quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

"O silêncio é a minha maior tentação. As palavras, esse vício ocidental, estão gastas, envelhecidas, envilecidas. Fatigam, exasperam. E mentem, separam, ferem. Também apaziguam, é certo, mas é tão raro! Por cada palavra que chega até nós, ainda quente das entranhas do ser, quanta baba nos escorre em cima a fingir de música suprema! A plenitude do silêncio só os orientais a conhecem".


 Eugénio de Andrade
“Tudo existe dentro da nossa intimidade comovida. O nosso amor é um mar onde mergulham e flutuam todas as coisas… Esta auréola sentimental que nos envolve, exala-se do nosso coração e expande-se no infinito espaço, e a expansão é indefinida…
[… ]
Amar alguém não é, de algum modo, ser esse alguém?”



 Teixeira de Pascoaes,“A Caridade”, in “O Homem Universal e outros escritos, Lisboa, Assírio & Alvim, 1993, pp.146-147
"Não te poderás considerar um verdadeiro intelectual se não puseres a tua vida ao serviço da justiça; e sobretudo se te não guardares cuidadosamente do erro em que se cai no vulgo: o de a confundir com a vingança. A justiça há-de ser para nós amparo criador, consolação e aproveitamento das forças que andam desviadas; há-de ter por princípio e por fim o desejo de uma Humanidade melhor; há-de ser forte e criadora; no seu grau mais alto não a distinguiremos do amor"

Agostinho da Silva, “Pelos vencidos”, Considerações [1944], in Textos e Ensaios Filosóficos I, p. 112.

The Wild Child


« - É verdade que a noite está cheia de pecados,  Justina?
-Sim, Susana.
-E é verdade?
-Deve ser, Susana.
-E o que é que tu pensas que a vida é, Justina, senão um pecado? Não ouves? Não ouves como a Terra range?
 - Não, Susana, não consigo ouvir nada. A minha sorte não é tão grande como a tua.
 -Ficarias assustada. Digo-te que ficarias assustada se ouvisses o que eu ouço.
  Justina continuou a pôr ordem no quarto. Passou uma e outra vez o pano pelas tábuas húmidas do chão. Limpou a água da jarra partida. Recolheu as flores. Pôs os vidros no balde cheio de água.
-Quantos pássaros mataste tu na vida, Justina?
-Muitos, Susana.
-E não sentiste tristeza?
-Sim, Susana.
-Então, estás à espera de quê para morreres?
-Da morte. Susana.
-Se é disso, não tardará. Não te preocupes.
Susana San Juan estava sentada na cama, recostada nas almofadas. Os olhos inquietos, olhando para todos os lados. As mãos sobre o ventre, presas ao ventre como uma concha protectora. Havia leves zumbidos que se cruzavam como asas por cima da sua cabeça. E o barulho das roldanas na nora. O rumor das pessoas ao acordar.
-Tu acreditas no Inferno, Justina?
-Sim, Susana. E também no Céu.
-Eu só acredito no Inferno - disse. E fechou os olhos.»


Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 127

«Sentiu desfilar diante dele o trote de cavalos escuros, confundidos com a noite. O suor e o pó; o tremor de terra. Quando viu os pirilampos novamente a luzir, deu-se conta de que todos os homens tinham partido. Ficava ele, só, como um tronco duro que começava a desgastar-se por dentro.»


Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 126

«Mais tarde teve de tirar a camisa de noite porque a noite começou a ficar quente...»

Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 124

«Era uma dessas luas tristes que ninguém olha, de que ninguém faz caso. Ali esteve, algum tempo, desfigurada, sem dar luz alguma, e depois foi esconder-se atrás dos cerros.»


Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 122/3

''amargos de boca''



«Oh, porque não chorei e me desfiz então em lágrimas para aliviar a minha angústia.»

Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 118

Então fundo-me nele, inteira.


«Então fundo-me nele, inteira. Entrego-me a ele no seu forte bater, no seu suave possuir, sem lhe negar nada.»


Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 113/4
«- É como se fosses um ''pico feio'', um entre mmuitos - disse-me. - Gosto mais de ti à noite, quando estamos os dois na mesma almofada, debaixo dos lençóis, na escuridão.»


Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 113

«Se ao menos soubesse o que a maltratava por dentro, o que a fazia revolver-se destapada, como se a despedaçassem até a inutilizarem.»


Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 1112

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015


«- A luz acende gotas de suor nos seus lábios.»

Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 109

« - Que fizemos nós? Porque nos apodreceu a alma?»


Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 102

Boy with pet owls, circa 1911


''rezando terços intermináveis''

«As suas pestanas já quietas; quieto já o seu coração.»

Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 94

  «Eu devia ter gritado; as minhas mãos deveriam ter-se despedaçado, esmagando o seu desespero.»

Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 93

sacristia

«(...) o sabor a sangue na língua.»


Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 92

«- Vou andar um pouco, Ana. Para ver se arejo.
-Sente-se mal?
-Mal não, Ana. Mau. Um homem mau. É isso que sinto que sou.»


Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 90

«-Eu sou um pobre homem disposto a humilhar-se, enquanto sentir o impulso para o fazer.»



Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 83

Vinho de sabugueiro

«Descansei o vício dos meus remorsos.»


Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 83

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Doença Dos Ossos de Vidro

Osteogénese imperfeita

O guião é o princípio de um processo visual e não o final de um processo literário.
O romancista escreve enquanto o guionista trama, narra e descreve.


(Jean-Claude Carrière)
"O homem não nasce para trabalhar, nasce para criar, para ser o tal poeta à solta."
Agostinho da Silva, Entrevista

ENTRE DUAS MEMÓRIAS
"Se fosse possível distinguir o amor verdadeiro do falso como se distinguem os bons dos maus cogumelos. Para estes é tão simples. Bast polvilhá-los com sal, pô-los de lado e esperar. Mas no que diz respeito ao amor, logo que descobrimos qualquer coisa que de longe se lhe assemelhe, estamos absolutamente certos não de que é um especimen autêntico, mais ainda de que é talvez o único cogumelo verdadeiro ainda por colher. E é necessário um número terrível de cogumelos venenosos para nos convencermos de que a vida não é toda ela um imenso cogumelo comestível."
-"Diário"
- Katherine Mansfield
"Morreremos sem conhecer uma fracção grande de nós. E isto apenas porque ela não teve oportunidade de se manifestar. Eis porque, por exemplo, nem todos sabem de si que são heróis, ou cobardes"
- Vergílio Ferreira

POETA NU


"Que sabe um rio dos seus afluentes? E os afluentes dos subafluentes? E estes dos pequenos regatos da montanha? Os rios não têm memória. (Embora digam que a memória é um rio.)
Têm água. E nós sede."
-"O Poeta Nu"
- Jorge de Sousa Braga 

DESPEÇO-ME


"E só tu sobressais entre as demais
mulher eterna com a luz na fronte
e dominante agora em todo o horizonte
Humano mesmo se demasiado humano
povoam-me cidades sossegadas
de sonhos que semeiam as semanas
onde só o silêncio é soberano
Dobra-se a brisa à mão do meio-dia
a fantasia é fértil em verdade
e do presente obscuro português
algum futuro há-de enfim nascer
Do salmo lúgubre da luz final do dia
que já há quatro séculos se entoa
hã-de rasgar a noite portuguesa
as raparigas da cidade de lisboa
E eu hei-de voar ao vento do momento"

-"Despeço-me da Terra da Alegria"
- Ruy Belo 
"sente-se a lentidão, o peso,
minarem cada gesto; e antes
do gesto, a ideia de o fazer;
dançam agora dois a dois,
reconstituem a unidade
cindida ainda há pouco; os pares
mortais; a vocação
de transformar o tempo em rostos;
somam-se duas mortes,
e obtém-se uma criança; ela, sim:
resistirá, crescendo,
ao desgaste do dia,
procurará na outra noite
o corpo que define o seu;
protege-a a espuma, a máscara,
até de madrugada; e então,"

-"Entre Duas Memórias"
- Carlos de Oliveira 

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

John Mateer



ESTA NOITE TUDO SERÁ BOM 

"Às vezes dou comigo a pensar no passado.
Jurámos um ao outro
que o nosso amor certamente sobreviveria.
Tu continuaste a amar. Eu fiz dieta.
Agora estou demasiado magro
e o teu amor é demasiado grande.
Mas, vejo pelos teus olhos, vejo pelo teu sorriso,
esta noite tudo será bom!
Tudo estará bem, por um momento.
Escolho os quartos em que durmo com cuidado.
As janelas são pequenas e as paredes quase nuas.
Há só uma cama, há só uma oração,
e espero toda a noite pelos teus passos na escada.
Mas, vejo pelo teus olhos, vejo pelo teu sorriso,
esta noite tudo será bom!
Tudo estará bem, por um momento.
Às vezes vejo-a despindo-se para mim.
Ela é a doce senhora nua que o amor construiu,
e move o seu corpo tão belo e tão livre.
Se eu tiver que lembrar,
essa será a melhor recordação.
Mas, vejo pelos teus olhos, vejo pelo teu sorriso,
esta noite tudo será bom!
Tudo estará bem, por um momento."

 Leonard Cohen"59 Canções de Amor e Ódio e Um Poema Sobre Portugal"

Delfim Lopes


Dava pelo nome muito estrangeiro de Amor, era preciso chamá-lo
sem voz - difundia uma colorida multiplicação de mãos, e aparecia
depois todo nu escutando-se a si mesmo, e fazia de estátua durante um
parque inteiro, de repente voltava-se e acontecera um crime, os jornais
diziam, ele vinha em estado completo de fotografia embriagada, desco-
bria-se sangue, a vítima caminhava com uma pêra na mão, a boca estava
impressa na doçura intransponível da pêra, e depois já se não sabia o
que fazer, ele era belo muito, daquela espécie de beleza repentina e
urgente, inspirava a mais terrível acção do louvor, mas vinha comer às
nossas mãos, e bastava que tivéssemos muito silêncio para isso, e então
os dias cruzavam-se uns pelos outros e no meio habitava uma montanha
intensa, e mais tarde às noites trocavam-se e no meio o que existia agora
era uma plantação de espelhos, o Amor aparecia e desaparecia em todos
eles, e tínhamos de ficar imóveis e sem compreender, porque ele era
uma criança assassina e andava pela terra com as suas camisas brancas
abertas, as suas camisas negras e vermelhas todas desabotoadas.


Herberto Helder

in Vocação Animal, Dom Quixote, Lisboa, Maio de 1971.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Where there's smoke, there's fire.




"quantas vezes falamos sem nada dizermos do que é real,
mas sem desconhecermos um só instante essa realidade. Um entretém"



Maria Gabriela Llansol, Onde Vais, Drama-Poesia?, p.94.

domingo, 15 de fevereiro de 2015

neo-bestas

"Sad Eyed Lady Of The Lowlands"




With your mercury mouth in the missionary times
And your eyes like smoke and your prayers like rhymes
And your silver cross, and your voice like chimes
Oh, who do they think could bury you ?
With your pockets well protected at last
And your streetcar visions which you place on the grass
And your flesh like silk, And you face like glass
Who among them do they think could carry you ?
Sad-eyed lady of the lowlands
Where the sad-eyed prophet says that no man comes
My warehouse eyes, my Arabian drums
Should I put them by your gate
Oh, sad-eyed lady, should I wait ?

With your sheets like metal and your belt like lace
And your deck of cards missing the jack and the ace
And your basement clothes and your hollow face
Who among them can think he could outguess you ?
With your silhouette when the sunlight dims
Into your eyes where the moonlight swims
And your match-book songs and your gypsy hymns
Who among them would try to impress you ?
Sad-eyed lady of the lowlands
Where the sad-eyed prophet says that no man comes
My warehouse eyes, my Arabian drums
Should I put them by your gate
Oh, sad-eyed lady, should I wait ?

The kings of Tyrus with their convict list
Are waiting in line for their geranium kiss
And you wouldn't know it would happen like this
But who among them really wants just to kiss you ?
With your childhood flames on your midnight rug
And your Spanish manners, and your mother's drugs
And your cowboy mouth and your curfew plugs
Who among them do you think could resist you ?
Sad-eyed lady of the lowlands
Where the sad-eyed prophet says that no man comes
My warehouse eyes, my Arabian drums
Should I leave them by your gate
Oh, sad-eyed lady, should I wait ?
Oh, the farmers and the businessmen they all did decide
To show you the dead angels that they used to hide
But why did they pick you to sympathize with their side ?
How could they ever mistake you ?
They wished you'd accepted the blame for the farm
But with the sea at your feet and the phony false alarm
And with the child of a hoodlum wrapped up in your arms
How could they ever, ever persuade you ?
Sad-eyed lady of the lowlands
Where the sad-eyed prophet says that no man comes
My warehouse eyes, my Arabian drums
Should I leave them by your gate
Oh, sad-eyed lady, should I wait ?

With your sheet-metal memory of Cannery Row
And your magazine-husband who one day just had to go
And your gentleness now, which you just can't help but show
Who among them do you think would employ you ?
Now you stand with your thief, you're on his parole
With your holy medallion which your fingertips fold
And your saintlike face and your ghostlike soul
Who among them do you think could destroy you ?
Sad-eyed lady of the lowlands
Where the sad-eyed prophet says that no man comes
My warehouse eyes, my Arabian drums
Should I leave them by your gate
Oh, sad-eyed lady, should I wait ?
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