sábado, 28 de setembro de 2024
TENDA À BEIRA DA ESTRADA
Quem vier será uma revelação. O nosso coração está
preparado para todo o tipo de feridos, mas a nossa
farmácia, não.
Quem vem lá? - Se vierem cobertos de fatos cor de lama
quarente e cinco quilos de municões às costas, máscaras
de astronauta, por dentro homens, virão da guerra do Iraque.
Grandes feridas escondidas rasgadas pelas bocas das AK-quarenta e sete.
Para eles, temos laser e penicilina depurada, e tudo passará
como previsto. Diante da televisão, não sofrem nada. E contudo
não são soldados do Iraque, não. Os pássaros que trazem à cintura
não foram atingidos por petróleo bruto. Voam.
Quem vem lá?- Estamos preparados. Se vierem protegidos
por capotes longos, chapéus de ferro e máscaras antigás, é possível que
estejam a regressar da Batalha de Verdun. Se assim for, para as feridas
produzidas pelas lâminas de baionetas e munições de rifles
temos morfinas, opiáceos, agulhas grossas passadas pelo fogo.
Beberão vinho para serem amputados, e serão estóicos. Foram instruídos
pelos manuais do super-homem, tal como Nietzsche dixit.
Mas não vieram das planuras de Verdun. Os pássaros que os seguem
não são os corvos da França de mil novecentos e dezasseis, não.
quinta-feira, 26 de setembro de 2024
de notícias sobre o armistício de uma guerra, numa terra onde
nunca esteve nem estará, como se fosse uma pátria sua, não
se usa. Desusadamente, abro a porta aos ventos que trazem
desgraçados do outro lado do mar, e isso não se usa.»
Lídia Jorge. O Livro das Tréguas. Poesia. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 2019.,p. 46
terça-feira, 24 de setembro de 2024
''Para os homens, / Eu sou só um delírio da noite.''
Eu sou só um delírio da noite.
Parece que eu vivo só a noite fantástica desses homens!
E quando eles acordam,
Vem o dia.
Então sinto que vou ser sempre a noite
E nunca o dia de alguém.
Eu espero um dia ser o dia de alguém.”
Gabriela Medeiros
domingo, 22 de setembro de 2024
A meu favor
tenho o verde secreto dos teus olhos
algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
o tapete que vai partir para o infinito
esta noite ou uma noite qualquer
A meu favor
as paredes que insultam devagar
certo refúgio acima do murmúrio
que da vida corrente teime em vir
o barco escondido pela folhagem
o jardim onde a aventura recomeça.
sábado, 21 de setembro de 2024
lepidopterólogo
nome masculino
[
A MORTE DE UMA ACTRIZ PORNOGRÁFICA
(...)
''A indústria dir-se-á chocada,
assim replicando os valores da sociedade
sita embora numa ou noutra produtora
onde não distantes jaguares
atalham vias rápidas em segurança
e vão do ponto a ao ponto b
com os seus bigodes intocados
e devemo-lo a visionários preservacionistas,
a um verde lobbying,
entre barcos-pirata ecologistas
flutuando num mar de plástico.
A roda em que apodrecemos
Já há um, então comité.
Também já existe, uma subcomissão.''
Ricardo Araújo Pereira, humorista
INSTALAÇÃO
Pássaro pousado
em arame farpado.
O DESEMBARQUE DAS ONDAS
onda sobre onda
(
esta amortalhando a anterior.
).
o mar é um enterro.
quarta-feira, 18 de setembro de 2024
Carne Doce - Artemísia
«Não é de espantar que sejas bela,
que voes só para outros e não para ti.
Não passas de uma lagarta de visom
incendiando paixões de terceira idade,
tudo ilusão, vaidade, pretensão,
escapando sob pós de perlimpimpim
dos dedos mágicos de criança.»
''crisálida do entomólogo''
Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 38
segunda-feira, 16 de setembro de 2024
''Não há mortos que morram tanto como os nossos''
Gonçalo M. Tavares
domingo, 15 de setembro de 2024
«Para conseguirem que María adormecesse nessa primeira noite, tiveram de lhe injectar um sonífero. Ao romper do dia, quando a vontade de fumar a acordou, viu-se amarradas pelos pulsos e tornozelos às grades da cama. Ninguém acudiu aos seus gritos.»
Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto ''Só vim fazer um telefonema (1978)'' Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 101
«Alguma coisa se passou então no espírito de María fazendo-a compreender porque é que as mulheres do autocarro se moviam como se estivessem no fundo de um aquário. Na realidade, estavam sedadas com tranquilizantes, e aquele palácio de sombras, com espessos muros de cantaria e escadas geladas, era na realidade um hospital de doentes mentais.''
Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto ''Só vim fazer um telefonema (1978)'' Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 100/101''aguaceiros primaveris''
Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto ''Só vim fazer um telefonema (1978)'' Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 91
'' - Só a poesia é clarividente - disse ele.''
Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto ''Alugo-me para Sonhar (1980)'' Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 91
Alugo-me para Sonhar (1980)
Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto ''Alugo-me para Sonhar (1980)'' Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 83
''na primavera anterior eu lera um belo romance de Yasunari Kawabata sobre os velhos burgueses de Quioto que pagavam somas enormes para passarem a noite a contemplar as raparigas mais belas da cidade, despidas e narcotizadas, enquanto agonizavam de amor ao lado delas, na mesma cama.''
Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto ''A Santa''. Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 80/1''anel de um noivado efémero''
Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto ''A Santa''. Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 80
''quanto mais velho mais duro é o corno - disse o papa''
Herberto Helder. Letra Aberta. Poemas inéditos escolhidos por Olga Lima. Porto Editora, 2016., p. 58
''sopra-me na boca''
Herberto Helder. Letra Aberta. Poemas inéditos escolhidos por Olga Lima. Porto Editora, 2016., p. 52
a ferida da memória,
mas por trás o sangue tão devagar dói,
tão fundo dói, e passa
um dia ainda, com sua noite adjunta, e desemboca,
o sangue impuro que uma vez mais se purifica
até um outro dia, e esse já não, que com certeza,
e então espero mais vinte e quatro horas de mais nada
que como quando
um dia em que penso ou não penso,
um que não passa tão certamente desatento,
errático, diz alguém não sei onde e quando,
que só aqui e só agora digo,
mas não faço,
enfim: não morro por enquanto,
só um pouco mais tarde, porque afinal um homem é de ferro
sábado, 14 de setembro de 2024
“A vida é feita de escolhas. E cada escolha, por mais insignificante que pareça, traz consigo consequências que não podemos prever. Ninguém pode evitar o impacto das suas decisões. Caminhamos por um terreno incerto, e a cada passo, moldamos o nosso destino, quer queiramos ou não. A única certeza é que o passado não pode ser desfeito, e o futuro é a soma de cada um desses passos.”
domingo, 1 de setembro de 2024
sábado, 31 de agosto de 2024
a ferida da memória,
mas por trás o sangue tão devagar dói,
tão fundo dói, e passa
um dia ainda, com a sua noite adjunta, e desemboca,
o sangue impuro que uma vez mais se purifica
até um outro dia, e esse já não, que com certeza,
e então espero mais vinte e quatro horas de mais nada
que como quando
um dia em que penso ou não penso,
um que não passa tão certamente desatento,
errático, diz alguém não sei onde e quando,
que só aqui e só agora digo,
mas não faço,
enfim: não morro por enquanto,
só um pouco mais tarde, porque afinal um homem é de ferro
quarta-feira, 28 de agosto de 2024
Auberge Ravoux
A tristeza vai durar para sempre.
Do crocitar dos corvos sobre os campos
Abre-se um abismo sem fim.
Ó estrelas de prata
Estrelas do anseio pela liberdade
Como passou o vosso jovem sopro!
Caio na noite sem fim
Longe do sol que fez de mim um girassol enlouquecido.
A tristeza vai durar para sempre.
SOLIDÃO
É o panorama duma cidade
O casario mudo sob um céu abrasado.
São duas linguagens emaranhadas
Que não se desentrançam
Um toque que não aflora
Numa coxa querida.
Aqui do alto
Como são minúsculos os corpos
Vãos os laivos de vida
Que se desenham no
Labirinto do espanto.
Perfilam-se as memórias
Na superfície diáfana dos olhos
E as cidades baralham-se
Desabam, reerguem-se
À sombra da inquietude
E da inconsciência humana.
A solidão é a geografia desesperada
De um mundo sem língua.
Repousa dormente
E as folhas
Num murmuro tépido
Fazem as suas vozes brancas
Assomar do leito do adeus.
Delicados luzeiros cativos
Transplantados para as cidades
Onde, por sobre as lajes
Alumiais as cabeças fatigadas
Da turba com as vossas
Luzes frias.
Pirilampos sem memória
Cobertos de cera
Entristecem, entontecem
A pele das estrelas.
''eu deito-me sobre ti e aguardo o oblívio''
Tomás Sottomayor. Auberge Ravoux. Edições Língua Morta, 2021., p. 45
Taciturno sorvo o leite negro
De tudo o que se perdeu.
Ajoelho-me sob o peso da tua mão
E aguardo o sinal para que a minha
Se mova sem hesitação
Para arquear um novo céu.
Tenho um desejo insular
Por mundos invisíveis.
A CADELA ROMENA
Na margem do Danúbio
Num dia de beleza e desolação.
Correu ao meu encontro plena de ternura
Com os olhos alumiados de pureza.
Parti piedoso, triste, furioso
Com a imagem da pobreza
À flor dos olhos:
A cadela sarnenta
Com as tetas túmidas da solidão.
segunda-feira, 26 de agosto de 2024
terça-feira, 20 de agosto de 2024
Francesca Woodman, virgem suicida
''Morreu no inverno, dia 19 de janeiro de 1981, depois de saltar para o vazio do telhado de um edifício do East Side de Nova York, vítima de depressão. Naquela época, ninguém foi capaz de identificar aquele corpo, que jazia com o rosto desfigurado, o mesmo que ela havia retratado, muitas vezes, procurando dar voz à sua arte e que parece tão familiar em seu trabalho. Aquele dia morria Francesca Woodman, a desconhecida jovem fotógrafa de 22 anos. Nascia seu culto.''
Francesca Woodman começou a fotografar aos 13 anos e suicidou-se aos 22. Nas centenas de imagens que produziu, o centro é quase sempre ela própria, quase sempre sozinha, frequentemente nua.
https://www.publico.pt/2012/04/19/culturaipsilon/noticia/francesca-woodman-virgem-suicida-303736
Francesca Woodman, virgem suicida
A maior retrospectiva americana desde a sua morte, em 1981, está actualmente no Museu Guggenheim em Nova Iorque, onde pode ser vista até 13 de Junho. Corey Keller, curadora de fotografia do Museu de Arte Moderna de São Francisco (SFMOMA), onde a exposição inaugurou em Novembro, antes de viajar para Nova Iorque, trabalhou durante quase cinco anos na preparação da retrospectiva. "Quando olhamos para um auto-retrato, esperamos aprender qualquer coisa sobre a pessoa representada", diz. "Mas depois de olhar para centenas de fotografias de Francesca Woodman, eu não sei quem ela é. Isso foi a parte mais frustrante para mim. Não se consegue perceber quem ela é. Ela não deixa. Ela aparece e desaparece e não há como fixá-la a nada."
segunda-feira, 19 de agosto de 2024
domingo, 18 de agosto de 2024
“La atadura se convierte en un abrazo fuerte”
Nobuyoshi Araki
as raparigas mais belas da cidade, despidas e narcotizadas
«(...) na primavera anterior eu lera um belo romance de Yasunari Kawabata sobre os velhos burgueses de Quioto que pagavam somas enormes para passarem a noite a contemplar as raparigas mais belas da cidade, despidas e narcotizadas, enquanto agonizavam de amor ao lado delas, na mesma cama. Não podiam despertá-las, nem tocar-lhes, e nem sequer o tentavam, pois que era vê-las dormir a essência do prazer.»
''anel de noivado efémero''
Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto ''A Santa''. Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 80
« O tenor e eu não dormíamos a sesta, íamos os dois na vespa dele, ele a conduzir e eu atrás, e oferecíamos gelados e chocolates às putazinhas estivais que borboleteavam debaixo dos loureiros centenários de Villa Borghese, à procura de turistas despidos para apanhar sol. Eram bonitas, pobres e meigas, como a maioria das italianas daquele tempo, vestidas de organza azul, de popeline cor-de-rosa, de linho verde, e protegiam-se do sol com as sombrinhas rasgadas pelas chuvas da guerra recente.»
« Mas a verdadeira história de Margarito Duarte começara seis meses antes da sua chegada a Roma, quando foi preciso mudar de sítio o cemitério da sua aldeia por causa da construção de uma represa. Como todos os habitantes da região, Margarito desenterrou os ossos dos seus mortos para os levar para o cemitério novo. A esposa voltara a ser pó.»
Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto ''A Santa''. Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 56«Tal como o vês, velho e estragado, ainda deve ser um tigre na cama », disse ela. Mas pensava que o presidente desperdiçara esses dons de Deus ao serviço da dissimulação.»
'' os canteiros de flores despedaçadas pelo vento''
Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto Boa Viagem, Senhor Presidente (1979) Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 25
«A única coisa que denunciava o seu estado de saúde era a fadiga da pele. E ainda assim, aos setenta e três anos continuava a ser de uma elegância de primeira água. Nessa manhã, contudo, sentia-se a salvo de toda a vaidade. Os anos de glória e de poder haviam ficado para trás sem remédio, e só permaneciam agora os da morte.»
Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto Boa Viagem, Senhor Presidente (1979) Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 21/22« Quando chegara a Genebra pela primeira vez, o lago era sereno e transparente, e havia gaivotas mansas que vinham comer à mão, e mulheres que se podiam alugar e pareciam fantasmas das seis da tarde, com enfeites de organdi e sombrinhas de seda.»
salvou do cansaço dos começos sucessivos
«Além disso, trabalhando em todos os contos ao mesmo tempo e saltando de um para o outro com plena liberdade, consegui uma visão panorâmica que me salvou do cansaço dos começos sucessivos e me ajudou a detetar redundâncias ociosas e contradições mortais.»
« Quando comecei a Crónica de Uma Morte Anunciada, em 1979, comprovei que, nos intervalos entre dois livros, perdia o hábito de escrever, tornando-me cada vez mais difícil recomeçar. Por isso, entre outubro de 1980 e março de 1984, impus-me a tarefa de escrever uma nota semanal em jornais de diferentes países, como exercício disciplinador e de aquecimento da mão.»
Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 14/5
« Vou deixar este mundo sem me sentir triste. A vida já não me atrai. Eu vi e experimentei tudo. Odeio a era actual, estou farto dela! Só vejo pessoas detestáveis. Tudo é falso, tudo é substituído. Todos riem uns dos outros sem olharem para si mesmos! Já não há respeito nem palavra dada. Só o dinheiro é que interessa.''
Alain Delon (1935-2024) em entrevista à Paris Match (2018)
culto de hiperdulia
Hiperdulia é um termo teológico utilizado pelas Igrejas Católica e Ortodoxa que significa a honra e o culto de veneração especial devotados a Nossa Senhora.