domingo, 25 de maio de 2014

ALEGORIA SEGUNDA

De poetas e filósofos tu sabes,
sabes também por ti. Por isso eu digo:
esta pedra é vermelha, esta pedra é sangue.
Toca-lhe: saberás
como em segredo florescem as acácias
ao redor dos muros, como fluem
suas concêntricas artérias. Acaricia-as: tocas
a parte mais sensível de ti mesmo.

Dizias ontem que o verão ardia
nesta pedra. Nela
queimavas tuas mãos. Onde
as aqueces hoje? Eu digo:
o verão não morreu, esta pedra é o verão.

E tudo permanece. E tudo é teu.
Tu és o sangue, o verão e a pedra.


Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 90
«a distraída
erosão dos lábios.»


Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 86
«Escrevo contra o vento,
frente ao mar.»


Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 63
«É preciso, amor,
dar um nome a este instante.»



Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 57
«e adormecemos, hirtos, de costas para o
        mar.»


Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 51

Évora, 8 de Setembro de 1967

Ao Manuel Patrício

Os mortos
comem flores
e granadas
e lágrimas
e beijos
que os devoram.
Enxutos,
os olhos
dos mortos
choram.


Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 48-49

Uma gaiola partiu à procura dum pássaro.



«Resta-me o abandono passivo a uma íntima ternura, à sua obscura beleza, para lá de tudo o que é belo e que me humedece o olhar. Como quem ama ainda uma mulher e lhe não pode tocar. Como quem envelhece e entende a vida apenas na sua longa melancolia.» 
 
Vergílio Ferreira
  «Todo o trabalho da arte procura assegurar a aparição de si a si mesmo a colmatar todos os vazios, os escoamentos, as rupturas do eu, as quebras da memória, os espacejamentos da consciência:


 « Que a distância de ti a ti seja por ti preenchida.» Vergílio Ferreira


Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 75
   «Valerá a pena destruir Deus, o Deus da Religião ou o Deus da Política? «Derrubar o deus do altar. E depois, o altar. E depois, o sítio dele. E depois, a memória dele. E tudo ficar certo como se não. Derrubar o sinal e o signo. O visível e o invisível. E tudo ser como se. (...) E tudo funcionar como se não. Como se o invisível fosse ainda.»
 


Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 64
«Procuram no sítio das casas a memória do que lá ficou, dos deuses e da sua ordem com que se organizava a vida e ela tinha sentido e era verdade, da tranquilidade do sono à noite quando o dia se cumprira.»
 
Vergílio Ferreira
 
  «Esta imagem é tanto mais exaltante quanto a ela se vem contrapor a multiplicidade incontrolada do presente pós-terramoto e pós-revolução: é a desordem instalada no inferno das ideologias e no alarido tempestuoso das opiniões, é a ramificação de cada coisa no seu contrário e no contrário do seu contrário, é a bifurcação demente de todas as evidências em verdades e contraverdades sem prova nem acalmia.»  Eduardo Prado Coelho p. 62
 
 
«(...) Carolina, a prostituta, o ser mais divinamente animal desta galeria de sonâmbulos, reivindica para sua aldeia a reconstruir: « O que eu penso é que devia ficar tudo como estava. Não é preciso pensar muito. Tal e qual como estava. Eu por mim queria a nossa terra como era.» Vergílio Ferreira




Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 62

«atacar uma mulher na boca» - Vergílio Ferreira

as hemorragias do eu


«Pela primeira vez desde que nos conhecíamos, estendeu-me a mão num gesto envergonhado e eu senti-lhe as escamas da pele. Teve um sorriso breve e, antes de sair, disse: «Espero que os cães não ladrem esta noite. Julgo sempre que é o meu.»
 
 
Albert Camus. O Estrangeiro. Tradução de António Quadros. Editora Livros do Brasil, Lisboa, 2006., p. 67

de tempos a tempos zangávamo-nos

«Não fora feliz com a sua mulher, mas, por fim, habituara-se a ela. Quando esta morrera, sentira-se muito só. Pedira então, a um colega de escritório, que lhe desse um cão, e fora-lhe oferecido a este, quase recém-nascido. Tivera que o alimentar a biberão. Mas como o cão vive menos do que o homem, tinham acabado por envelhecer juntos. «Tinha mau feitio», disse Salamanco. «De tempos a tempos zangávamo-nos. «Mas apesar disso, era um bom cão.»
 
 

Albert Camus. O Estrangeiro. Tradução de António Quadros. Editora Livros do Brasil, Lisboa, 2006., p. 66
«Instantes depois, perguntou-me se eu a amava. Respondi-lhe que não queria dizer nada, mas que me parecia que não. Ficou com um ar triste.»

Albert Camus. O Estrangeiro. Tradução de António Quadros. Editora Livros do Brasil, Lisboa, 2006., p. 58

''sopro húmido e escuro''

'' a carne branca das raízes''

quinta-feira, 22 de maio de 2014


calar ou adoçar

«Que horas, ó companheira inútil do meu tédio, que horas de desassossego feliz se fingiram nossas ali!...»

Fernando Pessoa/Bernardo Soares

insónia: equivalente do tédio, do cansaço, da dor ou desassossego

«O tédio...Pensar sem que se pense, com o cansaço de pensar; sentir sem que se sinta, com a angústia de sentir; não querer sem que se não queira, com a náusea de não querer - tudo isto está no tédio sem ser o tédio, nem é dele mais que uma paráfrase ou uma translação. (...) O tédio...Sofrer sem sofrimento, querer sem vontade, pensar sem raciocínio...É como a possessão por um demónio negativo, um embruxamento por coisa nenhuma.»

Fernando Pessoa

não-amor; não-ódio

in-diferença

« O que dói e pesa em Pessoa dói e pesa fisicamente - algo de que nem sempre os literatos que o viam como cerebral se deram conta. »
 
 
Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 31

o humor é a versão diurna do desassossego

Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 31

às vezes dizemos


às vezes dizemos
                            uma jarra
       pensando nas flores que lá
       poderiam crescer

às vezes dizemos
                          summertime
      como se um negro
      nos pudesse ouvir

às vezes dizemos
                        palavras
      como se as prisões
      pudessem ter sentido


Vasco Graça MouraPoemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 36
«(...)

Desviei os meus olhos para ti:
ao longo do teu corpo morriam as estrelas.
A noite partira. E, lentamente,
o sol rompeu no céu da tua boca.»


Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 30

aves nocturnas


a amante e a amada

*


Há em teus olhos, dados ao momento,
uma tristeza de água reprimida,
que é como o pressentimento
duma próxima despedida.

Tristeza que faz lembrar
dias perdidos de outono
com luz pálida a incidir
nas folhas, mortas de sono.

Deixa que a esperança os molhe,
os inunde de alegria.
Cada noite passa e colhe
o gosto de um novo dia.


Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 21
«Só terás remorso
do que possas fazer e o não fizeres.»

Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 20

Vens cheia de orvalho, lágrimas da noite



Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 18

terça-feira, 20 de maio de 2014



«Sei que estás a sofrer
O teu homem foi-se embora outra vez
Partiu como um furacão
O que só pensas no bem que ele te fez...

Tentas dormir
Mas o teu sono parece ter voado com ele
E a noite colou-se às tuas costas
Ai, disforme como um pesadelo

Mas, ouve bem, meu amor:
Não é tarde para sorrires outra vez
Ainda há estrelas  no teu olhar

(...)»


Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 53

O VELHO NO JARDIM

Está um velho no jardim
Com cabelos de algodão
Tem dois olhos cor de mar
E uma cruz em cada mão
Uma cresce dum altar
Outra é a uma ilusão
Continuo a subir

Vejo um milhão de ideias falsas
Num crucifixo conjectural
Concebido para salvar almas
Da asfixia existencial

Está um velho no jardim
Que me olha com rancor
Tem dois olhos de marfim
Afiados no pudor
Mas as coisas que ele faz
Não parecem ter calor
Continuo a subir

Vejo uma vela adulterada
Feita de sangue e de cetim
Garantida por dois mil anos
Mas que está a chegar ao fim



Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 51
«Um dia entrei demais nos teus olhos
E vi o rancor
Que te anda a suicidar
E te impede de ver
Por trás do teu sorriso sem nome
Cresce a frustração
E eu já não tenho saco
Para te compreender.»


Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 49
«Não me masturbo mais
Com Cristos de cordel»

Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 47

Improvisa um despertar

DIZEM QUE NÃO SABIAM QUEM ERA


Ah! Dizem que fazia amor com qualquer um
E que se drogava...

Ah! Dizem que foi apanhada a ver o mar
Com outra mulher...

Ah! Dizem que foi encontrada morta
Os pulsos cortados...




Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 43
«Se alguma vez pudesses ver
O que eu, sem querer, via em ti»


Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 38

VIAGEM (MULHER)

Abre o portão e improvisa a partida
Leva emoções e alguns livros na mão
Deixa o destino e vai recomeçar
Do outro lado do espelho
Não vende nada, o que tem é para dar
Agora é mulher
Já não é flor pisada

Tu és a tal há tanto tempo deitada
Sempre a sofrer, sempre a morrer por amor
Mas já é tempo de abandonares de  vez
Esse teu berço-memória
Vais ter orgulho no teu nome de mulher
Agora estás de pé
Já não és flor pisada

Saltaste o muro e vais continuar
Do outro lado da vida
Rompeste as grades do teu jardim-prisão
Agora estás de pé
Agora és mulher
E o teu nome é liberdade!


Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 36
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