. Já nos conhecíamos de Moscovo e estivemos juntos em Itália, quando ele rodava o Nostalghia (Nostalgia, 1983). Eu não trabalhava na indústria, Tarkovsky é que me telefonou quando veio para a Suécia e perguntou-me se eu estava livre. Eu estava naquele momento a preparar-me para um exame de condução e estava muito nervosa, mas disse que claro que me encontraria com ele. Nessa noite, fomos ver o documentário Dokument Fanny och Alexander (Fanny e Alexander: Diário de uma Filmagem, 1986). O produtor chamou-me para o primeiro dia, para o segundo dia, para o terceiro dia, e depois para todo o período de rodagem.
Sim, sempre, a todo o momento. E não eram só saudades da sua pátria, da sua amada Rússia, mas também da sua família. O seu segundo filho estava na Rússia, retido pelas autoridades. O filho conseguiu ir vê-lo a Paris [i.e., o regime autorizou tal visita], mas apenas quando nós lhes enviámos [às autoridades soviéticas] uma cópia dos Raios-x de uma pessoa a morrer. E isto foi já na altura da Perestroika do Gorbatchev! Portanto, ele conseguiu ver o filho no ano em que morreu. Claro que ele tinha saudades da Rússia e dos amigos, estava sempre a dizer que queria voar para visitar os amigos, beber vodka, ver o seu cão! Numa vez que telefonou para Moscovo, passou-me o telefone e disse: “Ouve, ouve, o meu cão gosta tanto de mim, ele tem saudades minhas e lembra-se de mim!”. Tudo isto lhe partia o coração.
Tarkovsky era uma pessoa muito charmosa, que encantava toda a gente, as mulheres particularmente. Toda a gente gostava dele, até porque era um homem muito bonito. Mas quando a rodagem de Offret começou, começaram também os problemas com Sven Nykvist [director de fotografia e colaborador habitual de Ingmar Bergman], porque o Andrei era, por vezes, um pouco insensível. Estava sempre a saltar para a frente da câmara, a filmar, a controlar a mise en scène, tudo. E, de repente, dizia simplesmente: “agora é para filmar!”. E o Sven dizia: “mas eu ainda nem vi o ensaio!”. Sven estava um bocado chateado, sentia como se o Tarkovsky lhe quisesse roubar a sua função. Eu traduzi isto para o Andrei e ele pediu imensas desculpas e disse que não queria incomodar ou magoar o Sven, mas que não conseguia ver o filme apenas através da câmara. Era a única forma de ele conseguir observar a composição, a mise en scène, o movimento dos actores – eu chamar-lhe-ia de “coreografia”, o modo como ele coreografava o movimento dos actores durante o plano, de uma forma nunca estática. Ele era muito exigente e as pessoas ficavam por vezes irritadas. Ele metia o nariz nos assuntos de toda a gente. Se fosse um jornalista, ele ia ter com ele e dizia-lhe: “O que estás a escrever?”. Ele era assim! As pessoas comentavam: “porquê que ele não se mete nos assuntos dele?”, mas ele queria participar em tudo, fazer parte de todo o processo. Ele não era do tipo de chegar, sentar-se na cadeira do realizador, começar e acabar. Ele era diferente.
Ele era uma pessoa muito séria, mas muito divertida [risos]. Nós rebolávamos a rir quando ele contava anedotas ou piadas. Ontem, participei num ciclo de conferências no Freud Museum [Londres], convidaram-me para debater o Offret. Muitas pessoas fizeram-me exactamente essa pergunta: “ele era uma pessoa com sentido de humor?”. Na verdade, li algures que alguém está a escrever um livro ou artigo chamado “Tarkovsky e o sentido de humor”. No Offret, há momentos com muito humor e, como você disse, no Andrey Rublyov. Também no Nostalghia, quando a anedota é contada junto à piscina… Sim, há humor. Mas claro que o seu propósito não era esse, não era entreter as pessoas com os seus filmes, mas sim fazê-las pensar e levá-las talvez a outra dimensão, mostrar-lhes que há outra dimensão. O conselho que ele deixou aos realizadores mais jovens foi para não separarem as vidas, os sentimentos, os pensamentos, dos filmes. A alma do realizador, os seus pensamentos, sentimentos, mágoas, medos, devem estar sempre no filme. Tarkovsky era muito espirituoso, gostava de entreter as mulheres. Ele costumava dizer-me: “Oh, Layla! Se uma mulher se aborrecer comigo, eu dou um tiro em mim próprio!”. Muitas vezes, durante a rodagem de Offret, eu estava cansada e aborrecia-me, mas dizia-lhe para ele não se matar! [risos]. Ele era um grande homem, engraçado, inspirador, nunca ninguém se sentia aborrecido com ele. Era também muito carinhoso com as mulheres e, se alguém da equipa não estivesse bem disposta, ele pedia-me: “Layla, vai perguntar-lhe o que se passa, se calhar aconteceu-lhe alguma coisa, ela parece que esteve a chorar…”. Preocupava-se muito com as pessoas, era como uma esponja, alguém muito sensível.
Concordo e discordo. Quando Tarkovsky estava a filmar, ele disse ao Erland Josephson [actor e colaborador habitual de Ingmar Bergman]: “Imagina que estás tão desesperado, que não há ajuda, que não há ninguém a recorrer, que compreendes que é o fim do mundo. E que o teu filho e os teus próximos deixarão de existir em breve. Tu não irás provavelmente pensar provavelmente em Deus, porque Alexander [personagem interpretada por Josephson] é mais um ateu do que um homem religioso. Tu tens que cair no chão, mas o espectador não deve perceber se é porque estás desesperado, bêbedo, doente ou outra coisa qualquer. Mas tens que cair no chão. E tens que te lembrar duma reza. E começar a dizê-la, porque essa é reza é a mais pura”. É basicamente um momento de desespero e a única esperança é Deus, não porque Alexander pense em comunicar com ele directamente, mas porque existe um medo absoluto, desesperante. Não há nenhuma Mãe para o proteger, ninguém, só Deus. Isso acontece nesse momento, ele fala com Deus. E porque ele faz a promessa, ele tem de a cumprir. No início do filme, Alexander diz: “Palavras, palavras, palavras. Agora eu compreendo o que Hamlet queria dizer”… As pessoas falam demais, os políticos, nós mesmos nas nossas relações… fazemos promessas, falamos e falamos. Mas ninguém faz nada! E é por isso que, quando Alexander faz uma promessa a Deus, não podem ser apenas palavras. Isso é algo que acontece com aquelas pessoas que vão à igreja e que, mesmo não sendo realmente crentes, repetem automaticamente o que lhes dizem para repetir. Mas Alexander tem que agir. Eu penso que Tarkovsky acreditava que o amor, em especial o amor divino, não é apenas sentar-se numa cave a meditar. Sim, pode servir para algumas pessoas, mas tem que se agir, o amor deve ser um acto, uma acção.
Não concordo totalmente. Não penso que se lhe possa chamar um gesto “materialista”. Alexander quer salvar o seu filho e a humanidade. Eu perguntava frequentemente a Tarkovsky: “Porquê que ele não se suicida? Porquê que ele destrói a sua casa e priva a família?”. Ele respondeu-me: “Tu não estás a compreender. Porque a vida não significa nada para ele. Ele podia fazer isso facilmente. Mas ele sacrifica algo que é o mais importante, sagrado, na sua vida: o seu filho e a sua casa”. Isto é, de certa forma, algo imperdoável… No início do filme, quando Alexander se apercebe de que há uma guerra, ele vai ao quarto onde o filho está e quer matá-lo, mas não o faz. Pode dizer-se que um anjo ou algo o impede de o fazer, porque ele não o faz, de facto. Mas, no final, ele tem que cumprir com a sua promessa e incendiar a sua casa e…
Não sei. Não é um “action movie”, é um “awakening movie”, é o que eu lhe chamaria. Nós pensamos que o que acontece no Iraque ou na Síria só acontece lá. Mas não pensamos que amanhã pode ser em Portugal, Inglaterra, França… Colocamos um cobertor por cima de tudo e achamos que está tudo bem. Não fazemos nada desde que aqui esteja tudo bem. Este é um filme que mostra que algo de horrível pode acontecer na nossa casa, no nosso aniversário… Por isso é que eu lhe chamo um film of rebirth, porque, no aniversário de Alexander, ele renasce espiritualmente. Até aí, ele tem a sua vida, o seu trabalho, a sua vida, é rico e está tudo bem. Mas esta situação é um renascimento para ele, numa noite apenas. Ele é encostado à parede e está para ser morto, ele e tudo à sua volta.
Será interessante ver quem irá ver assistir aos filmes do ciclo aí em Portugal. Há um mês atrás, o British Film Institute exibiu todos os filmes do Tarkovsky. As salas estavam praticamente cheias e havia muito pouca gente da minha idade. Havia muito gente nova a assistir aos filmes e a debatê-los! Tarkovsky é extraordinário, ele ressoa em toda a gente, porque é eterno, é como a música clássica: Bach, Beethoven… Toda a gente quererá sempre ouvi-los, seja numa igreja ou na soiréede uma família real. Continuamos a ouvi-los porque nos tocam, pois o que é importante para o ser humano são as coisas eternas: o amor, o medo, a traição, a dedicação, a pureza, a procura. Sabia que Tarkovsky recebeu imensas cartas de prisioneiros depois do lançamento do Zerkalo? Esses prisioneiros escreviam-lhe a dizer que o filme era sobre as suas vidas! Eu conheci um japonês na Suécia que aprendeu russo para poder ver os filmes de Tarkovsky e disse-me: “Zerkalo é um filme sobre mim!”. Um professor escocês também escreveu uma carta a Tarkovsky a dizer o mesmo.
É muito difícil responder. Tudo o que posso dizer é que ele odiava que o chamassem de “dissidente”. Ele dizia: “Eu nunca pedi asilo político, eu nunca quis ser dissidente, por isso não me coloquem por favor nessa categoria!”. Porquê que ele ficou no Ocidente? Porque ele queria fazer Hamlet e outros trabalhos e as autoridades soviéticas não o permitiam na URSS. Foi [o seu exílio], por isso, o protesto de um homem orgulhoso que valorizava o seu trabalho e o que fez pela URSS. Ele trouxe muito prestígio à URSS. Tarkovsky não aguentou mais e, por isso, partiu para poder concretizar esses projectos. Se as autoridades soviéticas lhe tivessem permitido oficialmente trabalhar no Ocidente por dois anos, isto [a morte no exílio] provavelmente não teria acontecido e ele teria voltado à Rússia que ele tanto amava. Se o socialismo tiver uma “face humana”, como se diz, então acho que ele seria feliz, até porque, como ele próprio escreveu, financeiramente, foi muito difícil trabalhar no Ocidente, muito mais do que na URSS. Por isso, é um pau de dois bicos. É muito difícil dizer se ele era pró-capitalista ou pró-socialista… Claro que, se estivermos a falar do socialismo como existe na Suécia, a questão já é muito diferente! [risos]
Não. Também se fala num realizador russo, o Andrey Zvyagintsev. Mas eu não concordo e acho que isso não é propriamente um elogio, mas um insulto. Penso que temos de ser nós mesmos. Por exemplo, encontrei um pequeno clip do The Revenant (O Renascido, 2015) no qual se analisa como o filme foi roubado do Tarkovsky, plano por plano. É fascinante! Quando as pessoas fazem isso e não creditam o trabalho de Tarkovsky, é estúpido. Mas isto não interessa! Não se é Tarkovsky por se fazer planos muito longos. Não é a duração do plano, mas a intensidade, o talento, o pensamento, a profundidade da sua voz. Ele tem algo a dizer! Tarkovsky está a destapar a sua alma em frente do espectador nos seus filmes. Tarkovsky era uma pessoa muito reservada, mas, nos seus filmes, ele removia a pele e mostrava o que era, o que pensava, em que é que acreditava. Esses realizadores de que fala usam os filmes no sentido oposto: usam-nos para tapar, não para destapar, para revelar o que são. E é preciso uma enorme coragem para nos destaparmos, para retirarmos as máscaras que cobrem os nossos lados negros e estranhos, pois é com eles que sobrevivemos. Uma vez, num festival sobre os filmes de Tarkovsky que organizei em Londres, um homem procurou-me e disse que me queria contar algo. Disse-me que tinha vindo propositadamente de Itália para me dizer que, no ano em que saiu o Nostalghia, ele se ia suicidar. Num certo dia, ele ia mesmo para casa para se suicidar, já tinha escrito uma carta de despedida. Passou por um cinema onde se lia “Nostalghia” e sentiu que o título tinha muito que ver com o que ele sentia naquele momento. Então, decidiu ir ver o filme, mas saiu a meio porque não o entendeu, e pensou que se iria suicidar de seguida. Mas pensou para si mesmo que não era estúpido, que tinha de ver o filme novamente para o entender. Viu-o novamente e depois uma terceira vez. Disse-me que chorou e chorou… rios de choro. E que, quando saiu da sala, se sentiu vivo. O homem terminou de me contar esta história, despediu-se e desapareceu. É uma história extraordinária que mostra o efeito imprevisível que a obra de Tarkovsky provoca em nós. O que há nela? Não sei o que é, é um mistério, mas ela toca nas pessoas, nas mulheres, nas crianças… é muito difícil dizer o que é. Eu espero que a obra dele viva. Einstein disse que “quando a última abelha desaparecer, a humanidade desaparecerá”… Tarkovsky dizia que “quando o último poeta desaparecer, a humanidade desaparecerá”.

sexta-feira, 4 de março de 2016

terça-feira, 1 de março de 2016



A lot of people are very, very angry

Daniela Bowker, Photographer and journalist

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016


«(...) Conheço-a,
embora esta pareça um pouco transformada:
            tem um toque novo,
talvez seja menos dolorosa
à superfície. Não lhe lavro o saibro, a crosta,
com medo de lhe encontrar o mesmo coração
               estrangulado,
o desvairo de trevas
            sem alternativa»



Egito Gonçalvesos pássaros mudam no outono. 1ª edição. Editora Limiar, 1981., p. 16

«os olhos estão secos,
fugidios: escórias dolorosas os velaram;»


Egito Gonçalvesos pássaros mudam no outono. 1ª edição. Editora Limiar, 1981., p. 15

''dói-lhe um sorriso nos lábios''


António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 34
(...)

«Pede um cigarro. Fuma.
Labaredas loucas saem-lhe da garganta.
Da bruma
espreita-o uma mulher nua, branca, branca.

Fuma mais. Outra vez.
E atira um braço decepado para a mesa.
Não pensa no fim do mês.
A noite é a sua única certeza.»



António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 33

(...)

«descerão atravessando gargantas
e subirão empurrando palavras
transportando-as ao pescoço como cintos de salvação»

António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 28

«RETRATO DO ARTISTA EM CÃO JOVEM»


António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 25

«o cão de circo para os domingos da família»


António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 25

''Wedding'', fotografia de László Fejes


''durante tanta alegria que não era tua»



António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 24
«As tuas mãos que a tua mãe cortou
para exemplo duma cidade inteira»

António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 24

« eu eu partisse a fumar
e o fumo fosse para se ler»


António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 23

(...)

«não é uma pátria
não é esta noite que é uma pátria
é um dia a mais ou a menos na alma
como chumbo derretido na garganta
um peixe nos ouvidos
uma zona de lava»


António José Forte. Corpo de Ninguém. Hiena Editora, Lisboa, 1989., p. 22

''restos de pulmão''

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