quarta-feira, 9 de outubro de 2013

trazia a aliança pendurada ao pescoço por um fio

«Os clientes habituais diziam que a primeira mulher dele já morrera há muito e que ele não encontrara uma segunda porque trazia a aliança pendurada ao pescoço por um fio. O barbeiro dizia que o latoeiro nunca tivera mulher, que estivera quatro vezes noivo com aquele anel, mas casado nunca.»


Herta Müller. Já então a raposa era o caçador. Tradução do alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª ed. 2012., p.18

domingo, 8 de setembro de 2013


metade da minha vida passou-se no esforço pela tua conquista

«Também eu sempre te amei, Narciso, metade da minha vida passou-se no esforço pela tua conquista. Sabia que também eras meu amigo; mas nunca esperei que mo dissesses, tu, tão orgulhoso. Disseste-mo neste momento em que mais nada possuo, neste momento em que a vida errante e a liberdade, o mundo e as mulheres, me desertaram. »


Hermann Hesse. Narciso e Goldmundo. Tradução de Manuela de Sousa Marques. Guimarães Editores, Lisboa, 2005., p. 254
«Passaram-se semanas, há muito que o castanheiro florira, há muito que escurecera e endurecera a folhagem verde-láctea da faia, há muito que as cegonhas tinham feito ninho na torre da portada e tinham ensinado a voar as crias.»


Hermann Hesse. Narciso e Goldmundo. Tradução de Manuela de Sousa Marques. Guimarães Editores, Lisboa, 2005., p. 248
«Em verdade, teria o homem sido criado para estudar Aristóteles e Tomás de Aquino, saber grego, mortificar a carne e fugir do mundo? Não fora, antes, criado com sentidos e instintos,  com as trevas do sangue e o pendor para o pecado, para o prazer e para o desespero?»



Hermann Hesse. Narciso e Goldmundo. Tradução de Manuela de Sousa Marques. Guimarães Editores, Lisboa, 2005., p. 247

engrolar

verbo transitivo

1. cozer levemente
2. assar à pressa
3. figurado dizer ou fazer atrapalhadamente
4. figurado decorar à pressa; empinar
5. figurado intrujar

«Debateu-se  com grandes dificuldades, maiores do que as previstas. A obra dava-lhe cuidados, mas eram suaves cuidados. Lutou por ela, com arroubo e desespero, como se luta pela conquista de uma mulher esquiva, com a obstinação e precaução do pescador à linha empenhado na captura de um peixe de grandes dimensões; todos os obstáculos o ensinavam e lhe afinavam a sensibilidade.»



Hermann Hesse. Narciso e Goldmundo. Tradução de Manuela de Sousa Marques. Guimarães Editores, Lisboa, 2005., p. 235
«- Ninguém notava que, nos últimos tempos, se modificava muito e apresentava um envelhecimento precoce: ninguém o conhecera antes. As agruras da vida errante já decerto o teriam minado; depois, o período da peste com os seus sustos e, por fim, a prisão e aquela pavorosa noite na cave do castelo, tinham-no abalado profundamente e deixado vestígios; fios grisalhos na barba loira, finas rugas na pele do rosto, insónias e, por vezes, na alma, um certo esgotamento, um afrouxamento da curiosidade e do prazer, uma morna e cinzenta sensação de fartura e saciedade.»




Hermann Hesse. Narciso e Goldmundo. Tradução de Manuela de Sousa Marques. Guimarães Editores, Lisboa, 2005., p. 233
«Toda a sua vida se passara assim: em despedida, fuga e esquecimento, de mãos vazias e coração transido.»



Hermann Hesse. Narciso e Goldmundo. Tradução de Manuela de Sousa Marques. Guimarães Editores, Lisboa, 2005., p. 226

''ressaibos de ironia''

« - Tens toda a razão - disse com calor - desabafa à vontade, diz-me tudo o que te oprime. Há, porém, um ponto em que te enganas muito: julgas que são pensamentos o que estás a comunicar-me. Mas não, são sentimentos! São os sentimentos de alguém a quem o pavor da existência dá que cismar. Não te esqueças, porém, que, em contrapartida desses sentimentos melancólicos e desesperados, há outros completamente diferentes, a compensá-los. Quando te sentes feliz a cavalo, ao atravessar uma linda região, e quando, com razoável leviandade, te introduzires à noite, no palácio do conde para lhe cortejar a amada, o mundo reveste-se para ti, nessa altura, de aspectos bem diferentes; nem as casas pestilentas nem os judeus queimados te impedem de procurar o que te dá prazer. Não será assim?»



Hermann Hesse. Narciso e Goldmundo. Tradução de Manuela de Sousa Marques. Guimarães Editores, Lisboa, 2005., p. 221

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Ulyana by Nick Sushkevich


«(...), demorou-se especialmente no mercado do peixe onde viu os rudes peixeiros e peixeiras apregoar a mercadoria, tirando das celhas os peixes prateados e húmidos que, de bocas dolorosamente abertas e dourados olhos, fixos e apavorados, se resignavam quietos à morte ou se debatiam furiosos e desesperados contra ela. Sentiu-se possuído, como de outras vezes, de intensa compaixão por aqueles bichos e de entristecido desgosto pelos homens tão obtusos e rudes, tão desmedidamente estúpidos e imbecis; como era possível que fossem assim cegos, os pescadores, as peixeiras e os compradores, que não vissem aqueles olhos mortalmente assustados, os espasmos violentos daquelas caudas, em luta pavorosa e inútil, a intolerável transformação dos peixes misteriosos e maravilhosamente belos, percorridos, antes de morrer, por um ligeiro frémito, e depois, mortos e sem brilho, lamentáveis pedaços de carne para mesa dos glutões. Aquela gente nada via, nada sabia e em nada reparava, nada lhes faltava ao coração! Era-lhes indiferente ver estrebuchar à sua frente um lindo peixe, era-lhes indiferente que tal mestre tivesse manifestado, com verdade arrepiante, toda a esperança, toda a nobreza e todo o sentimento angustioso da vida humana, no rosto de uma santa - nada viam, nada os comovia. Andavam distraídos ou atarefados, afadigados com importantes afazeres, berraram, riam, arrotavam, faziam alarido, diziam chalaças, discutiam por dá cá aquela palha, e sentiam-se felizes, tudo estava em ordem e eles contentes consigo próprios e com o mundo.»



Hermann Hesse. Narciso e Goldmundo. Tradução de Manuela de Sousa Marques. Guimarães Editores, Lisboa, 2005., p. 148
«Goldmundo não pertencia ao número daqueles inditosos artistas que, possuindo altos dons, não encontram todavia nunca os meios adequados para os exprimir. Muitos são aqueles a quem é dado sentir profundamente a beleza do mundo, que trazem na alma nobres e sublimes imagens, mas que não sabem a maneira de se desfazer delas, de fixá-las e comunica-las para alegria dos outros. Godmundo não sofria dessa carência. Não lhe custava servir-se das mãos e dava-lhe prazer a aprendizagem dos truques e habilidades do ofício;»


Hermann Hesse. Narciso e Goldmundo. Tradução de Manuela de Sousa Marques. Guimarães Editores, Lisboa, 2005., p. 134

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

''os dias primaveris passavam velozes e sobrecarregados de imagens''


Hermann Hesse. Narciso e Goldmundo. Tradução de Manuela de Sousa Marques. Guimarães Editores, Lisboa, 2005., p. 122

''passou o serão em longa cavaqueira com ele''

Hermann Hesse. Narciso e Goldmundo. Tradução de Manuela de Sousa Marques. Guimarães Editores, Lisboa, 2005., p. 122

X

«Voltara o gelo a derivar rios abaixo, voltaram a rescender as violetas sob a folhagem apodrecida, voltara Goldmundo à vida errante, acompanhando as estações do ano, sorvendo com olhos insaciáveis a paisagem das florestas, dos montes e das nuvens, seguindo de herdade em herdade, de terra em terra, de mulher para mulher; passara tardes frias, opresso e de coração magoado, debaixo de janelas por detrás das quais a claridade rósea de uma luz irradiava bela e inatingível, significava para ele toda a felicidade, paz e aconchego que pode haver no mundo. E tudo voltava, tudo o que tão bem julgava conhecer se repetia, mas sempre diversamente: as longas caminhadas por campos, charnecas e estradas pedregosas, o sono estival na floresta, a vadiagem nas aldeias atrás dos ranchos de raparigas que regressavam da ceifa ou da apanha do lúpulo, o primeiro aguaceiro outonal, os primeiros gelos ruins - tudo se repetia, no constante desenrolar da infinda bobina colorida.»



Hermann Hesse. Narciso e Goldmundo. Tradução de Manuela de Sousa Marques. Guimarães Editores, Lisboa, 2005., p. 121
patient suffering from hemorrhage of the eyes associated with hemorrhagic fever with renal syndrome (HFRS), formerly Korean hemorrhagic fever.

Morte

«Jejuas, amigo? Privaste-te do sono? Ela logo te cantará o fadário, a amiga morte despojar-te-á de tudo, até dos ossos. Foge, caríssimo, e mantém os ossos bem juntinhos que eles só querem dispersar-se e não ficarão connosco. Pobres ossos, pobres goelas e pobre papo, pobre pedaço de cérebro sob o crânio! Tudo se separa de nós, tudo quer que o diabo o leve, e os corvos, as sotainas negras, lá estão empoleiradas nas árvores.»


Hermann Hesse. Narciso e Goldmundo. Tradução de Manuela de Sousa Marques. Guimarães Editores, Lisboa, 2005., p. 117
«(...); havia dias em que a solidão e a tristeza pesavam-lhe sobre o peito e oprimiam-lhe o coração.»


Hermann Hesse. Narciso e Goldmundo. Tradução de Manuela de Sousa Marques. Guimarães Editores, Lisboa, 2005., p. 109

Quando acordou no dia seguinte, depois de um sono agitado, tinha a almofada húmida de lágrimas.

«A porta rangia, o vento chiava e embatia contra o vigamento do telhado. Tudo parecia enfeitiçado, tudo ressumava mistério e ansiedade, promessa e ameaça. Goldmundo não sabia que pensar, nem que fazer. Quando acordou no dia seguinte, depois de um sono agitado, tinha a almofada húmida de lágrimas.»


Hermann Hesse. Narciso e Goldmundo. Tradução de Manuela de Sousa Marques. Guimarães Editores, Lisboa, 2005., p. 98

Há-de rir-se, quando vir que não aprendeste sem sequer a beijar.

«- Que pena não poder nunca contentar-te. Porque havia eu de ter interesse em fazer-te vaidosa? És bela e gostaria de mostrar-te a gratidão que a tua beleza me inspira. Forças-me a dizê-lo por palavras; poderia dizê-lo mil vezes melhor do que por palavras. Por palavras nada te posso dar! Por palavras nada posso aprender de ti nem tu de mim.
  -E que posso eu aprender contigo?
  -Eu contigo e tu comigo, Lídia. Mas tu não queres; só queres amar de quem venhas a ser noiva. Há-de rir-se, quando vir que  não aprendeste sem sequer a beijar.
  -Com que então queria dar-me lições de beijos, senhor magister?
  Ele sorriu-lhe. Embora as palavras dela não lhe agradassem, não podia deixar de pressentir a sua feminilidade por detrás daqueles discursos arrebatados e um tanto inautênticos; sentiu que o desejo se apoderava dela e que ela, receosa, lhe resistia.»





Hermann Hesse. Narciso e Goldmundo. Tradução de Manuela de Sousa Marques. Guimarães Editores, Lisboa, 2005., p. 95
«- Não julguei nem pensei em nada, Lídia; a verdade é que penso muito menos do que imaginas. Não desejo senão que me beijes uma vez. Falamos tanto. Os amantes não falam. Parece-me que não me amas.»
 
 
Hermann Hesse. Narciso e Goldmundo. Tradução de Manuela de Sousa Marques. Guimarães Editores, Lisboa, 2005., p. 94

Em meia hora fez-se muitos anos mais velho.


Hermann Hesse. Narciso e Goldmundo. Tradução de Manuela de Sousa Marques. Guimarães Editores, Lisboa, 2005., p. 67

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

«De inicio, foi Narciso, quem mais sofreu. Tudo era espírito, para ele, mesmo o amor; não lhe era fácil abandonar-se irreflectidamente a uma inclinação.»


Hermann Hesse. Narciso e Goldmundo. Tradução de Manuela de Sousa Marques. Guimarães Editores, Lisboa, 2005., p. 27

lusco-fusco

Narciso

« - Narciso- disse o abade uma vez, depois de o ter ouvido sem confissão - reconheço-me culpado de um juízo severo a teu respeito. Pareceste-me muitas vezes orgulhoso e talvez tenha sido injusto para contigo. Estás muito só, meu jovem irmão, vives muito isolado, tens admiradores, mas não tens amigos. Gostaria bem que tivesses às vezes qualquer deslize, como é fácil suceder na tua idade. Mas nunca tens deslizes. Preocupas-me um pouco narciso.»



Hermann Hesse. Narciso e Goldmundo. Tradução de Manuela de Sousa Marques. Guimarães Editores, Lisboa, 2005., p. 9

Women Who Read are Dangerous

''diamantes de sangue''

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

iniludível


adjetivo de 2 géneros

1. que não se deixa iludir
2. que não admite dúvidas; evidente

Sabina


A criança moderna


«(...) A criança moderna não tem mais nada a que se agarrar ou, para ser mais exacto, nada com que se agarrar. Actualmente aderimos à vida como o último dos nossos músculos - o coração.
   - O único músculo da aristocracia é a loucura - lembre-se disto ( o doutor inclinou-se para a frente) - a última criança que nasce à aristocracia é, por vezes, um idiota; por respeito subimos, mas voltamos a cair.»


Djuna Barnes. O Bosque da Noite. Tradução de Paula Castro e Manuel Alberto. Relógio D'Água Editores, Lisboa, p. 53/4

domingo, 11 de agosto de 2013

da rosa vermelha
à rosa negra
 
dois sóis
trabalham dia
e noite
a fulgurante incandescência
 
 
 
Manuel Gusmão. Dois sóis, A rosa. A arquitectura do mundo. Editorial Caminho, Lisboa,  2ª Edição, 1990., p. 133

''disciplinado delírio''


a queda amo-
rosa,
de onde foi
olhada
 
um «milhão de pássaros»
em fogo
passando pelo buraco de uma agulha,
a rosa
no écran solar
 
 
Manuel Gusmão. Dois sóis, A rosa. A arquitectura do mundo. Editorial Caminho, Lisboa,  2ª Edição, 1990., p. 121
no centro da rosa
o gelo reflecte exaltado
a galeria em chamas
que o rodeia
 
 
Manuel Gusmão. Dois sóis, A rosa. A arquitectura do mundo. Editorial Caminho, Lisboa,  2ª Edição, 1990., p. 117
em suas muralhas
a rosa fecha o olhar delas
se despenha. a elas
sobe.
 
como se quisesse atingir um sol
que intermitente,
centro de si mesma, se
deslocasse. -
a rosa contra/diz-se,
e ele ama-te.
 
 
 
Manuel Gusmão. Dois sóis, A rosa. A arquitectura do mundo. Editorial Caminho, Lisboa,  2ª Edição, 1990., p. 103
«A voz dele elevou-se acima do fumo negro perante os destroços inflamados da ilha; contagiados por aquela emoção, os outros garotos começaram também a tremer e a soluçar. No meio deles, como o corpo imundo, o cabelo emaranhado e um nariz gotejante, Ralph chorou pelo fim da inocência, pelas trevas no coração do homem e pela queda no vazio do verdadeiro e sensato amigo a que chamavam Piggy.»



William Golding. O Deus das Moscas. Tradução de Manuel Marques, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2008., p. 258

sábado, 10 de agosto de 2013

«Caminharam lado a lado, como dois mundos de experiência e sentimentos incapazes de comunicar.»



William Golding. O Deus das Moscas. Tradução de Manuel Marques, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2008., p. 72

terça-feira, 6 de agosto de 2013

«Porque será que sempre que ouço música penso que sou uma mulher casada?»


Djuna Barnes. O Bosque da Noite. Tradução de Paula Castro e Manuel Alberto. Relógio D'Água Editores, Lisboa, p. 47
«O peito em que batemos quando estamos alegres não é o mesmo em que batemos quando estamos tristes;»



Djuna Barnes. O Bosque da Noite. Tradução de Paula Castro e Manuel Alberto. Relógio D'Água Editores, Lisboa, p. 46
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