quarta-feira, 18 de junho de 2014

«Eu não dispenso a morte eu quero morrer muito »

««nunca até hoje eu morrera tanto em alguém»

«ele vai só não tem ninguém / onde morrer um pouco toda a morte que o espera»


«No teu amor por mim há uma rua que começa»

   «Depois, os ombros. Há toda uma relação com a amada e o amigo que passa por esta valorização dos ombros como lugar de apoio para duas pessoas que caminham lado a lado: «Há no meu ombro lugar/para o teu cansaço » (p.29), «tu és uma presença redonda no meu ombro de morte» (p.45), «uma mulher, alguém capaz de partilhar / o peso que nos ombros de cada dia puser » (p.101). E o homem isolado na cidade é aquele que não tem «um ombro para o seu ombro » (p.19).
 
sobre o poeta Ruy Belo
 
 
Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 156

ESTIRPE

Os mendigos maiores não dizem mais, nem fazem nada.
Sabem que é inútil e exaustivo. Deixem-se estar. Deixem-se
                                                                                             estar.
Deixem-se estar ao sol e à chuva, com o mesmo ar de
                                                                           completa coragem,
longe do corpo que fica em qualquer lugar.



Entretêm-se a estender a vida pelo pensamento.
Se alguém falar, sua voz foge como um pássaro que cai.
E é de tal modo imprevista, desnecessária e surpreendente
que, para a ouvirem bem, talvez gemessem algum ai.


Oh! não gemiam, não...Os mendigos maiores são todos
                                                                                       estóicos.
Puseram sua miséria junto aos jardins do mundo feliz
mas não querem que, do outro lado, tenham notícia da
                                                                                      estranha sorte
que anda por eles como um rio num país.


Os mendigos maiores vivem fora da vida: fizeram-se excluídos.
Abriram sonos e silêncios e espaços nus, em redor de si.
Têm seu reino vazio, de altas estrelas que não cobiçam.
Seu olhar não olha mais, e sua boca não chama nem ri.

E seu corpo não sofre nem goza. E sua mão não toma nem
                                                                                          pede.
E seu coração é uma coisa que, se existiu, já esqueceu.
Ah! os mendigos maiores são um povo que se vai conver-
                                                                                        tendo em pedra.

Esse povo é que é o meu.



Cecília Meireles. Antologia Poética. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores. Lisboa, 1968, p. 31

terça-feira, 17 de junho de 2014

''lábios brancos de medo''

«Quando penso no teu rosto
fecho os olhos de saudade;
tenho visto muita coisa,
menos a felicidade.»



Cecília Meireles. Antologia Poética. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores. Lisboa, 1968, p. 27

« -por dentro das tuas máscaras,
meus olhos, sérios e lúcidos,
viram a beleza amarga.»



Cecília Meireles. Antologia Poética. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores. Lisboa, 1968, p. 20
«Surgi do meio dos túmulos,
para aprender o meu nome.»


Cecília Meireles. Antologia Poética. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores. Lisboa, 1968, p. 18
«O choro foge sem vestígios,
mas levando náufragos dentro.»


Cecília Meireles. Antologia Poética. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores. Lisboa, 1968, p. 18


«(...)

Nunca ninguém viu ninguém
que o amor pusesse tão triste.
Essa tristeza não viste,
e eu sei que ela se vê bem...
Sé se aquele mesmo vento
fechou teus olhos, também...


Cecília Meireles. Antologia Poética. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores. Lisboa, 1968, p. 16

«(...)

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.»


Cecília Meireles. Antologia Poética. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores. Lisboa, 1968, p. 15

RETRATO

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão parada e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
-Em que espelho ficou perdida
a minha face?


Cecília Meireles. Antologia Poética. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores. Lisboa, 1968, p. 13

segunda-feira, 16 de junho de 2014

A LUME

''Entre os ruídos apaixonantes, deves acrescentar a voz de um ser que se deseja, atrás da sebe,atrás da cortina da liteira, atrás da porta ou da tapeçaria de brocado.
 Quando escuto o ruído apaixonante do copo de dados, fico toda ruborizada,o meu coração torna-se uma espécie de odre de vinho que o cabreiro tira da ribeira e leva avidamente à boca."

  Pascal Quignard
As Tábuas de Buxo de Apronenia Avitia

sábado, 14 de junho de 2014


A CÓLERA DIVINA

Quando fui ferida,
por Deus, pelo diabo, ou por mim mesma,
- ainda não sei -
percebi que não morrera, após três dias,
ao rever pardais
e moitinhas de trevo.
Quando era jovem,
só estes passarinhos.
estas folhinhas bastavam
para eu cantar louvores,
dedicar óperas ao Rei.
Mas um cachorro batido
demora um pouco a latir,
a festejar seu dono
 - ele, um bicho que não é gente -
tanto mais eu que posso perguntar:
por que razão me bates?
Por isso, apesar dos pardais e das reviçosas folhinhas
uma tênue sombra ainda sobre meu espírito.
Quem me feriu perdoe-me.



Adélia Prado. Com Licença Poética. Selecção e prefácio de Abel Barros Baptista. edições Cotovia, Lisboa, 2003., p.71
''neste quarto meu pai morreu,
aqui deu a corda ao relógio
e apoiou os cotovelos
no que pensava ser uma janela
e eram os beirais da morte''

Adélia Prado. Com Licença Poética. Selecção e prefácio de Abel Barros Baptista. edições Cotovia, Lisboa, 2003., p. 66

Comecei a chorar de prazer e vergonha.

buracos negros no peito



ISOLATION

People say we've got it made
Don't they Know we're so afraid
Isolation

We've afraid to be alone
Everybody got to have a home
Isolation

Just a boy and a little girl
Trying to change the whole wide world
Isolation

The world is just a little town
Everybody trying to put us down
Isolation

I don't expect you to understand
After you've caused so much pain
But then again you're not to blame
You're just a human
A victim of the insane

We're afraid of everyone
Afraid of the sun
Isolation

The sun will never disappear
But the world may not have many years
Isolation


John Lennon. Canções (1968-1980) Colecção Rock On n.º 5. Centelha., p. 48
As soon as you're born they make you feel smanll
By giving you no time instead of it all
Till the pain is so big you feel nothing at all



John Lennon. Canções (1968-1980) Colecção Rock On n.º 5. Centelha., p. 47
«I've seen thru junkies I've been thru it all
I've seen religion from Jesus to Paul
Don't let them fool you with dope and cocaine
No one can hang you feel your own pain»

John Lennon

Bagism, Shagism, Madism, Tagism

sexta-feira, 13 de junho de 2014


E devagar tornei-me transparente

Poesia das palavras envergonhadas
Poesia dos problemas de consciência das palavras

Poesia das palavras arrependidas


Sophia de Mello Breyner Andresen

E eu fecho os olhos para não te ver

Eu sei que trago em mim a minha morte.
Mas perdi o meu ser em tantos seres,
Tantas vezes morri a minha vida,
Tantas vezes beijei os meus fantasmas,
Tantas vezes não soube dos meus actos
Que a morte será simples como ir
Do interior da casa para a rua.

Sophia de Mello Breyner Andresen

É Janeiro muito tempo na noite

(história desse homem antigo)

Um homem muito antigo, caminhando,
ocupando demoradamente a rua.
É de noite. Uma plúmbea noite de Janeiro,
ou o Janeiro denso e severo prostrado numa só noite.
Caminha de forma velha, o homem.
É muito antigo o seu caminhar.
É um homem louco, uma loucura muito atenta.
Caminha durante uma hora inteira
em redor desta mesa. Procura.
Traz ao pescoço as chaves. Todas as chaves.
Uma hora, desta noite dura de Janeiro,
caminhando à volta desta mesa
com as pesadas chaves vergando-lhe as costas.
É muito antigo o caminhar do homem louco e atento, procurando.
É Janeiro nesta aguda noite e ele caminha louco,
muito atento,
com os ferros minguando-lhe a face de muitas estações.
É demasiado tempo para se ter dentro.
Os olhos atentos do homem, procurando no chão
em redor desta mesa.
Encontra. A sua louca atenção
encontra uma fenda no chão, perto desta mesa,
nesta noite muito antiga de Janeiro.
Retira da sua loucura muito atenta
uma chave muito grande
e lança-se longamente ao chão da rua
demoradamente ocupada.
Introduz a chave velha e grande na fenda encontrada,
roda algumas vezes:
primeiro para a direita e depois
para a esquerda da sua atenta loucura, muito antiga.
Chove um pouco
sobre o peito aberto da noite velha de Janeiro…
e o homem muito antigo está deitado
sobre a chave muito grande
cravada na fenda da sua loucura. hoca-a durante semanas. Talvez mesmo anos.
Mas é sempre aquela noite. É sempre Janeiro naquela rua.
Dorme muito tempo, muito antigo, o homem na sua loucura.
Dir-se-ia que descansa ou que aos poucos deixa de ser louco: que morre…
Mas apenas sonha.
Tem em si muito tempo, muito ferro na face.
A atenção da sua loucura vira-se para dentro.
É de noite e ele chegara muito antigo,
caminhando, demoradamente, pelo Janeiro desta rua.
Uma hora inteira em redor desta mesa
muito atento, procurando.
Agora está deitado, há muito tempo,
com a loucura por dentro, sonhando, germinando.
Janeiro é um mês que nunca acaba nesta noite.
Olho para o homem muito antigo
e não sei se voltará à noite dura de Janeiro.
Não sei se o fragor de cavalos batendo, loucos,
com as ferraduras nos olhos
é som de coisa que quer entrar ou sair.
Não sei.
Chove cada vez mais sobre as coisas da rua e nada parece acabar.
O tumulto do metal batendo nos olhos…
o som entrando e saindo,
germinando a loucura por dentro.
Penso em levantar-me.
O homem - muito antigo, atento,
demoradamente deitado sobre a chave muito grande,
cravada na fenda do chão molhado da noite louca de Janeiro - está frio.
É cada vez mais noite. Cada vez mais Janeiro. É demasiado, o tempo.
Os cavalos batem, soterrados, a loucura que sabem nos olhos.
Os cavalos aterrados batendo, loucos, o Janeiro eterno da noite.
Um homem muito antigo, deitado
chocando na loucura atenta os sonhos por dentro. Incubando.
Levanto-me.
Caminho demoradamente. Caminho o Janeiro desta rua:
a sua noite interminável.
O peso verga-me as costas. As chaves são muito pesadas ao pescoço.
É muito longa, a louca noite de Janeiro.
Procuro, muito atento, o som dos cavalos loucos,
batendo nos olhos os ferros muito antigos. hove cada vez mais. Caminho.
Já não vejo o homem muito antigo
sonhando, por dentro, a sua loucura.
A rua é muito longa quando se anda à roda.
É sempre Janeiro naquela noite louca.
Procuro pelo chão os cavalos batendo nos olhos
a sua loucura demoradamente nova.
As chaves são muito grandes.
É de noite na rua interminável de Janeiro.
Caminho muito atento, com a loucura procurando,
germinando por dentro…
…muito antigo, demoradamente.

 (Tavira, Janeiro)

Nuno Mangas-Viegas

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Le pouvoir des mots

Catherine Clément

''Era a carne da árvores (...)''


« o medo foi a minha única paixão.»

Hobbes
«Quem quiser entrar na alma, deve passar pelo nada, isto é, pelo medo.»

(da epígrafe de Burnier)
 «Eis a única certeza: «não saber onde estou.»
Definitivamente perdido, definitivamente encontrado.
 
 
Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 107
«Il parle de soi-même comme d'un autre. Il dit en parlant de soi. Il parle de soi comme d'un autre.»

Beckett

um devir-feminino do segredo

Luísa Costa Gomes
«uma mulher pode ser secreta não escondendo nada, à força da transparência, de inocência e de velocidade.»

Luísa Costa Gomes

sensações claustrais

 «(...) a língua-tal-qual-se-fala, a palavra à flor da boca, por vezes numa coloquialidade tão intensa e sofisticada que se recriam artificias de discurso. »
 
 
Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 102
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