esse fundo de deserto»
sábado, 26 de outubro de 2024
COISAS DA TRISTEZA
José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 48
OS INCÊNDIOS
sob os umbrais de uma morada
nos carreiros que vão dar aos montes
sairás ainda em súplica
quando os incêndios ignorarem a ameaça
da tua vassoura de giestas
'' o florir lento dos antúrios''
José Tolentino Mendonça. A Noite Abre Meus Olhos. 4ª Edição, Assírio&Alvim, Porto, 2021. p. 13
sexta-feira, 25 de outubro de 2024
« ELE - Somos maus juízes dos nossos casos e acasos.»
José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 56
« ELA - Esta sou eu: a que teve a alegria de poder consentir-te. A que tinha medo, medo de estar sozinha e sem consentir dar-se a ninguém. A que te dei foi a única com quem se vive e se sonha alto. Para sempre. Eu não me enganei. Tu, sim.»
« ELA - Se consinto, não me querem. Se não consinto, querem-me. Consenti. Dei-me. Estou dada. Dada a quem não me recebe. Para onde querem que eu vá fugindo de mim sozinha? Tu consentiste que eu te quisesse. Não te prendas comigo. Segue o teu caminho. Só te peço não me digas palavras que te mintam. »
José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 47FREGUÊS - Para mim serás a minha.
VAMPA - A tua?
FREQUÊS - Sim. Ouve. Tenho um segredo para te contar: tenho uma corda.
VAMPA - Uma corda?
FREGUÊS - Uma corda feita por mim.
José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 42/3
«A Vampa que fala em público não é a mesma com um particular. O seu tique pessoal, quando fala a uma só pessoa, é confidencial, amaneirado à fadista, dando a cada palavra importância que por vezes não tem.»
José Almada Negreiros. Teatro Escolhido. Deseja-se Mulher. Edição de Fernando Cabral Martins e Luís Manuel Gaspar. Assírio&Alvim. 1ª Edição, 2017., p. 41'' é sempre melhor que sintam medo do que tenham pena de nós''
Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p 17
''não há justiça sem morte e não há morte sem penitência.''
Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p 17
« Na cozinha a velha tinha acendido o lume para lhe pedir qualquer coisa. Alimentava o fogo com ervas daninhas secas com caruma com papéis velhos. Tudo em pedacinhos para que o lume não ficasse guloso. Observava-o e sussurrava-lhe coisas. As rezas caíam-lhe dos dentes sem que eu as ouvisse mas eu sabia que ela pedia a Santa Bárbara decapitada pelo pai no cimo de uma montanha a Santa Cecília banhada em água a ferver a Santa Maria Goretti assassinada quando a tentavam violar a todas as santinhas mortas pelas mãos de homens raivosos.»
Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p.16
«E a minha avó deixou de rezar porque quem quereria que quatro louva-a-deus com enormes olhos e pinças na boca lhe surgissem na cama da filha? Agora rezamos a eles porque temos medo que trepem para o telhado e enfiem as antenas e as patas compridas pela chaminé.»
Layla Martínez. Caruncho. Tradução Guilherme Pires. Antígona, 2024., p.9
terça-feira, 15 de outubro de 2024
«- Mas estas coisas do amor não são equilibradas nem simétricas como o pretendem determinados tratadistas. Tanto assim é que a mulher sabe perfeitamente melhor o efeito que produz nos homens do que o homem nas mulheres. Porquê? Parece tão parva a pergunta como o de querer saber a razão de ser a mulher mais fraca do que o homem. É assim, e pronto! De modo que, conclusão: aquele que souber melhor o efeito que produz nos outros leva de facto esta vantagem sobre os outros.»
José Almada Negreiros. Nome de Guerra. Livros RTP. Editorial Verbo. p. 55
O sono para ela era cair fulminada pelo excesso e pela fadiga.
« A vida para ela era uma luta constante, ofensiva e defensiva, sem tréguas, sem repouso mais do que no dormir. E os seus próprios sonos não eram um repouso, a agitação continuava como se fosse o seu estado normal, como se fosse o próprio bater do coração em sinal de vida. O sono para ela era cair fulminada pelo excesso e pela fadiga. Apenas acordava, tudo lhe era hostil em redor. Os móveis do quarto, o vestido que despira ao deitar e que ficara metade no chão e metade na cadeira. os sapatos distantes um do outro, o chapéu na maçaneta da cama, as recordações da véspera, o sol a querer por força entrar pelas frinchas, o movimento da cidade que se ouvia lá fora, o dinheiro espalhado no mármore do toilette, o estômago, a bronquite, tudo, tudo contra ela, tudo lhe gritava, a uma, a mesma palavra: Guerra!»
José Almada Negreiros. Nome de Guerra. Livros RTP. Editorial Verbo. p. 48O Antunes decidia fazer convergir todos os seus passos num único fito: a escolha da sua companheira. O motivo desta resolução estava na lembrança do que era a sua vida ultimamente, sem progresso, sem explicação, parada, inútil, nula. A causa desta estagnação era a falta de uma companheira.»
José Almada Negreiros. Nome de Guerra. Livros RTP. Editorial Verbo. p. 38/9
Visito os amigos mortos,
Pensando que indo, estão vivos.
Entre a penumbra dos quadros,
Andam eles em sorrisos.
Pronuncio a frase antiga,
E dou comigo sozinha.
Oiço então o dia exacto,
Da estridente campainha.
Volto a casa, fecho o som,
Por dentro da persiana.
E então os retratos andam,
Á volta da minha cama.
Natércia Freire
«Sem lápides, sem chumbo, sem jazigo; | caixão de tábuas, derradeira casa, | onde repousarei, frágil abrigo, | até me libertar num golpe de asa. || Então, quando estiver a sós comigo, | que ninguém chore porque o choro atrasa, | mas que alguém, se quiser, num gesto amigo, | ponha roseiras sobre a campa rasa. || Será medo o que sinto? Não é medo. | Serei, não serei digna do Segredo? | Ah, meu Deus, para lá das nebulosas, || Mereça ou não a expiação, a dor, | entrego-Te a minha alma sem temor. | O que resta, o que sobrar, é para as rosas.»
Fernanda de Castro, «Testamento», em "70 Anos de Poesia", 1989.
Fernanda de Castro, no livro, "África Raiz" (1966):
África, no teu corpo rugem feras, uivam fomes e medos ancestrais, no teu sangue há marés, na tua pele há dardos e punhais.
Ventre de Continentes, és mater e matriz.
Ásia é semente, Europa é flor, outros serão essência ou tronco, tu, África, és raiz.
[...]
O África dos dias incendiados, o veneno do sol que te envenena é que te faz assim, bárbara, impura, sanguinária e morena.
Mas tão pura, tão cândida também!
Ó África madrasta, África Mãe! [pp. 9, 99]
«Na Primavera, a Árvore era um ninho de folhas palpitantes como pequenas asas verdes. No Estio, cobria-se de flores, cada ramo era um jardim suspenso. Vinha depois o Outono, as flores mortas eram leitos de pássaros. E as folhas partiam, esvoaçando, tal borboletas de oiro. Por fim, o Inverno; em vez de folhas, braços nus, troncos mortos, desolada solidão.
Mas um dia...
Um dia, a Primavera voltou com as suas folhas palpitantes como pequenas asas verdes. O Estio, com as suas flores, os seus jardins suspensos. O Outono, com os seus pomos e as borboletas de oiro das suas folhas a dançar ao vento.
O Inverno, com os seus musgos, seus descarnados braços nus.
Mas a Árvore, a bela Árvore, era sempre a mesma, na sua ilimitada confiança. Foi então que aprendi, da Árvore, a lição: A vida é uma longa paciência e uma longa esperança.»
Fernanda de Castro, em Asa no Espaço, Edições Ática, 1.ª edição, 1955
país de musas sorumbáticas e de poetas tristes
David Mourão-Ferreira sobre Fernanda de Castro
Fernanda de Castro. "Ao Fim da Memória", 1987
da noite,
a aspereza das estrelas
quando os olhos são recentes
e a gravitação é um poder
sucinto nas mãos.
Não esqueças sobretudo como os cereais
lavram os campos estafados, destilam
prodígio pelos sulcos da memória,
oferecem-te uma vida maior
em troca do sal
das pálpebras.
Não esqueças sobretudo de olhar devagar.
Vasco Gato, ''IMO'' no livro ''Contra Mim Falo''/Poesia Reunida (ed.Imprensa Nacional - Casa da Moeda).
segunda-feira, 14 de outubro de 2024
Sou invisível | Janet Frame
Sempre fui invisível
como a pobreza num país rico,
como os ricos nos seus quartos escondidos nas suas casas com muitos quartos,
como as pulgas, os piolhos, como o que cresce debaixo da terra,
os mundos para além do céu, o vento, o tempo, as ideias -
o catálogo da invisibilidade é inesgotável
e, dizem, não é boa poesia.
Como as decisões.
Como qualquer outro lugar.
Como as instituições afastadas da estrada que se chama Scenic Drive.
Chega de comparações. Sou invisível.
Num mundo cheio de gente com visão binocular feitas as contas faço parte da maioria
enquanto tu e eu caminhamos com a nossa pequena lua crescente visitando a nossa obscuridade pessoal
através de um mundo no qual as decisões de ser ou não ser
são controladas pela luz
assistidas pelas lágrimas e o sonho da desatenção ou a morte.
Sou invisível.
Os amantes atravessam a minha vida para se tocarem,
a chuva que cai sobre mim atravessa-me como sangue sobre a terra.
Nenhuma cabeça me concebe como conhecimento.
Para dizer a verdade,
outorgo liberdade àqueles que dançam.
Assim é. Não há ninguém aqui para observar nem escutar dissimuladamente,
e então aprendo mais do que tenho direito a saber.
O palhaço
A sua cara está manchada por lágrimas maquilhadas.
Eu e os outros aplaudimo-lo, sabendo
que é de bom tom aprovar quando um palhaço chora
e de mau tom quando o faz uma cara persistentemente
dorida sejam ou não pintadas as suas lágrimas.
Também é de bom tom, entre guerras,
dizer que o ódio é amor e o amor é ódio,
argumentar que tudo é mais complexo do que sonhámos
e depois dizer que não o sonhámos
sempre o soubemos e somos sensatos.
Caro palhaço choroso caro velho infantil
caro assassino gentil caro e inocente culpado
cara simplicidade odeio-vos por causarem que eu finja
que há vários mundos para uma verdade quando
eu sei, eu sei que não há. Pessoas como eu e vocês, meus caros,
que têm mau hálito, que adormecem e de intestinos
ruidosos que controlam a fé
que chegam à casa vazia ou entre a família,
cara família, caro homem solitário no mundo despedaçado de nin-
guém,
será para essa desolação que acumulámos palavras durante tantos
milhões de anos, desde o primeiro, gememos
e olhamos para as estrelas. Oh oh o céu é demasiado amplo para
dormir debaixo!
domingo, 13 de outubro de 2024
quinta-feira, 10 de outubro de 2024
terça-feira, 8 de outubro de 2024
ANTÓNIO LOBO ANTUNES, in AS CRÓNICAS (D. Quixote, 2022)
The secret of a full life is to live and relate to others as if they might not be there tomorrow, as if you might not be there tomorrow. It eliminates the vice of procrastination, the sin of postponement, failed communications, failed communions. This thought has made me more and more attentive to all encounters. meetings, introductions, which might contain the seed of depth that might be carelessly overlooked. This feeling has become a rarity, and rarer every day now that we have reached a hastier and more superficial rhythm, now that we believe we are in touch with a greater amount of people, more people, more countries. This is the illusion which might cheat us of being in touch deeply with the one breathing next to us. The dangerous time when mechanical voices, radios, telephones, take the place of human intimacies, and the concept of being in touch with millions brings a greater and greater poverty in intimacy and human vision. ~Anaïs Nin
“I can never read all the books I want; I can never be all the people I want and live all the lives I want. I can never train myself in all the skills I want. And why do I want? I want to live and feel all the shades, tones and variations of mental and physical experience possible in my life. And I am horribly limited.”
segunda-feira, 7 de outubro de 2024
O Poema Pouco Original do Medo
O medo vai ter tudo
Sim
Há palavras que nos beijam
Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)
Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Project: To the unpopular girls
Iben Gad
“A reaction. That’s probably what we were looking for. Depending on your reaction, we indirectly evaluated whether it was worth continuing or not. When you responded like you did, we evaluated that you were an easy victim.”
Through conversations with the bullies of my early teenage years, I’m trying to get a better understanding of a time period of my life. The project is driven by my curiosity to get to know what drove my bullies and how they reflect on that time period, and I’m seeking answers to the questions I’ve been asking myself throughout the years.
‘To the unpopular girls’ (2021) is a personal project about identity that explores social dynamics in my childhood. For this project I asked eight of my bullies if they wanted to meet me for a conversation and for a photo session too. The project takes form as a book and is built of interviews, portraits and archive material such as screenshots, photographs and paintings. Today the bullies are not involved in my life but I’m still sometimes nervous that they will start commenting on my photos or show up when I have to talk in groups. I spend a lot of time wondering who they are and what they come from. And do they remember me?
As a documentary photographer I’m interested in social dynamics and power structures in society and everyday life. I’m often pointing my attention towards eyes, hands and silent people, and both as a photographer and a person I find it interesting to visit places I’ve been before to see how things and our perceptions changes during time.
quarta-feira, 2 de outubro de 2024
domingo, 29 de setembro de 2024
''aparições do meio-dia''
Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto ''Surpresas de Agosto (1980)'' Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 121
''uma velha guardadora de gansos''
Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto ''Surpresas de Agosto (1980)'' Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 121
SEIS POEMAS CONFIADOS À MEMÓRIA DE NORA MITRANI - VI
A que vens, solidão, com teu relógiode ponteiros de visgo, de bater de feltro?
Ombro nenhum ao meu ombro encostado,
a que vens, ó camarada solidão?
até ausente, ó solidão, te amei,
como se ama o frio até o frio dar
a chama que tu dás, ó solidão!
A que vens, enfermeira? Não sabes que estou morto,
que se digo o meu sim ou o meu não
é só para que os outros me julguem mais um outro,
é só para que um morto não tire o sono aos outros?
A que vens, solidão? Vai antes possuir
os que amam sem esperança e sem saber esperam,
dá-lhes o teu conforto, encosta-lhes ao ombro
o teu ombro nenhum, ó solidão!
Alexandre O'Neill
(1924-1986)
In "Poemas com Endereço"
(1962)
''Era uma época em que tudo cheirava e sabia a ranço, em que o amor era vigiado e mal tolerado, em que um jovem não era senhor dos seus passos (errados ou certos, não interessa).''
Alexandre O'Neill
POEMA À MÃE
eu sei que te traí, mãe.
Tudo porque já não sou
o menino adormecido
no fundo dos teus olhos.
Eugénio de Andrade, ''Os Amantes sem Dinheiro