«(...), demorou-se especialmente no mercado do peixe onde viu os rudes peixeiros e peixeiras apregoar a mercadoria, tirando das celhas os peixes prateados e húmidos que, de bocas dolorosamente abertas e dourados olhos, fixos e apavorados, se resignavam quietos à morte ou se debatiam furiosos e desesperados contra ela. Sentiu-se possuído, como de outras vezes, de intensa compaixão por aqueles bichos e de entristecido desgosto pelos homens tão obtusos e rudes, tão desmedidamente estúpidos e imbecis; como era possível que fossem assim cegos, os pescadores, as peixeiras e os compradores, que não vissem aqueles olhos mortalmente assustados, os espasmos violentos daquelas caudas, em luta pavorosa e inútil, a intolerável transformação dos peixes misteriosos e maravilhosamente belos, percorridos, antes de morrer, por um ligeiro frémito, e depois, mortos e sem brilho, lamentáveis pedaços de carne para mesa dos glutões. Aquela gente nada via, nada sabia e em nada reparava, nada lhes faltava ao coração! Era-lhes indiferente ver estrebuchar à sua frente um lindo peixe, era-lhes indiferente que tal mestre tivesse manifestado, com verdade arrepiante, toda a esperança, toda a nobreza e todo o sentimento angustioso da vida humana, no rosto de uma santa - nada viam, nada os comovia. Andavam distraídos ou atarefados, afadigados com importantes afazeres, berraram, riam, arrotavam, faziam alarido, diziam chalaças, discutiam por dá cá aquela palha, e sentiam-se felizes, tudo estava em ordem e eles contentes consigo próprios e com o mundo.»
Hermann Hesse.
Narciso e Goldmundo. Tradução de Manuela de Sousa Marques. Guimarães Editores, Lisboa, 2005., p. 148